A obra de Philippe Garrel,
não é difícil notar, divide-se em basicamente duas fases.
A primeira é mais onírica, mítica, viajante. É o “sonambulismo
acordado” que verificamos em A Cicatriz Interior
e Le Revelateur, filmes sem diálogo, cheios
de efeitos opiáceos, como se fossem panos de fundo para
sessões de hipnose (ou para shows da Nico). Le Lit
de la Vierge, Le Berceau de Cristal e Le
Bleu des Origines, outros pontos altos dessa grande
trip experimental, ainda permanecem inacessíveis
para nós (uma cópia de Le Lit de la Vierge tinindo
de nova foi exibida em Berlim, bem que o Festival do
Rio ou a Mostra de São Paulo podiam se empenhar em trazer).
O marco divisório ocorre em 1979, quando Garrel faz
L’Enfent Secret e seu cinema se torna mais autobiográfico
e mais narrativo (no que isso concerne uma maior “coerência”
do enredo). Desde então Garrel retorna incessantemente
aos fatos marcantes de sua vida, assim como às obsessões
de sua geração (Amantes Constantes sendo uma
imbricação de trajetória pessoal e destino comunitário,
a partir de sua memória sobre o maio de 68). Nessa segunda
fase, uma outra divisão ainda é possível, quando o escritor
Marc Cholodenko é chamado para ser dialoguista de Les
Baisers de secours (1989) e é incorporado à família-equipe
de Garrel. Os primeiros filmes que nascem dessa parceria
encantam pelo aspecto sempre poético, sempre derivativo,
mas também pela melancolia ambígua, suicida e doce ao
mesmo tempo, e pela beleza ríspida das imagens. As cenas
a dois se intensificam, as narrativas ficam mais secas
e cheias de saltos temporais, o projeto autobiográfico
se aprofunda e se frontaliza (Garrel descobre, através
de um “outro”, a melhor forma de falar em primeira pessoa).
Desde o início do trabalho em parceria, Cholodenko teve
bastante liberdade. Ele recebeu o roteiro de Les
Baisers de secours já pronto e inseriu
seus diálogos onde bem entendeu. E que belos diálogos:
aforismos iluminados, confissões arrebatadoras, micro-poderes
negociados, reflexões sinceras e tristes, desabafos,
tudo isso convive nas falas dos personagens de Les
Baisers, e posteriormente em J’entend plus la
guitare (1991) e O Nascimento do Amor (1993).
As “praias de silêncio” garrelianas são invadidas por
palavras.
Essa secura que, a partir de então, conduz a montagem
e a mise en scène não significa uma preponderância
de sentimentos contidos ou de situações áridas. Ela
vem acompanhada de um intenso lirismo, de arabescos
narrativos desenhados pelas linhas de força que passam
de um personagem a outro, que os unem e os separam,
esses laços afetivos infinitamente fortes, infinitamente
frágeis. Mesmo no desencanto, na utopia desencorajada,
sobrevive uma aura de sonho e de poesia vitalista (como
no final de Amantes Constantes). Não há frieza
nem mesmo no frio e no escuro de O Nascimento do
Amor, filme feito no inverno e na noite, esculpido
sobre a matéria negra do universo. O filme se inflama
de emoção toda vez que um olhar é fixado pela câmera
ou que o piano de John Cale invade a cena através de
notas improvisadas por ele sobre as imagens, numa interação
orgânica de todo adequada aos preceitos garrelianos
de encenação. Segundo estes, tudo que acontece no set
de filmagem (dentro ou fora do campo visual da câmera)
fica impressionado na película e posteriormente é transmitido
ao espectador – o paralelo com a trilha sonora seria:
cada tecla que Cale pressiona é um traço que ele imprime
na imagem.
