Mel
Gibson é um cineasta intrigante. A começar pelo fato
de que ele, afinal, é um cineasta. Este Apocalypto
não deixa dúvidas de que o diretor não é apenas um profissional
que fez mais de um filme, mas sim um homem de cinema
interessado em ter uma estética, uma maneira particular
(pessoal) de coordenar elementos (no caso, fílmicos)
para apresentação. Mel Gibson tem um assunto. E uma
forma de falar dele.
Parece consolidado neste último trabalho que Gibson
faz filmes sobre a possibilidade da criação (cinematográfica)
de um corpo que resiste ao sofrimento e, mais que isso,
ao martírio. Seus personagens lutam para ser super-homens
físicos diante de um oponente que se apresenta a eles
com algo que poderíamos classificar como uma violência.
Revisemos sua filmografia: O Homem sem Face (1993),
Coração Valente (1995), A Paixão de Cristo
(2004) e, agora, Apocalypto. Em todos eles, o
personagem central é guiado por um desafio face ao sofrimento
físico, um desafio de conquista. Mesmo que morram (como
o líder escocês de seu segundo longa ou como Jesus)
seus personagens acabam por promover grandes conquistas,
para si mesmos e/ou para os seus.
No caso de Apocalypto, vemos o mesmo movimento:
Jaguar, o jovem maia que é feito cativo junto com os
companheiros de aldeia, deixando sua família para trás,
luta para retornar a seu lar por meio de uma jornada
- e este é outro movimento típico: a história narrada
como percurso “em busca” - de sofrimento físico: é obrigado
a andar amarrado a um tronco, a subir e descer montanhas
correndo o risco de precipitar-se no penhasco, a presenciar
execuções de companheiros, a escapar de lanças, de flechas.
É perseguido pela floresta, lanceado, chicoteado, apanha,
corre, salta de uma catarata, é sugado por areia movediça.
E essa operação parece justificar a operação-assinatura
estética de Gibson, o uso da câmera lenta.
Parece muito pouco como marca “artística”, mas é mais
completo que isso. Gibson filma no gerúndio: ele quer
o movimento na dimensão do "movimentando",
como se o martírio estivesse sempre em curso, nunca
concluído, como a história da tartaruga de Arquimedes,
que nunca chegará ao final da corrida. Ao mesmo tempo,
ele quer que o corpo seja visto de perto, que o sofrimento
físico seja levado ao limite. É uma operação diferente
do uso do slow motion, digamos, nos filmes de
artes marciais.
Em, por exemplo, A Paixão de Cristo, esse recurso
ocupava uma grande parte da metragem, conferindo à contemplação
do martírio uma temporalidade que poderíamos chamar
de intensiva, ou seja, de uma concentração do sofrimento
e da tensão em um acontecimento discreto, curto, mas
alongado temporalmente à força. Aqui, em Apocalyto,
essa prática acaba por criar um movimento elástico entre
essa temporalidade e uma outra, que poderíamos chamar
de extensiva: a passagem do tempo se dá pela acumulação
do martírio - intensificado pela intensividade - internalizado
em uma espécie de corpo glorioso - diferente, curiosamente,
do de Jesus, que, apesar de divino, sucumbe ao sofrimento
e morre (ressuscitará depois, sabemos, mas na lógica
do filme, o resultado do sofrimento é bastante outro).
Jaguar será constituído justamente por esse jogo entre
intensidade e extensividade.
Até por conta disso, não deixa de ser digno de nota
a repetição de uma imagem em Apocalypto. É um
plano bastante semelhante a um de Coração Valente
e a outro de um filme que Gibson não dirigiu, mas no
qual atuou, Patriota: o personagem corre na direção
da câmera, em velocidade alterada, baixa. O resultado
é o prolongamento da dor, o esticamento, a pura expectativa
de uma ação cujo resultado desconfiamos, mas que é intermediada
pela mecânica da intensidade. Não será nunca o resultado
das ações o que importará a Gibson e sim a relação entre
potência e velocidade.
