CÃO SEM DONO
Beto Brant e Renato Ciasca, Brasil, 2007

O protagonista de Cão Sem Dono é Ciro, jovem multitalentoso, inteligente, plenamente capaz, mas cuja vida parece de alguma forma estacionada, inflacionada de instantes intensos mas carente de ambições concretas, chapada no presente, desconectada de um horizonte. Retrato bastante pertinente de uma parcela da juventude atual, em falta ou em excesso de opções – adolescentes duráveis, como o pai de Ciro o define sem qualquer reprovação ou preconceito, em uma das brilhantes cenas de refeição do filme. Quando se faz um retrato, minimizam-se os movimentos, ressaltam-se os traços, a fisionomia, o olhar; ocorre menos ação e mais caracterização. Partindo disso, o filme se cola ao ator Julio Andrade e estuda seu personagem. As situações se alternam e a câmera nunca perde Ciro de vista. Vemos cenas dele sozinho, com a namorada, com o cachorro, com os pais, procurando emprego, fazendo exame médico, jantando na casa de novos amigos... Depois da segunda metade do filme, na fase de “superação”, Ciro muda o repertório de atividades, e é mostrado jogando futebol, trabalhando, participando de um grande almoço de família, pulando num show de rock... Em suma, vemos fatias de sua vida, captadas pela sensibilidade do registro instantâneo, singular, e separadas por elipses mais ou menos indeterminadas.  

Na primeira seqüência do filme, Ciro e Marcela (Tainá Müller) acabaram de se conhecer. O aparente desprezo com que ele a trata pela manhã marca o início ambíguo da relação. Ele não tem telefone, então Marcela deixa o número do celular. Se ele quiser revê-la, liga. Elipse: eles estão juntos de novo no apartamento de Ciro. Não vimos a ligação, sequer sabemos se o reencontro foi a partir de um telefonema, e isso antecipa a função crucial e enigmática que os telefonemas possuem nesse filme. Ciro e Marcela desenvolvem uma relação apreendida de forma carnal, direta. As cenas de intimidade são corpóreas, táteis, seja no sexo ou naqueles momentos em que tudo que importa é os dois estarem juntos, grudados, qualquer coisa que falem será apenas um complemento à proximidade física. Mas após a cena em que fala da proposta de trabalho em Barcelona, Marcela se torna um fantasma no filme, uma aparição rivettiana. Ela vem, invade o apartamento de Ciro, leva uma pintura embora, se esquiva de seus braços.  Depois some por um tempo. Aí reaparece adoentada, despede-se de Ciro, diz que vai morrer. Nessa breve visita, eles fazem um sexo estático e sofrido, em clima de despedida ou mesmo de morbidez. Talvez Marcela tenha sido desde o início uma indecisão entre realidade carnal e estado volátil. O telefonema do final corrobora essa ambigüidade: onde antes havia um plano sem contra-plano (Ciro ligando do orelhão desesperado, querendo falar com Marcela e não conseguindo), de repente, para surpresa nossa e do personagem, ganha um contracampo: vemos Marcela no outro lado da linha, dizendo que está curada e convidando Ciro pra ir com ela a Barcelona. É a única vez em que os dois contracenam através do corte, em lugares estanques colados pela montagem, e não juntos no mesmo quadro. Que tipo de happy end é esse? A morte de um ser (o cão) nutre a reaparição fantasmática de outro? Nada se pode assegurar quanto à “realidade” daquela cena, tudo pode ser fruto da imaginação e da vontade de Ciro. A cena é feliz, triste, feliz, triste, feliz, triste... numa alternância infinita.

A doença assombra o filme de um modo estranho. Da dor no estômago de Ciro à misteriosa doença de Marcela, chegando na própria morte do cachorro ao final do filme, uma rede de patologia se tece soturnamente. Marcela trabalha como modelo, ou seja, vive da sua beleza e do carisma pessoal. Quando é atropelada por um motoboy e chega à casa de Ciro tristonha, febril, com a perna semi-imobilizada, surge aí um ponto de intensa conexão com Crime Delicado: a beleza deve de alguma forma ser arrancada de sua ilusão de perfeição, de sua aparente simetria, para só então descobrir qual força verdadeira carrega. Para só então ser bela, talvez.   

O motoboy que atropela Marcela é Lárcio, grande figura, mais que um alívio cômico, muito mais que um auxiliar da narrativa. Ao lado de Elomar (o porteiro do prédio em que Ciro mora, que dedica suas horas vagas a pinturas naïf e abstratas), Lárcio é um dos personagens secundários mais vivos que vejo no cinema brasileiro desde... sei lá desde quando. E há quem diga que o personagem secundário é o personagem de cinema por excelência, aquele que só aparece em uma ou outra cena e mesmo assim nos dá a perceber toda a vida que encarna para além dos limites do filme – aquele que não precisa de um início e de um fim, mas apenas de um meio, exatamente como Ciro define para Marcela a vida (leia-se: o que nós seres vivos temos da vida). No andamento elíptico de Cão Sem Dono, verificamos uma arte de “meios”, miolos de ação, sem início e sem fim. O que vale para o personagem, vale para o filme como um todo.