Cineasta de axiomas (“O cinema é Freud mais Lumière”,
“todo raccord é um jump-cut”, “fazer um
filme é como fazer um filho”), Garrel começa a filmar
ainda muito jovem (apenas 16 anos quando faz Les
Enfants Désaccordés em 1964). Embora estivesse começando
a filmar em plena ebulição nouvelle-vaguiana, e embora
fosse uma espécie de filho pródigo da geração de Godard
e Truffaut, Garrel enveredava por vias pessoais demais
para ser incluído em qualquer movimento. Assim como
Pialat, Jean Eustache ou Jacques Rozier, ele reverbera
uma concepção de cinema como engajamento pessoal. Fala-se
muito, a respeito de Garrel, de Pialat, de Eustache,
em uma espécie de “lumierismo”, uma filiação a Lumière
e aos primórdios do cinema sendo tão ou mais forte que
as heranças modernas/nouvelle-vaguianas. Trata-se de
uma geração lacunar do cinema francês, entre discípulos
da Nouvelle Vague, filhos temporãos de Lumière ou simplesmente
órfãos de pais cinematográficos. Mas se havia um aspecto
que ainda os mantinha ligados ao cinema moderno francês
era a convicção de que o cinema envolve, acima de tudo,
uma moral do olhar.
Como a rigidez de seu método indica (filmar na ordem
do roteiro e em take único), Garrel troca o realismo
por algo mais difícil, mais exigente, uma forma de crença
obsessiva no real, na autenticidade física de uma tomada
cinematográfica, desde que feita à flor da pele e da
câmera. Um dos grandes temas de O Nascimento do Amor
e de Les Baisers de Secours é a vida da película
em si mesma, o grão formigando na tela, a luz flicando;
uma percepção da matéria viva do cinema. Ele às vezes
parece até mesmo pôr à prova essa vida, essa evidência
sensível, filmando corpos no limite da visibilidade,
contornos ameaçados pelas sombras, prestes a cair na
escuridão total, apenas recebendo uma parcela quântica
da luz, uma última coisa a ver antes do mundo entrar
em fade out. A película cinematográfica é desafiada
na sua capacidade de apreender o mundo (esse mundo abortado
no meio da noite, pululando de forças obscuras e misteriosas)
através de uma transcrição luminosa. É assim que funcionam
os filmes de Garrel na passagem dos anos 80/90: vibrações
íntimas, rostos um pouco afundados em si mesmos, sombreados,
diálogos um pouco mascados, um pouco inconclusos. Voz,
dramaturgia, enquadramento e iluminação que parecem
de alguma forma “insuficientes”, mas que fixam um olhar,
uma expressão, uma entonação, e isso basta. O nascimento
do amor ou o amor em fuga; sentimentos em aurora ou
crepúsculo.
Em Les Baisers de secours, o próprio Philippe
Garrel interpreta um cineasta, Mathieu, que prepara
um filme no qual o papel de sua esposa será confiado
a uma outra mulher, atriz consagrada. Ele argumenta
com a esposa, diz que não é ela no filme, e sim uma
personagem de cinema. Mas nada diminui a raiva de Jeanne
(Brigitte Sy, mulher de Garrel na vida e no filme).
Eles se separam, e o filme se perde (não o filme dentro
do filme, mas o filme que estamos vendo, ou seja, não
o filme de Mathieu, mas o filme de Philippe – ou será
a mesma coisa?). A narrativa se torna então o tempo
de uma espera no vazio, de uma escuta no silêncio. O
amor reacenderá nesse casal? Enquanto a resposta não
vem, a câmera de Garrel desliza através de panorâmicas
e travellings que parecem materializar o espaço entre
os rostos, lentos planos-seqüência que terminam por
compor uma coreografia espontânea, uma dança acidental
que se origina tão-somente dos gestos de aproximação
e repulsão dos atores. A câmera capta o que ocorre entre
os personagens, materializa o espaço que ora une, ora
separa duas pessoas.
Os momentos sublimes de Les Baisers de Secours convergem
para um mesmo lugar: o lugar da família-Garrel. É um
registro familiar no sentido mais profundo que isso
pode ter, um estudo atordoante sobre as relações de
transmissão entre seres que pertencem a um mesmo grupo
ou que estão conectados vivamente nem que seja pela
memória de um passado biológico (como a mãe que mora
longe e Mathieu vai visitar). Como diz Lou Castel em
outro filme, O Nascimento do Amor, “a única coisa
que conta é a família”. Da metade de Les Baisers
em diante, começamos a perceber que se trata de uma
tomada de consciência sobre o amor, sobre o mundo –
o amadurecimento de uma compreensão do que é viver com
o outro, ser no mundo em companhia de outros. Esse filme
mistura fragmentos de um diário íntimo com fragmentos
de um manifesto nunca escrito, um conjunto de afirmações
de princípio tanto no plano ético quanto cinematográfico.
