1.
Volta e meia ouvimos falar, a respeito do cinema desse
ou daquele cineasta, a expressão "cinema
de sentimentos". Nada de certo ou de errado.
Algumas se aplicam. Mas em geral é a mesma cantilena
de defesa dos dramas do cotidiano contra a "máquina"
da indústria, só que curiosamente a esses
dramas se aplica o mesmo princípio da máquina
deplorada, e os sentimentos tão reivindicados
acabam presa de arranjos narrativos previsíveis,
as situações deixam de ter valor em si
mesmas para obedecerem a um lugar na trama. Curioso
mecanismo do cinema, ou pelo menos de uma determinada
disposição de ver cinema (hegemônica,
quase totalitária), esse que faz com que cada
coisa que vemos diante da tela não seja uma coisa
mostrada, mas uma coisa narrada. Não o "veja
isso", mas o "você está vendo
isso por causa disso". O que remete a toda uma
transitividade das imagens, uma submissão da
parte ao todo. Nessa negociação entre
o mostrar e o narrar, muita coisa é jogada, muitos
efeitos de significação são construídos,
e acima de tudo ao menos naquilo que nos interessa
mais imediatamente o sentimento, delicado demais
diante das articulações da intriga, corre
o risco de se perder inteiramente. A ênfase (muitos
diriam inclinação natural) narrativa do
cinema ocasiona muitas coisas, e uma delas é
a dificuldade de isolar situações, de
fazer com que uma ocasião particular tenha um
peso só dela, uma existência em si, no
limite até uma intransitividade, fazendo parte,
no entanto, de um todo coerente e articulado em suas
partes, um filme. Mil estratégias para alcançar,
mil estéticas possíveis, algumas de fato
realizadas. Foquemos na de Philippe Garrel.
2. Pois o cinema de Garrel é acima de tudo um
cinema de situações, de pedaços
desgarrados de tempo e espaço, de impressões,
delírios, indecisões, medos, indefinições,
prazeres. Cada personagem movimenta-se num espaço
impreciso, como se cada lance do cotidiano fosse um
caminhar na corda bamba, como se a vida que conhecemos
se tornasse instantaneamente na zona de Stalker
de Andrei Tarkovski, um fluxo selvagem e imprevisível.
O todo cede ao particular: no começo de Amantes
Constantes, a câmera captura o conflito dos
estudantes contra a polícia filmando sempre do
chão, como um observador estático, pouco
curioso até. Vemos apenas parte, mas o importante
não é que reconstruamos pela parte o todo
(o que, como espectadores, acabamos fazendo de qualquer
jeito a partir daquilo que nos é permitido ver),
mas que a parte consiga dar toda a dimensão de
intimidade da situação, consiga conferir
a ela uma atmosfera e uma densidade particular que,
precária (no sentido da percepção),
coloca em evidência a sensação sobre
a narração, o sentido do "estar lá"
sobre aquilo que está sendo contado. É
uma nova materialidade, uma concretude do íntimo
que nasce da persistência do tempo no plano e
da forma como o nexo das seqüências, a continuidade
da trama, parece a nossos olhos desconectada de um fluxo
lógico de coisas acontecendo.
3. Philippe Garrel faz parte de uma geração
no cinema francês, junto com Jean Eustache e Maurice
Pialat, que desconifou dos poderes e dos pressupostos
da narrativa, e aproveitou o momento de liberação
que foi a nouvelle vague para fazer seu estilo evoluir
não exatamente contra (como Godard), mas abstraindo
do funcionamento dela. Deles, Garrel foi sem dúvida
o que levou mais longe o desvio para fora da narrativa.
Como Eustache e seu desejo de fazer o cinema "voltar
a Lumière", há em Garrel um desejo
de depuração que parece buscar algo primitivo,
algo originário na imagem, algo que teria sido
desvirtuado por uma ênfase eminentemente narrativa
do cinema. Daí compreende-se com mais facilidade
o período "não-narrativo" (no
sentido de coerência e consistência do mundo
diegético, personagens, verossimilhança,
etc.) que vai do começo da carreira do cineasta
e só pára em 1982, quando surge L'Enfant
sécret. Se há titubeio e um abraço
por completo do cinema "narrativo" depois
disso, é porque essas suas primeiras experiências
nesse novo terreno revelam que um liame frágil
de apresentação de fatos e personagens
com alguma consistência surpreendentemente não
desvirtuam a densidade e a característica originária
dessas imagens em movimento. Pelo contrário,
elas atribuem essa característica primitiva,
densa do tempo àquilo que estamos acostumados
a ver no cinema e na vida corrente apenas segundo as
utilizações mais prosaicas do tempo, ou,
como diria Bergson, do tempo vivido como espaço
(mensurável, divisível, etc.).
4. E se a narrativa é essa utilização
funcional do tempo e do espaço cinematográficos,
como fazer para torcê-la e retorcê-la até
chegar a um resultado que reequilibre a tensão
entre narrar e mostrar com o privilégio para
este último? A saída de Garrel, sua grande
solução artística, é a total
displicência da elipse. Em seus melhores filmes,
ela é de uma selvageria explícita que,
mais que chamar atenção para um aspecto
brutal e imprevisível dos rumos que a vida toma
(um uso Pialat da elipse, por assim dizer, mas que não
é estranho a Garrel), serve para isolar duas
seqüências entre si, criar ao mesmo tempo
um efeito de disjunção espaço-temporal
e simultaneamente um efeito de grande empatia plástica
entre duas imagens. A elipse, do modo como Garrel a
utiliza, provoca um estilhaçamento da narrativa:
o prosseguimento das ações e do tempo
não é um nexo lógico regido por
informações que vemos ou ouvimos, mas
reuniões de detalhes de momentos quaisquer na
vida de alguns personagens, ou, segundo uma bela imagem
do blogueiro francês pierrot,
"páginas arrancadas de um diário
íntimo". Vemos filmes como Les Baisers
du secours, O Nascimento do Amor, J'Entends
plus la guitare, O Vento da Noite ou Amantes
Constantes como se estivessemos diante de borrões
de momentos vividos reunidos meio esbaforidamente. Daí
uma irregularidade constitutiva nos filmes. Não
é só que sejam filmes "de partes":
são filmes que ao final não dão
o gosto de uma obra completa, de contornos precisos,
mas revelam toda sua incompletude na forma como volta
e meia não fazem as situações encontrarem
rimas ou respostas de uma seqüência para
outra. Como se o verdadeiro acabamento para Garrel fosse
o não-acabamento. Em seu cinema, é o que
dá a chave de entrada.
