Ricky
Bobby e Nacho Libre, lançados em dvd nos
últimos meses, guardam, em sua estrutura, propostas
de realização bastante semelhantes. A primeira, e óbvia,
é a de servir de veículo para que seus astros, possivelmente
os dois comediantes mais populares da atualidade, brilhem.
É necessário, portanto, criar um personagem engraçado
que funcione como a força centrípeta de todas as imagens,
para o qual todas as atenções irão se voltar. Não por
acaso, o nome de trabalho dos dois filmes, antes de
serem lançados nos cinemas americanos, era simplesmente
“The Untitled Will Ferrell Project” e “The Untitled
Jack Black Project”. A segunda proposta, e complementar
à primeira, é situar este personagem em um “mundo” pouco
explorado, seja porque tal mundo é visto normalmente
sob um prisma mais sério, seja porque ele simplesmente
não é visto nos Estados Unidos. Assim surgem as corridas
de Nascar, na América interiorana, e a história dos
luchadores, no México pobre e religioso. A essa
segunda característica podemos somar o fato de que tanto
as corridas quanto as luchas libres irão servir
como matéria-prima para um sem-número de piadas. A terceira
qualidade dos filmes refere-se mais à construção de
comédia que eles propõem: circundar o protagonista de
coadjuvantes cômicos, apostar em um humor nonsense
e raso (não estamos aqui, certamente, no terreno do
refinamento), investir menos em um roteiro fixo e mais
em questões de improvisação.
Os novos projetos de Will Ferrell e Jack Black não escapam,
portanto, dos clichês das comédias americanas dos últimos
anos (podemos dizer, inclusive, que não há nada nos
dois filmes que represente um avanço, por menor que
seja, ao tipo de comicidade apresentado em O Âncora,
protagonizado pelo próprio Ferrell e dirigido também
por McKay, ou em Com a Bola Toda). Ainda assim,
Ricky Bobby é bom, e Nacho Libre bem ruim.
Seria fácil responder a discrepância de resultados com
outro clichê, de que o primeiro filme trabalha com esses
lugares-comuns, enquanto o segundo sucumbe a eles. Apesar
desta afirmação, em vista das duas obras, não deixar
de ser verdade, é em outra característica muito diversa
dessa turma de comediantes denominada “frat pack” que
o filme de Ferrell supera o de Black, distante do simples
retrabalhar de códigos cinematográficos, da paródia
absurda e multireferencial que marca as comédias recentes.
O que diverge de forma substancial nas duas obras é
a posição que o filme toma em relação a seu protagonista
ou, de forma inversa e ao mesmo tempo semelhante, de
seu protagonista em relação ao filme.
Ainda que os atores mudem de um filme para outro (dentro
de Ricky Bobby, o único “membro” remanescente
dessa turma de comediantes é o próprio Ferrell), existe
no filme da Nascar uma cumplicidade, um companheirismo
entre protagonista, coadjuvantes, diretor e roteirista
que tira o peso do filme daquilo que, ao mesmo tempo
em que é seu grande trunfo, poderia ser a âncora: o
tamanho de Will Ferrell em relação à obra audiovisual.
Em A Toda Velocidade, o filme é maior do que
Will Ferrell, que tem assim a chance de brilhar com
liberdade, sem carregar a enorme responsabilidade de
ter um filme em suas costas, o tempo todo. Em Nacho
Libre, infelizmente, Jack Black é sempre (e não
há dúvidas nisso) maior do que o filme. Cada plano de
Nacho Libre precisa deixar claro o quanto Black
é engraçado, em detrimento de outras possíveis fontes
de risada. Dessa forma, o ator, encarregado de ser a
graça de tudo, acaba por não ter graça nenhuma.
Pois, e isso talvez seja o mais importante, no momento
em que o filme decide que sua única função é servir
de veículo para o brilho de um comediante talentoso,
todo o resto é exercido no piloto automático (para não
dizer que, no fundo, seja feito na mais absoluta mediocridade).