Numa cena, Mathieu e Jeanne saem do cinema, e ele comenta:
“Os filmes de Jacques Rozier são sempre tão bonitos...”
(demarcação de parentesco cinematográfico). Em outra
cena, ele fica um bom tempo com um jornal aberto na
frente da câmera, em cuja primeira página se lê em caixa
alta “Nouvelle Vague” (tal qual um ponto de interrogação
no meio da tela, um passado cinematográfico tornado
mítico, distante). Nas conversas com o pai (Maurice
Garrel), Mathieu conta as agruras de sua separação e
discute a preparação do filme. Garrel pai sugere que
Garrel filho leve o que está acontecendo em sua vida
para dentro do filme, mas o segundo responde que “um
filme não é uma lata de lixo”, não se pode jogar nele
tudo que há de indesejado na vida. Um dos melhores momentos
é quando Jeanne esfrega o chão com um pano e discute
com Mathieu. Ela diz que permanecer com ele seria perder
sua dignidade, e uma pessoa “pode viver sem amor, mas
não sem dignidade”.
Entre Mathieu e Jeanne, como elo permanente, mesmo na
parte do filme em que eles estão separados, existe Lo,
essa criança que brinca e se move o tempo todo. Ele
é a prova de que a vida continua. Há no filme essas
cenas lindíssimas em que tudo se resume a um documentário
sobre a infância de Louis Garrel, filho do diretor.
No final, após o casal ter já se reatado, uma elipse
ainda mais enigmática que as outras elipses do filme
nos leva a uma cena de Jeanne na estação de metrô. Ela
espera, olha para o nada, até que avista no outro lado
da plataforma a atriz que interpretaria seu papel no
filme de Mathieu, assunto desencadeador de toda briga
que levou à separação. O metrô se aproxima. Um trem
chegando na estação, um fantasma da traição no outro
lado da plataforma; o cinema é Freud mais Lumière. Les
Baisers de Secours fala de cinema, de amor, de dignidade,
essas coisas maiúsculas que não podem ser vividas senão
de forma minúscula, na efemeridade do dia qualquer,
do gesto qualquer.
J’entend plus la guitare é também um filme em
que há uma forte submissão ao tempo e ao ritmo da existência,
uma constatação tranqüila da vida. Os eventos do filme
são puros produtos da duração. Quando dois personagens
se encontram (pois esse é o tema – no sentido musical
– em torno do qual o filme varia) e um pergunta ao outro
como vão as coisas, o que aconteceu recentemente etc
e tal, a resposta poderia ser simplesmente: “nada, o
tempo passou”. Garrel filmou a passagem do tempo, mas
de uma forma nada costumeira. Não é um tempo pesado,
a ser sentido na duração extenuante de blocos-seqüências.
Tampouco um tempo de prosa, com grandes movimentos temporais
que transformam as elipses em ferramenta narrativa.
É antes um tempo poético, que só existe na potência
de uma estrofe, depois se despedaça e obriga a confecção
de um outro pequeno maço temporal. As elipses não desempenham
qualquer papel retórico no filme, são apenas pontos
esburacados da narrativa, vazios que estão ali para
serem menos interpretados do que sentidos – ao invés
de se perguntar sobre o que ocorreu na passagem de uma
cena à outra, o espectador é levado a experimentar o
peso da ausência. Não é a duração do presente bruto,
direto, mas a duração paradoxal de um presente tomado
emprestado ao passado. Os eventos saem da desordem empírica
da experiência concreta e são transpostos a uma desordem
ainda maior, da memória. Uma lembrança surge, é ruminada
por um tempo e depois some, dando a vez a uma outra
lembrança e assim por diante.
Os personagens também só existem na sua qualidade de
aparição/desaparição, são pontos intermitentes de vida.
J’entend plus la guitare é um filme feito de
memória e dedicado a Nico. Às vezes o filme sai da tranqüilidade
do puro escoamento existencial e adquire uma inquietude
muda, um furor latente e incômodo. Passamos a acompanhar
uma vida no limiar do desespero e do intolerável, simplesmente
por ser vida e não morte. Quando isso ocorre, percebemos
que o filme é assombrado pelo fantasma do fim de uma
geração, que levou com ela um considerável pacote de
sonhos. Nico, Jean Seberg, Jean Eustache, estes morreram.
