O protagonista de Cão
Sem Dono é Ciro, jovem multitalentoso,
inteligente, plenamente capaz, mas cuja vida parece
de alguma forma estacionada, inflacionada de instantes
intensos mas carente de ambições
concretas, chapada no presente, desconectada de um horizonte.
Retrato bastante pertinente de uma parcela da juventude
atual, em falta ou em excesso de opções – adolescentes
duráveis, como o pai de Ciro o define sem qualquer reprovação
ou preconceito, em uma das brilhantes cenas de refeição
do filme. Quando se faz um retrato, minimizam-se os
movimentos, ressaltam-se os traços, a fisionomia, o
olhar; ocorre menos ação e mais caracterização. Partindo
disso, o filme se cola ao ator Julio Andrade e estuda
seu personagem. As situações se alternam e a câmera
nunca perde Ciro de vista. Vemos cenas dele sozinho,
com a namorada, com o cachorro, com os pais, procurando
emprego, fazendo exame médico, jantando na casa de novos
amigos... Depois da segunda metade do filme, na fase
de “superação”, Ciro muda o repertório de atividades,
e é mostrado jogando futebol, trabalhando, participando
de um grande almoço de família, pulando num show de
rock... Em suma, vemos fatias de sua vida, captadas
pela sensibilidade do registro instantâneo, singular,
e separadas por elipses mais ou menos indeterminadas.
Na primeira seqüência do filme, Ciro e Marcela (Tainá
Müller) acabaram de se conhecer. O aparente desprezo
com que ele a trata pela manhã marca o início ambíguo
da relação. Ele não tem telefone, então Marcela deixa
o número do celular. Se ele quiser revê-la, liga. Elipse:
eles estão juntos de novo no apartamento de Ciro. Não
vimos a ligação, sequer sabemos
se o reencontro foi a partir de um telefonema, e isso
antecipa a função crucial e enigmática que os telefonemas
possuem nesse filme. Ciro e Marcela desenvolvem uma
relação apreendida de forma carnal, direta. As cenas
de intimidade são corpóreas, táteis, seja no sexo ou
naqueles momentos em que tudo que importa é os dois
estarem juntos, grudados, qualquer coisa que falem será
apenas um complemento à proximidade física. Mas após
a cena em que fala da proposta de trabalho em Barcelona,
Marcela se torna um fantasma no filme, uma aparição
rivettiana. Ela vem, invade
o apartamento de Ciro, leva uma pintura embora, se esquiva
de seus braços. Depois some por um tempo. Aí reaparece adoentada,
despede-se de Ciro, diz que vai morrer. Nessa breve
visita, eles fazem um sexo estático e sofrido, em clima
de despedida ou mesmo de morbidez. Talvez Marcela tenha
sido desde o início uma indecisão entre realidade carnal
e estado volátil. O telefonema do final corrobora essa
ambigüidade: onde antes havia um plano sem contra-plano
(Ciro ligando do orelhão desesperado, querendo falar
com Marcela e não conseguindo), de repente, para surpresa
nossa e do personagem, ganha um contracampo: vemos Marcela
no outro lado da linha, dizendo que está curada e convidando
Ciro pra ir com ela a Barcelona. É a única vez em que
os dois contracenam através do corte, em lugares estanques
colados pela montagem, e não juntos no mesmo quadro.
Que tipo de happy end é esse? A morte de um ser (o cão) nutre a reaparição fantasmática
de outro? Nada se pode assegurar quanto à “realidade”
daquela cena, tudo pode ser fruto da imaginação e da
vontade de Ciro. A cena é feliz, triste, feliz, triste, feliz, triste... numa alternância infinita.
A doença assombra o filme de um modo estranho. Da dor
no estômago de Ciro à misteriosa doença de Marcela,
chegando na própria morte do cachorro ao final do filme,
uma rede de patologia se tece soturnamente. Marcela
trabalha como modelo, ou seja, vive da sua beleza e
do carisma pessoal. Quando é atropelada por um motoboy
e chega à casa de Ciro tristonha, febril, com a perna
semi-imobilizada, surge aí um ponto de intensa conexão
com Crime Delicado:
a beleza deve de alguma forma ser arrancada de sua ilusão
de perfeição, de sua aparente simetria, para só então
descobrir qual força verdadeira carrega. Para só então
ser bela, talvez.
O motoboy que atropela Marcela
é Lárcio, grande figura, mais
que um alívio cômico, muito mais que um auxiliar da
narrativa. Ao lado de Elomar
(o porteiro do prédio em que Ciro mora, que dedica suas
horas vagas a pinturas naïf e abstratas), Lárcio é um dos personagens secundários mais vivos que vejo
no cinema brasileiro desde... sei lá desde quando. E
há quem diga que o personagem secundário é o personagem
de cinema por excelência, aquele que só aparece em uma
ou outra cena e mesmo assim nos dá a perceber toda a
vida que encarna para além dos limites do filme – aquele
que não precisa de um início e de um fim, mas apenas
de um meio, exatamente como Ciro define para Marcela
a vida (leia-se: o que nós seres vivos temos da vida).
