NACHO LIBRE &
RICKY BOBBY: A TODA VELOCIDADE
Jared Hess, Nacho Libre, EUA, 2006
Adam McKay, Talladega Nights: The Ballad of Ricky Bobby, EUA, 2006

Ricky Bobby e Nacho Libre, lançados em dvd nos últimos meses, guardam, em sua estrutura, propostas de realização bastante semelhantes. A primeira, e óbvia, é a de servir de veículo para que seus astros, possivelmente os dois comediantes mais populares da atualidade, brilhem. É necessário, portanto, criar um personagem engraçado que funcione como a força centrípeta de todas as imagens, para o qual todas as atenções irão se voltar. Não por acaso, o nome de trabalho dos dois filmes, antes de serem lançados nos cinemas americanos, era simplesmente “The Untitled Will Ferrell Project” e “The Untitled Jack Black Project”. A segunda proposta, e complementar à primeira, é situar este personagem em um “mundo” pouco explorado, seja porque tal mundo é visto normalmente sob um prisma mais sério, seja porque ele simplesmente não é visto nos Estados Unidos. Assim surgem as corridas de Nascar, na América interiorana, e a história dos luchadores, no México pobre e religioso. A essa segunda característica podemos somar o fato de que tanto as corridas quanto as luchas libres irão servir como matéria-prima para um sem-número de piadas. A terceira qualidade dos filmes refere-se mais à construção de comédia que eles propõem: circundar o protagonista de coadjuvantes cômicos, apostar em um humor nonsense e raso (não estamos aqui, certamente, no terreno do refinamento), investir menos em um roteiro fixo e mais em questões de improvisação.

Os novos projetos de Will Ferrell e Jack Black não escapam, portanto, dos clichês das comédias americanas dos últimos anos (podemos dizer, inclusive, que não há nada nos dois filmes que represente um avanço, por menor que seja, ao tipo de comicidade apresentado em O Âncora, protagonizado pelo próprio Ferrell e dirigido também por McKay, ou em Com a Bola Toda). Ainda assim, Ricky Bobby é bom, e Nacho Libre bem ruim. Seria fácil responder a discrepância de resultados com outro clichê, de que o primeiro filme trabalha com esses lugares-comuns, enquanto o segundo sucumbe a eles. Apesar desta afirmação, em vista das duas obras, não deixar de ser verdade, é em outra característica muito diversa dessa turma de comediantes denominada “frat pack” que o filme de Ferrell supera o de Black, distante do simples retrabalhar de códigos cinematográficos, da paródia absurda e multireferencial que marca as comédias recentes. O que diverge de forma substancial nas duas obras é a posição que o filme toma em relação a seu protagonista ou, de forma inversa e ao mesmo tempo semelhante, de seu protagonista em relação ao filme.

Ainda que os atores mudem de um filme para outro (dentro de Ricky Bobby, o único “membro” remanescente dessa turma de comediantes é o próprio Ferrell), existe no filme da Nascar uma cumplicidade, um companheirismo entre protagonista, coadjuvantes, diretor e roteirista que tira o peso do filme daquilo que, ao mesmo tempo em que é seu grande trunfo, poderia ser a âncora: o tamanho de Will Ferrell em relação à obra audiovisual. Em A Toda Velocidade, o filme é maior do que Will Ferrell, que tem assim a chance de brilhar com liberdade, sem carregar a enorme responsabilidade de ter um filme em suas costas, o tempo todo. Em Nacho Libre, infelizmente, Jack Black é sempre (e não há dúvidas nisso) maior do que o filme. Cada plano de Nacho Libre precisa deixar claro o quanto Black é engraçado, em detrimento de outras possíveis fontes de risada. Dessa forma, o ator, encarregado de ser a graça de tudo, acaba por não ter graça nenhuma.