Philippe Garrel continua vivo. Mas por quê? A resposta
vem como nova pergunta, presente no próprio J’entend
plus la guitare, no anterior Les Baisers de Secours,
e mais claramente formulada em O Nascimento do Amor:
ao invés de morrer, por que não fazer um filho? Por
que não fazer um filme? Garrel aceita o desafio. Ele
encara em J’entend plus la guitare um lado brutal
e irreversível da vida, um sentimento de perda de heroísmo,
fim de cenários míticos, uma certa inércia do coração,
que não sabe em que ritmo bater uma vez que “não ouve
mais a guitarra” que o acompanhava.
Já que em Philippe Garrel tudo é questão de casal, o
percalço cíclico de J’entend plus la guitare se
resume às idas e vindas entre homens e mulheres. Marianne
(Johanna Ter Steege) vai embora, Marianne retorna. Marianne
se suicida (fora-de-quadro, a notícia chega por telefone).
Restam tristeza, amargura e uma certa culpa para Gérard
(Benoît Régent). No meio do filme, quando ela retorna
após um tempo (quanto tempo?) passado na Alemanha, o
casal se joga a uma tentativa quixotesca de viver à
margem do dinheiro. O que eles tentavam ser? “Heróis”,
responde Marianne a Aline, a mulher que depois vai tirar
Gérard do limbo e da droga, vai devolvê-lo ao mundo
e fazer-lhe um filho. Antes disso tem a parte mais etérea
do filme, concentrada nos esforços heróicos de Marianne
e Gérard para viver juntos, para sempre, mesmo que na
pobreza absoluta, afundados num cul-de-sac amoroso,
adormecidos num pacto de sonho selado pela droga, morando
numa casa sem luz elétrica, sem gás, sem contato com
o mundo, que é abstraído como um fundo desfocado sem
grande relevância (o filme se fecha sobre Gérard e Marianne).
Na cena em que Marianne retorna, ela e Gérard partilham
um idílio inusitado, num dos momentos de intimidade
de que Garrel tem a mestria. Ela termina de urinar,
com Gérard a seu lado, e constata que não há papel higiênico
no banheiro. Gérard confirma que de fato não há papel,
com uma expressão de que nada mais importa no mundo
a não ser a presença dela ao seu lado. Cena magnífica
que determina todo o movimento do casal. Quase no final
de O Nascimento do Amor ocorre uma cena de intimidade
da mesma magnitude: Lou Castel observa a jovem Aurélia
Alcaïs limpando o sangue de sua menstruação, eles trocam
olhares. A intimidade, o amor, o casal: questão de fluidos,
de afetos, de olhares cruzados. A mulher é o lugar do
enigma, encarnação do incompreensível, mas sem clichê
de tipificação ou idealização do feminino, pois ela
é mistério e beleza também em seus humores, em seus
ciclos biológicos.
Em O Nascimento do Amor, Garrel vai dar continuidade
a esse movimento de afrontar as cenas primitivas da
ficção conjugal herdada do cinema moderno. As presenças
de Jean-Pierre Léaud e Lou Castel são mais que emblemáticas:
seus personagens são palimpsestos, corpos que guardam
as marcas, as rugas e sinais de tantos outros personagens
que eles fizeram desde que se tornaram atores-ícones
do cinema moderno. O amor que eles incorporam é o que
aproxima e separa homens e mulheres. Há um divórcio
entre as esferas masculina e feminina, uma ferida não
cicatrizada, que se expressa na imagem mais até do que
nos diálogos. Quando Marianne e Lola (Mireille Perrier)
conversam, em J’entend plus la guitare, ainda
que uma confesse que não vai com a cara da outra, o
foco da imagem abrange as duas, o espaço figurativo
é idêntico para ambas: as mulheres se encontram num
mesmo universo, embora contraditório. Já em O Nascimento
do Amor, Paul (Lou Castel) e Ulrika (Johanna Ter
Steege) estão na cama, extremamente próximos fisicamente,
mas o foco está somente nela, há uma distância estabelecida
entre os dois por meio da própria composição da imagem.
Num momento posterior, eles se despedem na plataforma
do trem após um texto de adeus que Ulrika recita como
poesia.
