Ana
Carolina, cineasta da histeria? Em Mar
de Rosas, praticamente todas as cenas têm como ápice
a confluência histérica dos personagens. Das
Tripas Coração se estrutura de maneira parecida.
Gregório de Mattos, um filme sobre a histeria da palavra. Getúlio Vargas, a histeria populista. Mas é diferente, por exemplo, do John Cassavetes de Uma Mulher
Sob Influência, Noite
de Estréia ou Love Streams. Em
Cassavetes, a câmera desposa a histeria dos personagens, acompanhando-a
de perto, se confundindo a ela, perdendo-se em uma decupagem clivada pelas emoções. Diferente também da forma
totalmente impassível com que a
câmera responde à histeria dos corpos em
Aos Nossos Amores,
de Pialat, onde as crises
nervosas dos personagens são captadas em suas mínimas
manifestações, que se dão no interior do enquadramento,
como pequenas fendas no espaço-tempo dotadas de uma
terrível força de aspiração.
Mar de Rosas, de modo bem particular, traz a histeria
como performance e jogo. A câmera não responde às atitudes
dos personagens nem como um registrador passivo nem
como um cúmplice enérgico. A câmera sobrevoa a cena,
chega mais perto num momento, afasta-se em outro, marca
sua presença mas não interfere
na ação (é um pouco a câmera de O Anjo Exterminador do Buñuel). Como ela mesma diz na entrevista que vem
de extra no DVD, Ana Carolina confia plenamente na decupagem
dos planos, nos movimentos de câmera bem executados,
nos enquadramentos bem compostos (para este filme ela
conta com Lauro Escorel na
fotografia). Os personagens de Mar
de Rosas estão sempre à flor da pele, mas a diretora
não. O filme não. Em Cassavetes, em Pialat, o plano não
é regulado a priori, mas surge da cena e se prolifera
indeterminadamente. Esse sistema formal invertido inexiste
em Mar de Rosas;
sua mise en scène procede, como de praxe na maioria dos cineastas,
de uma decupagem em planos
que reivindicam seus encaixes na montagem. O que não
significa que ela limite demasiadamente o espaço dos
atores: a despeito dos travellings e dos cortes que pontuam a cena através de comentários
de todo intencionais (mordazes, cômicos, agressivos...
o que importa para ela é a garantia de que um travelling ou um corte digam
alguma coisa), os atores permanecem com uma grande
liberdade de gestos e de jogo – do contrário seria até
um desperdício, tendo em vista a característica do elenco.
Em seu primeiro longa de ficção, Ana Carolina propõe
um teatro de micro-terrorismos e o encena com muita
irreverência, uma dose considerável de humor negro,
diálogos acavalados um no outro, um verdadeiro frenesi
– embora haja um controle subjacente ao filme, uma sensação
de que alguém está ali para impedir que aquilo vá até
o fundo: a histeria é assim mesmo, não chega de fato
a um ponto de culminância, não atinge um fim, apenas
se dispersa para reganhar o fôlego e depois ressurgir,
propagando-se em ciclos. Por isso que antes que uma cena consiga
terminar, uma outra a atropela e faz o filme mudar de
endereço. Não por acaso, é uma cena de atropelamento
da personagem da Norma Bengell
– que ironicamente se chama Felicidade – a catalisadora
do grande encontro do filme, quando Betinha (Cristina
Pereira começando no cinema), Felicidade e Orlando (Otávio
Augusto), o homem que misteriosamente as acompanha,
fazem uma pausa em sua viagem e ficam um pouco na casa
dos personagens de Ary Fontoura e Myriam Muniz. Nessa casa ocorre a parte mais teatral e tagarela
da narrativa – as seqüências são esgarçadas, às vezes
até perdendo o interesse. O road movie definitivamente
se transforma em histérico movie. Entra em cena uma vontade incontrolável da diretora
de destruir o cenário, anarquizar o mundo enfadonho
que os adultos vivem a alimentar mesmo estando insatisfeitos
com ele – o que se confirmará no final, com Betinha
empurrando a mãe e Orlando do trem, para prosseguir
sozinha. A inscrição da diretora no filme está confessamente
na personagem da adolescente Betinha. Seu gesto mais
emblemático está nas giletes que ela esconde dentro
do sabonete; sua cena de triunfo, aquela em que tranca
a mãe num quarto e manda o caminhão de terra despejar
tudo pela janela, quase a soterrando. Essa adolescente-incendiária
transposta à própria estética do filme é seu mote principal.
Ana Carolina é receosa quanto às marcas de “surrealismo”
em seus filmes. E ela tem razão: a quebra que efetua
nas oposições teatro/vida, aparência/realidade ou ator/personagem
requer uma nomenclatura mais escondida, sem identificação
imediata com este ou aquele movimento artístico catalogado.
Mar de Rosas permanece um filme interessante
muito por conta disso, por não ter se deixado estacionar
em definições preguiçosas. Nos extras, a entrevista
feita por Evaldo Mocarzel
mostra uma cineasta inquieta o suficiente para não caber
em
rótulos. A entrevista e o vídeo “O
Passado e o Futuro” (trechos da mesma entrevista entrecortados
por devaneios visuais de péssimo gosto) são por demais
semelhantes para justificar essa separação em dois materiais
distintos. Parece que foi só para incrementar a edição
do DVD, meio que forçando a barra. A entrevista, contudo,
vale a pena, pois Ana Carolina demonstra sua paixão
eu não diria nem pelo cinema, mas pelo ato de filmar.
Nenhuma novidade para quem já conhece seus filmes, nos
quais a energia do set contamina o resultado final.
Luiz Carlos Oliveira Jr.
(DVD Videofilmes)
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