MOSTRA DE TIRADENTES
Cobertura diária

Dia 7: Cine Tapuia, de Rosemberg Cariry (Brasil, 2006)

Há em Cine Tapuia uma imensa vontade de passado, e ela se manifesta para além do que possa sugerir o retorno ao mito de fundação da nacionalidade assumido pelo romance Iracema. Esta fonte cultural maior já aparece devidamente relativizada numa pequena seqüência, logo no começo do filme, onde vemos vários mendigos dormindo aos pés de uma estátua de José de Alencar: atropelado pelo tempo, aquilo que um dia significou a representação legítima da formação do país hoje está completamente destituído de visibilidade. Sua validade, no entanto, ainda se aplica a este povo brasileiro que chega aos anos 2000 caindo diante dos mesmos obstáculos de três séculos antes, e assim, reviver a relação entre uma índia brasileira e um colonizador português, agora travestidos de trabalhadora de um cinema itinerante e camelô de discos piratas, é tentar contaminar o presente de alguma lição aprendida, mas infelizmente esquecida, tempos atrás.

Impossível evitar a idéia um tanto cruel da predestinação, onde mesmo um retorno tão afetivo quanto este promovido por Rosemberg Cariry acaba se rendendo a uma certa inevitabilidade, superior a qualquer desejo de contorná-la. Assim, ainda que a fronteira entre o bem e o mal parece bastante diluída no começo, e o romance entre Iracema e seu português Martim soe sincero das duas partes, logo veremos o rapaz assumir a face histórica que lhe é "natural", para que então abandone grávida sua amada, como fizera com várias outras, tente levar vantagem sobre a ingenuidade do poder local, negocie produtos que não existem, seguindo um script muito maior do que as suas próprias possibilidades de personagem de um filme de agora. Que todas suas malvadezas sejam anunciadas num programa jornalístico sensacionalista da tevê, desses que existem nos canais abertos no fim da tarde, não significa que sua sorte tenha sido igualmente atualizada. Do mesmo modo, caberá à Iracema seguir seu rosário de expiações sozinha, acompanhada apenas de seu pai, o Cego Araquém, espécie de consciência falante da moça.

Cine Tapuia deixa escapar um sentimento que está presente em seu próprio corpo, pulsante o bastante para combater este rumo imutável do destino. Nas exibições do cinema itinerante que dá nome ao filme, em vilarejos do interior do Ceará que nunca tiveram salas regulares, onde aquelas imagens projetadas numa tela em forma de vela de jangada são uma absoluta novidade, Cariry sempre se atém aos rostos dos espectadores, muitas vezes de pé, todos com os olhos apontando para fora do quadro, ali onde sabemos que a projeção dos filmes se realiza. Ainda assim há nesses olhares, no limite uma busca por algo que acontece no horizonte, um brilho que é maior do que o reflexo da luz vinda da tela, um brilho que deseja a surpresa do que está à sua frente. Do mesmo modo, contra esta consideração dos limites da cultura, que começaria num ponto (o romance de José de Alencar) e terminaria em outro (sua reverberação por obras como o próprio Cine Tapuia), o que vemos aqui é disposição para o movimento interior, onde importa muito mais o que se faça dessa cultura entre estes intervalos definidores do que aquilo para o qual ela fatalmente rumará.

É das andanças de Iracema e do Cego Araquém que surgem as maiores forças de Cine Tapuia, nesse quase filme-de-esquetes que pára em comunidades indígenas para exibir O Descobrimento do Brasil, de Humberto Mauro, e depois chega a um acampamento de sem-terras ("E a luta, como é que tá a luta?", pergunta Araquém para o líder do grupo, como se estivesse conduzindo as entrevistas para um documentário de sua própria trajetória sertão adentro); se deixando impregnar dos novos signos dessa cultura em trânsito tão constante quanto o de sua própria caminhonete-cinema, e assim relembrando velhas canções do Cego Aderaldo, tocadas num gramofone à beira da estrada, participando de uma festa para o casamenteiro Santo Antônio, ou finalmente chegando a uma cidade grande, Quixadá, onde acontecem shows de música do mundo inteiro.

O caminho é de puro sonho (Iracema, que anima as sessões do Cine Tapuia cantando modas populares com uma viola, se imagina no palco de Quixadá, cantando para a multidão aglomerada na praça), mas o sentido, anunciado desde o começo, era a tragédia. Uma transferência fundamental acontece no parto da moça, mas Cariry não a absorve para seu filme: enquanto nasce o bebê, num lugar deserto depois de uma sessão frustrada do cinema mambembe, onde estão apenas Iracema e Araquém, a imagem do parto é jogada na tela armada sobre os dois, como se a realidade daquele nascimento, diferente de todo o passado acumulado nas costas destes personagens, fosse finalmente assumida pela ficção, como se tudo já não pudesse ser outra coisa que não filme, e por isso, passível de todas alterações que se deseje. Mas a luta de Iracema com seu destino segue sendo a mesma, e ele acaba manifestando seu poder. Nascido o filho da índia com o português, da Vera Cruz com a Coroa, nasce Moacir, como dito por seu avô, "o filho do sofrimento", por fim, "um brasileiro", síntese do país. No plano final de Cine Tapuia, convivem as duas possibilidades por ele apresentadas: Araquém está com o neto no colo, diante do mar (sempre o mesmo destino, do sertão para o mar), e ainda que o sol brilhe, e ainda que esteja virado para a costa, sua condição de cego impede qualquer relação com o que esteja à frente, e assim Rosemberg Cariry talvez queira que seja, ainda que muito do que se vê seu próprio filme testemunhe em contrário.


Rodrigo de Oliveira