Se o amor é uma força de atração-repulsão entre os humanos,
é também uma potência da imagem: uma tintura da mise
en scène e um determinante de expressividade ou
não da luz, de abertura ou clausura do enquadramento.
E um agente de raccord: na montagem de Garrel,
o inapreensível dos sentimentos se traduz na violência
do corte. As pessoas estão no filme não estando, somem
para depois reaparecer em cenário distinto, situação
distinta. Amam, mas o amor, como diz Marianne em J’entend
plus la guitare, “é tudo que não se pode dizer”.
É preciso então uma montagem que opera por flagrantes,
uma estratégia – simultaneamente de desligamento e apego
totais – para encontrar o lugar das aparições desses
personagens que não agem, mas simplesmente existem (como
seres falantes, políticos, sentimentais, ausentes e
presentes na mesma medida), desse amor que não é dito,
mas somente vivido.
Na seqüência de O Nascimento do Amor que o Ruy
analisa em seu texto,
encontra-se o melhor exemplo dessa montagem que liga
e desconecta os personagens em igual dosagem, que os
aproxima e afasta como a tradução exata do estado amoroso
que os engarrafa em trajetos cíclicos. Quatro planos
que constroem uma rede de afetos inescrutável. Quem
olha para quem? O plano de Marcus (Léaud) faz um pivô
ambíguo, aparentemente responde ao olhar de Hélène (Dominique
Reymond), mas pode também estar direcionado a Paul deitado
na cama. Há continuidade de olhar entre Hélène e Marcus,
mas não de luz. As sombras ao redor de Marcus combinam
com as sombras ao redor de Paul, ao passo que o branco
estourado é comum aos planos de Hélène e Aurélia, respectivamente
o primeiro e o último da seqüência. Garrel constrói
dois ambientes de imagem, dois regimes de luminosidade,
um para os homens e outro para as mulheres. Sombra quase
mórbida para os homens, luz quase excessiva para as
mulheres. Da forma como os planos são montados, os personagens
ao mesmo tempo são ligados e separados, estão no presente
e em flashbacks. São criaturas interagindo por
uma relação que extrapola o plano físico e se dá no
plano abstrato da montagem. E são também indivíduos
ilhados, condenados por falsos-raccords a uma
solidão eterna, a planos em que aparecem sozinhos, mesmo
quando buscam a companhia do outro. Uma edição de imagens
simples e absurda, mistura de primitivismo e modernismo
abstrato. O efeito Kulechov redescobre suas engrenagens
mágicas.
Há uma encantadora fragilidade nos personagens de O
Nascimento do Amor. Paul e Marcus são adultos, mas
isso não quer dizer que tenham atingido a maturidade
sentimental. No último plano do filme, Paul se despede
de Aurélia próximo a uma entrada do metrô. Eles combinam
de se encontrar mais tarde. “Você me ama?”, ela pergunta
de um jeito apaixonante. “Sim, eu te amo”, ele responde.
Ela pede que ele prove. Paul: “Eu posso te fazer um
filho”. Aurélia, já descendo a escadaria que leva ao
metrô: “Eu não quero um filho, quero apenas um beijo”.
Ela desce os degraus, a câmera fica alguns segundos
enquadrando a entrada vazia do metrô e um pedaço da
calçada. Fim, sem beijo. O que acontecerá dali para
frente? O que acontecerá com Paul que largou a família,
com Aurélia que quer arrumar um lugar para eles dois
(pois não podem ficar o tempo todo se encontrando em
quartos de hotel), com Marcus que ainda ama Hélène,
com Hélène que não sabemos se ama alguém, com Ulrika
que sumiu do filme, com a família que Paul deixou para
trás? Não temos como adivinhar, tudo isso é imprevisível
e difuso. O que sabemos é que a única coisa capaz de
mantê-los plantados ou de replantá-los ao mundo é a
disponibilidade de encontrar um outro ser com quem dividir
o tempo de um café, de uma noite invernal, de uma caminhada
até o metrô – ou de uma vida inteira. O amor surge como
descoberta da alteridade, como garantia de pertencimento
ao mundo. Amo, logo existo. Talvez este seja mais um
axioma de Garrel, secreto e impronunciável.
Luiz Carlos Oliveira Jr.
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