APOCALYPTO
Mel Gibson, EUA, 2006

Mel Gibson é um cineasta intrigante. A começar pelo fato de que ele, afinal, é um cineasta. Este Apocalypto não deixa dúvidas de que o diretor não é apenas um profissional que fez mais de um filme, mas sim um homem de cinema interessado em ter uma estética, uma maneira particular (pessoal) de coordenar elementos (no caso, fílmicos) para apresentação. Mel Gibson tem um assunto. E uma forma de falar dele.

Parece consolidado neste último trabalho que Gibson faz filmes sobre a possibilidade da criação (cinematográfica) de um corpo que resiste ao sofrimento e, mais que isso, ao martírio. Seus personagens lutam para ser super-homens físicos diante de um oponente que se apresenta a eles com algo que poderíamos classificar como uma violência. Revisemos sua filmografia: O Homem sem Face (1993), Coração Valente (1995), A Paixão de Cristo (2004) e, agora, Apocalypto. Em todos eles, o personagem central é guiado por um desafio face ao sofrimento físico, um desafio de conquista. Mesmo que morram (como o líder escocês de seu segundo longa ou como Jesus) seus personagens acabam por promover grandes conquistas, para si mesmos e/ou para os seus.

No caso de Apocalypto, vemos o mesmo movimento: Jaguar, o jovem maia que é feito cativo junto com os companheiros de aldeia, deixando sua família para trás, luta para retornar a seu lar por meio de uma jornada - e este é outro movimento típico: a história narrada como percurso “em busca” - de sofrimento físico: é obrigado a andar amarrado a um tronco, a subir e descer montanhas correndo o risco de precipitar-se no penhasco, a presenciar execuções de companheiros, a escapar de lanças, de flechas. É perseguido pela floresta, lanceado, chicoteado, apanha, corre, salta de uma catarata, é sugado por areia movediça. E essa operação parece justificar a operação-assinatura estética de Gibson, o uso da câmera lenta.

Parece muito pouco como marca “artística”, mas é mais completo que isso. Gibson filma no gerúndio: ele quer o movimento na dimensão do "movimentando", como se o martírio estivesse sempre em curso, nunca concluído, como a história da tartaruga de Arquimedes, que nunca chegará ao final da corrida. Ao mesmo tempo, ele quer que o corpo seja visto de perto, que o sofrimento físico seja levado ao limite. É uma operação diferente do uso do slow motion, digamos, nos filmes de artes marciais.

Em, por exemplo, A Paixão de Cristo, esse recurso ocupava uma grande parte da metragem, conferindo à contemplação do martírio uma temporalidade que poderíamos chamar de intensiva, ou seja, de uma concentração do sofrimento e da tensão em um acontecimento discreto, curto, mas alongado temporalmente à força. Aqui, em Apocalyto, essa prática acaba por criar um movimento elástico entre essa temporalidade e uma outra, que poderíamos chamar de extensiva: a passagem do tempo se dá pela acumulação do martírio - intensificado pela intensividade - internalizado em uma espécie de corpo glorioso - diferente, curiosamente, do de Jesus, que, apesar de divino, sucumbe ao sofrimento e morre (ressuscitará depois, sabemos, mas na lógica do filme, o resultado do sofrimento é bastante outro). Jaguar será constituído justamente por esse jogo entre intensidade e extensividade.

Até por conta disso, não deixa de ser digno de nota a repetição de uma imagem em Apocalypto. É um plano bastante semelhante a um de Coração Valente e a outro de um filme que Gibson não dirigiu, mas no qual atuou, Patriota: o personagem corre na direção da câmera, em velocidade alterada, baixa. O resultado é o prolongamento da dor, o esticamento, a pura expectativa de uma ação cujo resultado desconfiamos, mas que é intermediada pela mecânica da intensidade. Não será nunca o resultado das ações o que importará a Gibson e sim a relação entre potência e velocidade.

Ora, não se pode ignorar um cinema que opere uma mecânica como essa.

Entretanto, apesar do jogo de velocidade da câmera, Apocalypto é, estranhamente, um filme de gênero: é um filme de ação hollywoodiano típico (com seus elementos de epopéia grega, como qualquer um), cuja peculiaridade é o cenário diferente. Na mecânica mais central, não é muito diferente de, por exemplo, Duro de Matar, de John McTiernan. Isso no sentido em que opera com regras de gênero.

Mais que isso, o filme opera com uma lógica de construção histórica curiosa. Primeiro, ele parte da idéia de construção de uma “normalidade” da comunidade maia que escolheu como objeto: eles caçam, eles se relacionam de maneira harmoniosa com a natureza - por mais que cassem, caçam para alimentação e para o prazer, nada mais “humano” -, eles trabalham com pequenas disputas cotidianas pelo poder - o que a falta de sutileza de Gibson como escritor converte em um conjunto de situações humorísticas grotescas. Depois, opõe essa normalidade da vida mais frugal a uma bestialidade da metrópole – o centro do império maia é o lugar de um Estado centrado em si e em uma visão cosmogônica totalitária. E por último opera uma oposição entre essa bestialidade e o horror que se saberá ser a chegada do homem branco à América. O apocalipse está inscrito na própria disputa: para Gibson, a sociedade maia acabará porque no fundo já estava acabada.

Essa mecânica aparece inscrita, por exemplo, na exuberantemente bem filmada seqüência da perseguição à anta e em sua revisão, a perseguição a Jaguar. Ambas são filmadas de maneira semelhante, irmanando-as e as espelhando: a normalidade da caçada não isenta a mesma de seu estatuto. É para a morte do perseguido que ela serve. A filmagem em alta velocidade rivaliza com a operação típica de Gibson que virá logo depois (o slow motion, claro). É o traço de diferenciação entre as caçadas, o traço de singularização de seu personagem central.

Por outro lado, há um grande conflito interno em Apocalypto. Embora seu interesse claramente não esteja inscrito no de um cinema “político”, a noção gibsoniana de uma política é clara e particularizante. Isso porque ele quer claramente deslocar toda a problemática para um mecanismo de gênero. Não há genealogia das ações, não importam suas origens, suas motivações. Em vez disso, apenas uma partição entre aqueles-que-sofrem e aqueles-que-fazem-sofrer. E uma partição como essa não é capaz de ser partição apenas, ela é, desde sempre, um posicionamento. É uma atribuição de papéis entre protagonista e antagonistas, mas na forma de, como disse, um mecanismo de gênero, a divisão entre bad-guys e good-guy (porque é aquele que consegue resistir aos ataques físicos a que é submetido. Todos seus protagonistas são predestinados). O conflito, então, é entre o uso do clichê e sua redefinição simbólica. Gibson não faz manipulação de gênero como, por exemplo, um Tarantino, que utiliza clichês para produzir um universo de cinema e, mais que isso, um conjunto de intensidades de lógica própria. Em vez disso, Gibson modula os elementos de sua história para fazê-los encaixar em uma mecânica de gênero (o do cinema de ação padrão). No caso de Jaguar, essa partição é ainda mais barata: no horizonte de sua jornada está não apenas o reencontro do lar, como ainda o reencontro com a mulher, com o filho pequeno e ainda com aquele que está para nascer (e a mulher carrega no ventre). Jaguar corre porque é bom. O problema dessa mecânica é o do fechamento de sentido: Gibson acaba por planificar seus personagens como tipos. E acaba fazendo pouca diferença sua escolha de cenário, sua escolha de personagem, suas escolhas. Ninguém parece ter muita escolha no cinema de Gibson. Nem os signos.


Alexandre Werneck