Ao roteiro, cabe pensar em cenas que – e não importa
mais se elas pertencem propriamente ao filme – façam
jus ao estilo de Black. Por isso, o ator tem um sotaque
engraçado. Por isso, ele pode repetir suas famosas caretas
em todas as seqüências. Por isso, volta e meia ele tem
de cantar. À direção cabe fazer um close-up, quando
existe um trejeito, ou um plano detalhe, quando o comediante
resolve fazer uma gracinha. Naturalmente, é só não atrapalhar
muito (e é incrível como as luchas libres, território
perfeito para a criação de personagens nonsense
e cenas estapafúrdias, são filmadas da forma mais careta
e sem-graça possível). Ao resto dos atores, cabe permitir
a Black que brilhe, quase sozinho. Nos momentos em que
nada disso dá exatamente certo, adiciona-se o som de
um pum para que o filme volte aos eixos. O comediante
– e seus parceiros – talvez tenham se esquecido de que
o que fazia de Escola do Rock um belo filme não
era, pela primeira vez, Black ter um papel à sua altura,
mas a troca que existia, a todo momento, entre ele e
as crianças, e a necessidade de surpreendê-las cada
vez mais (e, assim, surpreender o espectador). Em Nacho
Libre, com o território ganho de início, não há
quem Jack Black conquistar.
Por isso ele investe no mesmo repertório que o deixou
famoso, sem mudança alguma. Não tendo, porém, um diretor
que procure o melhor deste repertório, ou um roteiro
que o instigue a buscar novas formas de contar suas
velhas piadas, ou um grupo de coadjuvantes que o estimule
a superá-los (no melhor sentido da palavra) a cada cena,
todo o brilho de Jack Black sucumbe àquele que é seu
grande perigo: Jack Black. É este risco que Will Ferrell
sabe contornar, e talvez seu mérito como comediante
esteja menos na capacidade de brilhar do que na de dividir
seu palco. Não há, na construção do protagonista Ricky
Bobby, muitas diferenças em relação ao de O Âncora,
ou mesmo de Frank The Tank, de Dias Incríveis
(ainda que este seja composto em um registro mais “realista”).
Mas, ainda assim, seu humor continua com a mesma graça
que nos filmes anteriores. Por quê?
Se em Nacho Libre o mundo era feito de Jack Black,
em Ricky Bobby Will Ferrell precisa conquistá-lo.
Não são poucas as seqüências nas quais são travados
autênticos duelos verbais com John C. Reilly ou Sacha
Baron Cohen (os dois muito bem, por sinal, como o melhor
amigo e o grande rival de Ferrell, respectivamente).
Adam McKay, o diretor, sabe também que o filme não pode
ser construído a partir de um one-man show, e
dá especial atenção aos detalhes, aos coadjuvantes que
aparecem pouco, às cenas de corrida, às paródias e pequenas
brincadeiras visuais. Existe, em Ricky Bobby,
uma preocupação em construir uma narrativa cujo humor
exista a partir do local (a América interiorana e conservadora)
no qual o filme resolveu, não por acaso, se situar.
Dessa forma, o espaço sempre funciona como um elemento
a mais a ser colocado em cena. Não há brilhantismo algum
em A Toda Velocidade, possivelmente nenhuma seqüência
ficará marcada depois de alguns meses, mas o senso de
diversão que parece perpassar a equipe, e a profunda
vontade de todos, passada na tela numa forma ao mesmo
tempo competitiva e amigável, de transformar tudo o
que se possa na melhor piada, fazem com que Ricky
Bobby permaneça prazeroso do início ao fim, como
um produto que, se não traz fórmulas novas, repete as
velhas como se ainda houvesse ali um manancial enorme,
um mundo inteiro a explorar.
Nos extras dos DVDs, essas diferenças ficam claras.
Em Nacho Libre, os comentários em áudio do diretor
e protagonista quase nunca deixam de ser sérios, comentando
como as locações são bonitas, como os atores estão bem
e como aquelas cenas supostamente são engraçadas. Já
nos de Ricky Bobby, sem Will Ferrell, o diretor,
o produtor e outros coadjuvantes quase se esquecem do
filme para construir, com voz em off, uma outra
comédia, pautada pelas imagens, mas nunca presa a elas.
É o mesmo espírito de improviso e humor do filme que
existe nessas falas e também nas cenas que não entraram,
ou nos testes de elenco (com as risadas do diretor ao
fundo). Enquanto Nacho Libre leva a comédia a
sério, Ricky Bobby: A Toda Velocidade sabe que
ela não tem sentido algum a não ser que todo mundo se
divirta. Aí se encontra, possivelmente, a razão mais
profunda do fracasso de uma, e do sucesso de outra.
Leonardo Levis
(DVD Paramount e Sony Pictures)
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