No andamento elíptico de Cão Sem Dono, verificamos uma arte de “meios”,
miolos de ação, sem início e sem fim. O que vale para
o personagem, vale para o filme como um todo.
Na cena do exame, há um momento extraordinário. Num
mesmo plano, a câmera vai do rosto de Ciro (“amordaçado”
como um cão bravio) ao monitor que mostra a imagem captada
pela câmera endoscópica descendo até seu estômago. Alguém
tinha mesmo que filmar esse plano; passar, num registro
contínuo, do exterior do corpo ao interior do organismo,
ir da epiderme à intimidade dos órgãos, espécie de auto-regressão,
de reconciliação com o corpo através de uma terapia
não psicanalítica, mas puramente física. Há algo naquele
movimento de câmera que está ainda acima – mesmo tendo
visto e revisto o filme – de qualquer formulação que
eu possa aqui arriscar. Essa cena precisa ser relacionada
com um diálogo entre Ciro e Marcela na cama, num momento
anterior. Ela lhe pede uma poesia. Ele solta palavras quaisquer, “Marcela, linda, gostosa, deliciosa”.
Ela reclama que isso é obvio demais. Ciro argumenta
que ela já é poesia pronta, não há por que rebuscar
nas palavras. Mas ela reforça o pedido: “Olha dentro
da minha alma”. E o filme em si indaga: será que esse
olhar é possível? Ciro é inteligente, literato, mas
não se guia pelo intelecto, ou ao menos não o põe acima
do coração ou das vísceras. O filme adere a essa descrença
na racionalidade elevada, investindo no instinto e na
intuição (forças motrizes na poesia de Ciro, nas pinturas
de Elomar). Se a câmera não
interioriza os personagens, não busca através de seus
movimentos indícios da alma, esse olhar solicitado por
Marcela se torna uma questão complicada. E que fica
mais complicada ainda quando vemos, na cena da endoscopia,
que o interior do homem nada mais é que um tubo viscoso,
um organismo vivo, um sistema de vísceras que não nos
distancia tanto assim dos demais animais. O filme
não olha dentro da alma dos personagens. Em revanche,
recobra o que há de profundo na epiderme. Cão
Sem Dono mostra que o cinema já está no homem, basta
estimulá-lo, provocar sua manifestação na superfície
do corpo.
Um detalhe interessante é que Elomar
usa jornais velhos como "tela" de suas pinturas;
atrás daqueles quadros de formas e cores tão
pessoais, encontram-se notícias de jornal. Esse
detalhe não revelaria, por si mesmo, um cinema construído
no avesso das noções vulgares de realidade e de ambição
de verdade? Embora o filme ofereça uma série de argumentos
que caem como uma luva para os fiscais do realismo (os
mais óbvios seriam: câmera na mão, pouca ou nenhuma
luz artificial, bastante som ambiente, atuações vibrantes
e convincentes...), o que está em jogo é um poder do
cinema não exatamente de expor o real. É antes a idéia
de criar um espaço de confissão. O filme não quer retirar
dos personagens sua suposta essência, ou sua verdade,
mas deixar que eles desabafem alguma coisa sobre si
mesmos. Esse ímpeto de auto-entrega, que surge espontaneamente,
sem derivar de nenhuma argüição, possui alguns momentos
culminantes. Há aquela cena de camaradagem magnificamente
filmada a um palmo dos rostos de Ciro e Lárcio,
que conversam no bar, eles próprios a um palmo um do
outro, completamente bêbados, indo de devaneios poéticos
a declarações de amizade. Ou nem precisa de tanto: Ciro
se confessa à câmera também quando fuma um cigarro em
silêncio na varanda do apartamento, à noite, com os
carros acesos passando lá embaixo, seu olhar tomado
de inércia e melancolia. Mas o ápice está na cena em
que o pai de Ciro narra, com desconcertante sobriedade,
uma fase de sua vida que ficou marcada pelo abuso da
cocaína, quase arruinando o casamento. Tudo se dá em
apenas um plano fixo com o mar ao fundo, singelo cenário
de superação; o plano é lacônico e simples, a força
da história se basta, a dramaticidade se impõe pelo
peso da entrega e da confissão. Uma arte do depoimento
com que muito documentarista deve sonhar todos os dias,
sem jamais alcançar. A emoção do ator é evidente, a
história de quem se viu quase perdendo a mulher e o
filho e depois conseguiu dar a volta por cima ganha
forma no seu rosto e na sua fala. Novamente: o cinema
está no homem.
Na tal conversa embriagada no bar, Ciro fala para Lárcio:
“Você tem a simplicidade da vida”. Podemos aplicar a
frase ao filme com ligeiras alterações: Cão
Sem Dono tem a simplicidade do cinema. E a complexidade
da vida. Isso porque a câmera de cinema, assim como
o cachorro, pode ser o melhor amigo do homem.
Luiz Carlos Oliveira Jr.
|