MAR DE ROSAS
Ana Carolina, Brasil, 1977

Ana Carolina, cineasta da histeria? Em Mar de Rosas, praticamente todas as cenas têm como ápice a confluência histérica dos personagens. Das Tripas Coração se estrutura de maneira parecida. Gregório de Mattos, um filme sobre a histeria da palavra. Getúlio Vargas, a histeria populista. Mas é diferente, por exemplo, do John Cassavetes de Uma Mulher Sob Influência, Noite de Estréia ou Love Streams. Em Cassavetes, a câmera desposa a histeria dos personagens, acompanhando-a de perto, se confundindo a ela, perdendo-se em uma decupagem clivada pelas emoções. Diferente também da forma totalmente impassível com que a câmera responde à histeria dos corpos em Aos Nossos Amores, de Pialat, onde as crises nervosas dos personagens são captadas em suas mínimas manifestações, que se dão no interior do enquadramento, como pequenas fendas no espaço-tempo dotadas de uma terrível força de aspiração.

Mar de Rosas
, de modo bem particular, traz a histeria como performance e jogo. A câmera não responde às atitudes dos personagens nem como um registrador passivo nem como um cúmplice enérgico. A câmera sobrevoa a cena, chega mais perto num momento, afasta-se em outro, marca sua presença mas não interfere na ação (é um pouco a câmera de O Anjo Exterminador do Buñuel). Como ela mesma diz na entrevista que vem de extra no DVD, Ana Carolina confia plenamente na decupagem dos planos, nos movimentos de câmera bem executados, nos enquadramentos bem compostos (para este filme ela conta com Lauro Escorel na fotografia). Os personagens de Mar de Rosas estão sempre à flor da pele, mas a diretora não. O filme não. Em Cassavetes, em Pialat, o plano não é regulado a priori, mas surge da cena e se prolifera indeterminadamente. Esse sistema formal invertido inexiste em Mar de Rosas; sua mise en scène procede, como de praxe na maioria dos cineastas, de uma decupagem em planos que reivindicam seus encaixes na montagem. O que não significa que ela limite demasiadamente o espaço dos atores: a despeito dos travellings e dos cortes que pontuam a cena através de comentários de todo intencionais (mordazes, cômicos, agressivos... o que importa para ela é a garantia de que um travelling ou um corte digam alguma coisa), os atores permanecem com uma grande liberdade de gestos e de jogo – do contrário seria até um desperdício, tendo em vista a característica do elenco.

Em seu primeiro longa de ficção, Ana Carolina propõe um teatro de micro-terrorismos e o encena com muita irreverência, uma dose considerável de humor negro, diálogos acavalados um no outro, um verdadeiro frenesi – embora haja um controle subjacente ao filme, uma sensação de que alguém está ali para impedir que aquilo vá até o fundo: a histeria é assim mesmo, não chega de fato a um ponto de culminância, não atinge um fim, apenas se dispersa para reganhar o fôlego e depois ressurgir, propagando-se em ciclos. Por isso que antes que uma cena consiga terminar, uma outra a atropela e faz o filme mudar de endereço. Não por acaso, é uma cena de atropelamento da personagem da Norma Bengell – que ironicamente se chama Felicidade – a catalisadora do grande encontro do filme, quando Betinha (Cristina Pereira começando no cinema), Felicidade e Orlando (Otávio Augusto), o homem que misteriosamente as acompanha, fazem uma pausa em sua viagem e ficam um pouco na casa dos personagens de Ary Fontoura e Myriam Muniz. Nessa casa ocorre a parte mais teatral e tagarela da narrativa – as seqüências são esgarçadas, às vezes até perdendo o interesse. O road movie definitivamente se transforma em histérico movie. Entra em cena uma vontade incontrolável da diretora de destruir o cenário, anarquizar o mundo enfadonho que os adultos vivem a alimentar mesmo estando insatisfeitos com ele – o que se confirmará no final, com Betinha empurrando a mãe e Orlando do trem, para prosseguir sozinha. A inscrição da diretora no filme está confessamente na personagem da adolescente Betinha. Seu gesto mais emblemático está nas giletes que ela esconde dentro do sabonete; sua cena de triunfo, aquela em que tranca a mãe num quarto e manda o caminhão de terra despejar tudo pela janela, quase a soterrando. Essa adolescente-incendiária transposta à própria estética do filme é seu mote principal.

Ana Carolina é receosa quanto às marcas de “surrealismo” em seus filmes. E ela tem razão: a quebra que efetua nas oposições teatro/vida, aparência/realidade ou ator/personagem requer uma nomenclatura mais escondida, sem identificação imediata com este ou aquele movimento artístico catalogado. Mar de Rosas permanece um filme interessante muito por conta disso, por não ter se deixado estacionar em definições preguiçosas. Nos extras, a entrevista feita por Evaldo Mocarzel mostra uma cineasta inquieta o suficiente para não caber em rótulos. A entrevista e o vídeo “O Passado e o Futuro” (trechos da mesma entrevista entrecortados por devaneios visuais de péssimo gosto) são por demais semelhantes para justificar essa separação em dois materiais distintos. Parece que foi só para incrementar a edição do DVD, meio que forçando a barra. A entrevista, contudo, vale a pena, pois Ana Carolina demonstra sua paixão eu não diria nem pelo cinema, mas pelo ato de filmar. Nenhuma novidade para quem já conhece seus filmes, nos quais a energia do set contamina o resultado final.


Luiz Carlos Oliveira Jr.

(DVD Videofilmes)

 

 








O mundo de pernas para o ar...


... ou acabando em barranco (Mar de Rosas)