Na cena do exame, há um momento extraordinário. Num mesmo plano, a câmera vai do rosto de Ciro (“amordaçado” como um cão bravio) ao monitor que mostra a imagem captada pela câmera endoscópica descendo até seu estômago. Alguém tinha mesmo que filmar esse plano; passar, num registro contínuo, do exterior do corpo ao interior do organismo, ir da epiderme à intimidade dos órgãos, espécie de auto-regressão, de reconciliação com o corpo através de uma terapia não psicanalítica, mas puramente física. Há algo naquele movimento de câmera que está ainda acima – mesmo tendo visto e revisto o filme – de qualquer formulação que eu possa aqui arriscar. Essa cena precisa ser relacionada com um diálogo entre Ciro e Marcela na cama, num momento anterior. Ela lhe pede uma poesia. Ele solta palavras quaisquer, “Marcela, linda, gostosa, deliciosa”. Ela reclama que isso é obvio demais. Ciro argumenta que ela já é poesia pronta, não há por que rebuscar nas palavras. Mas ela reforça o pedido: “Olha dentro da minha alma”. E o filme em si indaga: será que esse olhar é possível? Ciro é inteligente, literato, mas não se guia pelo intelecto, ou ao menos não o põe acima do coração ou das vísceras. O filme adere a essa descrença na racionalidade elevada, investindo no instinto e na intuição (forças motrizes na poesia de Ciro, nas pinturas de Elomar). Se a câmera não interioriza os personagens, não busca através de seus movimentos indícios da alma, esse olhar solicitado por Marcela se torna uma questão complicada. E que fica mais complicada ainda quando vemos, na cena da endoscopia, que o interior do homem nada mais é que um tubo viscoso, um organismo vivo, um sistema de vísceras que não nos distancia tanto assim dos demais animais. O filme não olha dentro da alma dos personagens. Em revanche, recobra o que há de profundo na epiderme. Cão Sem Dono mostra que o cinema já está no homem, basta estimulá-lo, provocar sua manifestação na superfície do corpo.

Um detalhe interessante é que Elomar usa jornais velhos como "tela" de suas pinturas; atrás daqueles quadros de formas e cores tão pessoais, encontram-se notícias de jornal. Esse detalhe não revelaria, por si mesmo, um cinema construído no avesso das noções vulgares de realidade e de ambição de verdade? Embora o filme ofereça uma série de argumentos que caem como uma luva para os fiscais do realismo (os mais óbvios seriam: câmera na mão, pouca ou nenhuma luz artificial, bastante som ambiente, atuações vibrantes e convincentes...), o que está em jogo é um poder do cinema não exatamente de expor o real. É antes a idéia de criar um espaço de confissão. O filme não quer retirar dos personagens sua suposta essência, ou sua verdade, mas deixar que eles desabafem alguma coisa sobre si mesmos. Esse ímpeto de auto-entrega, que surge espontaneamente, sem derivar de nenhuma argüição, possui alguns momentos culminantes. Há aquela cena de camaradagem magnificamente filmada a um palmo dos rostos de Ciro e Lárcio, que conversam no bar, eles próprios a um palmo um do outro, completamente bêbados, indo de devaneios poéticos a declarações de amizade. Ou nem precisa de tanto: Ciro se confessa à câmera também quando fuma um cigarro em silêncio na varanda do apartamento, à noite, com os carros acesos passando lá embaixo, seu olhar tomado de inércia e melancolia. Mas o ápice está na cena em que o pai de Ciro narra, com desconcertante sobriedade, uma fase de sua vida que ficou marcada pelo abuso da cocaína, quase arruinando o casamento. Tudo se dá em apenas um plano fixo com o mar ao fundo, singelo cenário de superação; o plano é lacônico e simples, a força da história se basta, a dramaticidade se impõe pelo peso da entrega e da confissão. Uma arte do depoimento com que muito documentarista deve sonhar todos os dias, sem jamais alcançar. A emoção do ator é evidente, a história de quem se viu quase perdendo a mulher e o filho e depois conseguiu dar a volta por cima ganha forma no seu rosto e na sua fala. Novamente: o cinema está no homem.

Na tal conversa embriagada no bar, Ciro fala para Lárcio: “Você tem a simplicidade da vida”. Podemos aplicar a frase ao filme com ligeiras alterações: Cão Sem Dono tem a simplicidade do cinema. E a complexidade da vida. Isso porque a câmera de cinema, assim como o cachorro, pode ser o melhor amigo do homem.

Luiz Carlos Oliveira Jr.

 

 







Tainá Müller e Julio Andrade em Cão Sem Dono