Pois, e isso talvez seja o mais importante, no momento em que o filme decide que sua única função é servir de veículo para o brilho de um comediante talentoso, todo o resto é exercido no piloto automático (para não dizer que, no fundo, seja feito na mais absoluta mediocridade). Ao roteiro, cabe pensar em cenas que – e não importa mais se elas pertencem propriamente ao filme – façam jus ao estilo de Black. Por isso, o ator tem um sotaque engraçado. Por isso, ele pode repetir suas famosas caretas em todas as seqüências. Por isso, volta e meia ele tem de cantar. À direção cabe fazer um close-up, quando existe um trejeito, ou um plano detalhe, quando o comediante resolve fazer uma gracinha. Naturalmente, é só não atrapalhar muito (e é incrível como as luchas libres, território perfeito para a criação de personagens nonsense e cenas estapafúrdias, são filmadas da forma mais careta e sem-graça possível). Ao resto dos atores, cabe permitir a Black que brilhe, quase sozinho. Nos momentos em que nada disso dá exatamente certo, adiciona-se o som de um pum para que o filme volte aos eixos. O comediante – e seus parceiros – talvez tenham se esquecido de que o que fazia de Escola do Rock um belo filme não era, pela primeira vez, Black ter um papel à sua altura, mas a troca que existia, a todo momento, entre ele e as crianças, e a necessidade de surpreendê-las cada vez mais (e, assim, surpreender o espectador). Em Nacho Libre, com o território ganho de início, não há quem Jack Black conquistar.

Por isso ele investe no mesmo repertório que o deixou famoso, sem mudança alguma. Não tendo, porém, um diretor que procure o melhor deste repertório, ou um roteiro que o instigue a buscar novas formas de contar suas velhas piadas, ou um grupo de coadjuvantes que o estimule a superá-los (no melhor sentido da palavra) a cada cena, todo o brilho de Jack Black sucumbe àquele que é seu grande perigo: Jack Black. É este risco que Will Ferrell sabe contornar, e talvez seu mérito como comediante esteja menos na capacidade de brilhar do que na de dividir seu palco. Não há, na construção do protagonista Ricky Bobby, muitas diferenças em relação ao de O Âncora, ou mesmo de Frank The Tank, de Dias Incríveis (ainda que este seja composto em um registro mais “realista”). Mas, ainda assim, seu humor continua com a mesma graça que nos filmes anteriores. Por quê?

Se em Nacho Libre o mundo era feito de Jack Black, em Ricky Bobby Will Ferrell precisa conquistá-lo. Não são poucas as seqüências nas quais são travados autênticos duelos verbais com John C. Reilly ou Sacha Baron Cohen (os dois muito bem, por sinal, como o melhor amigo e o grande rival de Ferrell, respectivamente). Adam McKay, o diretor, sabe também que o filme não pode ser construído a partir de um one-man show, e dá especial atenção aos detalhes, aos coadjuvantes que aparecem pouco, às cenas de corrida, às paródias e pequenas brincadeiras visuais. Existe, em Ricky Bobby, uma preocupação em construir uma narrativa cujo humor exista a partir do local (a América interiorana e conservadora) no qual o filme resolveu, não por acaso, se situar. Dessa forma, o espaço sempre funciona como um elemento a mais a ser colocado em cena. Não há brilhantismo algum em A Toda Velocidade, possivelmente nenhuma seqüência ficará marcada depois de alguns meses, mas o senso de diversão que parece perpassar a equipe, e a profunda vontade de todos, passada na tela numa forma ao mesmo tempo competitiva e amigável, de transformar tudo o que se possa na melhor piada, fazem com que Ricky Bobby permaneça prazeroso do início ao fim, como um produto que, se não traz fórmulas novas, repete as velhas como se ainda houvesse ali um manancial enorme, um mundo inteiro a explorar.

Nos extras dos DVDs, essas diferenças ficam claras. Em Nacho Libre, os comentários em áudio do diretor e protagonista quase nunca deixam de ser sérios, comentando como as locações são bonitas, como os atores estão bem e como aquelas cenas supostamente são engraçadas. Já nos de Ricky Bobby, sem Will Ferrell, o diretor, o produtor e outros coadjuvantes quase se esquecem do filme para construir, com voz em off, uma outra comédia, pautada pelas imagens, mas nunca presa a elas. É o mesmo espírito de improviso e humor do filme que existe nessas falas e também nas cenas que não entraram, ou nos testes de elenco (com as risadas do diretor ao fundo). Enquanto Nacho Libre leva a comédia a sério, Ricky Bobby: A Toda Velocidade sabe que ela não tem sentido algum a não ser que todo mundo se divirta. Aí se encontra, possivelmente, a razão mais profunda do fracasso de uma, e do sucesso de outra.


Leonardo Levis

(DVD Paramount e Sony Pictures)

 

 










Enquanto Jack Black posa sozinho, Will Ferrell divide
as glórias (e a graça) com quem estiver em volta