5. Tomemos O Nascimento do Amor, aquele que pessoalmente
consideramos o filme mais rico, mais belo, mais pungente,
mais emocionante. Estrelado por Lou Castel e Jean-Pierre
Léaud, duas das maiores estrelas do cinema moderno
dos anos 60 (o primeiro foi herói de De Punhos
Cerrados de Marco Bellocchio, o segundo herói
de Godard, Truffaut, Eustache, etc.), o filme passa
por diversas etapas do relacionamento amoroso dos dois
amigos e das mulheres que os rodeiam: amante, esposa,
mulher, ex-mulher, namorada, mantendo uma opacidade
exemplar diante do dilema principal do filme, a questão
de saber se ama-se ou se é amado, se o tamanho
do amor sustenta a relação e suporta a
passagem do tempo. No preto e branco límpido
e sóbrio assinado por Raoul Coutard, temos uma
montanha russa emocional que por vezes nem entendemos,
ou que só entendemos quando a cena acaba (ou
seqüências depois). No começo do filme,
o personagem de Léaud pergunta à esposa
se ela o ama. Ao fim do filme, como que retomando o
mote, existe o diálogo entre Lou Castel e sua
jovem namorada que também referencia provas de
amor, filhos e a palpitação de amar e
ser amado. Mas, de forma geral, o filme se coloca inteiro
na chave da imprecisão do registro. Castel e
Léaud são aqui dois colossos de impassibilidade,
de uma economia tal de gestos que jamais permite que
nos situemos emocionalmente com alguma garantia em relação
a eles. À primeira vista, o título parece
enganador (pois há no filme muito mais dissoluções
do que nascimentos de amor, afinal), mas na verdade
o que Garrel dramatiza é a eterna incerteza da
retribuição, do saber-se amado, da busca
quase sempre infrutífera pelo diapasão
que vai permitir a consonância entre dois sons.
O nascimento do amor seria, então, esse tênue
e frágil momento em que duas sensibilidades se
afinal, se encontram, pertencem ao mesmo fluxo.
6. Algumas imagens, por fim, para compreender a mística
da imagem garreliana e as forças bruscas, os
cortes que as separam e ligam. Nas duas primeiras, um
corte brusco do interior para o exterior, para uma memória
contada na cama por Ulrika (Johanna ter Steege), em
foco, a um ouvinte desfocado Paul (Lou Castel). Corte
seco para uma câmera na mão, que tenta
ser fixa mas treme um pouquinho, com que emulando a
trepidação do próprio casal que
está prestes a se despedir. Paul é casado
e ama Ulrika, ela já foi casada e não
ama Paul. Ou, ao menos, é o que ambos exteriorizam,
pois, afinal, há no cinema de Garrel um pouco
de solipsismo, da imbricação do delírio
dentro da realidade, ou da realidade composta apenas
de delírio. Selvagem reinstalação
de um tempo íntimo para um tempo objetivo (dado
pelo som das coisas do mundo que circunda o casal) numa
situação que permanece íntima (um
abraço apertado, a formação de
uma concha protetora). Além disso, a força
da luz branca, que preenche a tela depois do quase breu
da cena no quarto de hotel. Há choque, mas ele
atua na chave de delicadeza. As quatro imagens finais
são quatro planos seguidos logo depois que Paul
e Marcus chegam a Roma. Marcus se apressa em ligar para
a ex-mulher por quem ele é ainda apaixonado,
Paul vai deitar-se. Elipse. Vemos Hélène
deitada na cama, entregue, desarmada, dorso nu, olhando
fixamente. Corte para o rosto de Jean-Pierre Léaud
que, em comparação se mostra taciturno,
amargurado, olhando fixamente, desviando o olhar, o
plano dura bastante, as teclas do piano dificilmente
acasalam sua tristeza. Corte para Paul dormindo. Corte
brusco para a jovem que Paul conheceu seqüências
antes. Ela está banhada por uma luz mágica,
superexposta no limite da definição, como
uma aparição. É o momento clímax
do filme, aquele que revela a partir das situações
que cria motivos para que os personagens possam empreender
suas ações. Marcus que comprova definitivamente
o fim de uma ligação, Paul que vislumbra
o começo de um possível relacionamento.
Sem palavras, as quatro imagens se oferecem a nós
como elas são. Sorrisos, desarmes, preto desorientador,
branco místico, o labirinto da vida cotidiana
que por vezes apresenta oásis no virar de uma
esquina. A câmera de Philippe Garrel parece o
tempo inteiro querer escavar a vibração
interna dos lugares e das pessoas, a persistência
da câmera nos rostos em busca de um calor, da
força do amor ou da inconstância brutal
do mundo. Um cinema que, atribundo característica
de latência vulcânica a tudo que filma,
faz seu laço entre ficção e vida,
e, dessa forma, nos nutre.
Ruy Gardnier
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