Ora, não se pode ignorar um cinema que opere uma mecânica
como essa.
Entretanto, apesar do jogo de velocidade da câmera,
Apocalypto é, estranhamente, um filme de gênero:
é um filme de ação hollywoodiano típico (com seus elementos
de epopéia grega, como qualquer um), cuja peculiaridade
é o cenário diferente. Na mecânica mais central, não
é muito diferente de, por exemplo, Duro de Matar,
de John McTiernan. Isso no sentido em que opera com
regras de gênero.
Mais que isso, o filme opera com uma lógica de construção
histórica curiosa. Primeiro, ele parte da idéia de construção
de uma “normalidade” da comunidade maia que escolheu
como objeto: eles caçam, eles se relacionam de maneira
harmoniosa com a natureza - por mais que cassem, caçam
para alimentação e para o prazer, nada mais “humano”
-, eles trabalham com pequenas disputas cotidianas pelo
poder - o que a falta de sutileza de Gibson como escritor
converte em um conjunto de situações humorísticas grotescas.
Depois, opõe essa normalidade da vida mais frugal a
uma bestialidade da metrópole – o centro do império
maia é o lugar de um Estado centrado em si e em uma
visão cosmogônica totalitária. E por último opera uma
oposição entre essa bestialidade e o horror que se saberá
ser a chegada do homem branco à América. O apocalipse
está inscrito na própria disputa: para Gibson, a sociedade
maia acabará porque no fundo já estava acabada.
Essa mecânica aparece inscrita, por exemplo, na exuberantemente
bem filmada seqüência da perseguição à anta e em sua
revisão, a perseguição a Jaguar. Ambas são filmadas
de maneira semelhante, irmanando-as e as espelhando:
a normalidade da caçada não isenta a mesma de seu estatuto.
É para a morte do perseguido que ela serve. A filmagem
em alta velocidade rivaliza com a operação típica de
Gibson que virá logo depois (o slow motion, claro).
É o traço de diferenciação entre as caçadas, o traço
de singularização de seu personagem central.
Por outro lado, há um grande conflito interno em Apocalypto.
Embora seu interesse claramente não esteja inscrito
no de um cinema “político”, a noção gibsoniana
de uma política é clara e particularizante. Isso porque
ele quer claramente deslocar toda a problemática para
um mecanismo de gênero. Não há genealogia das ações,
não importam suas origens, suas motivações. Em vez disso,
apenas uma partição entre aqueles-que-sofrem e aqueles-que-fazem-sofrer.
E uma partição como essa não é capaz de ser partição
apenas, ela é, desde sempre, um posicionamento. É uma
atribuição de papéis entre protagonista e antagonistas,
mas na forma de, como disse, um mecanismo de gênero,
a divisão entre bad-guys e good-guy (porque
é aquele que consegue resistir aos ataques físicos a
que é submetido. Todos seus protagonistas são predestinados).
O conflito, então, é entre o uso do clichê e sua redefinição
simbólica. Gibson não faz manipulação de gênero como,
por exemplo, um Tarantino, que utiliza clichês para
produzir um universo de cinema e, mais que isso, um
conjunto de intensidades de lógica própria. Em vez disso,
Gibson modula os elementos de sua história para fazê-los
encaixar em uma mecânica de gênero (o do cinema de ação
padrão). No caso de Jaguar, essa partição é ainda mais
barata: no horizonte de sua jornada está não apenas
o reencontro do lar, como ainda o reencontro com a mulher,
com o filho pequeno e ainda com aquele que está para
nascer (e a mulher carrega no ventre). Jaguar corre
porque é bom. O problema dessa mecânica é o do fechamento
de sentido: Gibson acaba por planificar seus personagens
como tipos. E acaba fazendo pouca diferença sua escolha
de cenário, sua escolha de personagem, suas escolhas.
Ninguém parece ter muita escolha no cinema de Gibson.
Nem os signos.
Alexandre Werneck
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