O portão de uma casa habitada por uma família, imagem
que indica a entrada e o início de um caminho que tem
como seu ponto de chegada a ambiência serena e afetuosa
de um lar, é o primeiro signo que nos é apresentado
por Um Estranho em Minha Casa. Em cima dessa
imagem/signo vemos os créditos iniciais do filme, que
após nos apresentar o conjunto de atores e técnicos
envolvidos em sua realização, antecede o começo da narrativa
com uma cartela institucional. Nela, os produtores agradecem
a instituições (à polícia, às forças armadas, à prefeitura,
aos hospitais) pela colaboração dada ao filme e afirmam
que por intermédio desta foi possível concretizar uma
obra profundamente “realista e brilhante”.
Percebemos aí, logo de cara, a utilização estratégica
do adjetivo “realista” como indicador de um critério
de qualidade e renovação. A indústria cinematográfica
egípcia (a única do mundo árabe, apta por sua produtividade,
a receber essa classificação) adquiriu significativa
força a partir da década de 30 através do papel exercido
por estúdios mantidos pela iniciativa privada, como
é o caso dos estúdios MISR. Essa produção é considerada
pela maioria dos historiadores/pesquisadores que se
debruçaram no estudo da cinematografia árabe como absolutamente
mimética à Hollywood. Os poderosos magnatas, empresários
e industriais egípcios, ávidos pela diversificação de
seus negócios, ao elegerem a atividade cinematográfica
teriam enxergado na repetição das velhas fórmulas a
chave para o lucro fácil e garantido. Tal visão do cinema
egípcio pré-1952 como exclusivamente escapista, comercial
ao extremo, pouco “artístico” e afastado da realidade
social do país, foi reforçada quando em 1947 foi promulgado
um rígido código de censura (claramente inspirado no
modelo norte-americano) que vetava, sem pudor, a representação
das classes populares. A periferia e os bairros pobres
não deveriam existir como cenários, os camponeses e
o crescente proletariado urbano eram personagens do
mundo “real” que não poderiam de maneira nenhuma penetrar
no Mundo do Cinema. Realidade e Cinema eram elementos
conscientemente trabalhados como esferas opostas, logo
o diálogo entre elas estava impossibilitado.
Houveram exemplares isolados de um cinema com fortes
inspirações “realistas”: Al-azima/ A Determinação
(Kamal Selim, 1939) e As-suq alasuad/O Mercado
Negro (Kamal al-Telemsani, 1945), porém essa tendência,
consideravelmente ampliada pela difusão dos principais
filmes neo-realistas italianos, só ganharia maior relevo
após a revolução encabeçada por Gamel Abdel Nasser em
1952. Os principais nomes da etapa “realista” desse
renovado cinema egípcio seriam Yussef Chahine, Salah
Abu Seyf e Tawfiq Salah. Porém, mesmo esses três diretores
que, com a exceção de Tawquif Salah, já tinham realizado
filmes nos anos 40, teriam que injetar o desejado realismo
com uma certa dose de parcimônia. O aspecto realista
desses filmes pós-revolução nasserista acabavam sendo
diluídos em um caldo melodramático predominante. O melodrama
como gênero de imbatível apelo popular e o uso de um
sólido star system (encabeçado sobretudo pelo
par romântico Omar Sharif/ Faten Hamana) permaneciam
como as principais ferramentas utilizadas para se chegar
ao grande público. Portanto, esse frágil realismo se
ancorava muitas vezes apenas na solução fotográfica
de se usar luz natural, mesclada com o olhar voltado
para os ambientes/personagens populares. A narrativa,
a dramaturgia, os diálogos e as soluções de mise-en-
scène ainda eram bastante devedoras do cinema clássico.
O realismo seria então aqui efetivado como um adorno,
mais como um floreio diferenciador e menos como uma
essência diferencial, manuseada acima de tudo para separar
e delimitar, um pretenso novo cinema que estaria por
vir, daquele velho cinema que já foi.
Essa dicotomia estabelecida entre um “velho cinema”
versus um “novo cinema” é onipresente em Um Estranho
em Minha Casa. O que esse filme teria de “clássico”
e o que ele emanaria de “novo”? Em uma primeira aproximação
percebemos que ele opera tímidas tentativas inovadoras
(sobretudo no contexto egípcio) estando mergulhado até
o pescoço em uma estrutura clássica. O que o sustenta
e o que o mantêm de pé é a narrativa clássica, ela é
o seu ar, é ela que oxigena o seu cérebro. Porém, simultaneamente
a essa constatação, sentimos que há ali, algumas vezes
escondido e em outras não, um desejo de inovação. No
meio daquelas fortes e constantes tinturas morais, utilizadas
de maneira extremamente didáticas – a defesa incondicional
da família como instituição sagrada e da educação como
o bem maior a ser cultivado pelo Homem – notamos um
incubado movimento de ir além. Porém, esse ir além,
se chega a existir como um anseio, acaba sendo seguidamente
freado pelo todo que o engole.
Ibrahim Hamdy (Omar Sharif) é um herói clássico até
o último fio de cabelo. Em sua sólida e metálica fortaleza
moral não há aberturas para ambigüidades, dúvidas existenciais
ou conflitos psicológicos. O seu ideal é reto e direcionado
para um ponto minuciosamente focalizado. A sua motivação
e a razão de sua existência é uma só: salvar o Mundo
e, por conseguinte, carregar todas as suas injustiças
nas costas. Cabe a ele ser o responsável pelas dores
do Mundo e aqui Mundo é lido como país, logo a libertação
do Egito e a aniquilação das forças imperialistas britânicas
estão exclusivamente em suas mãos. Newal, a jovem que
por ele se apaixona, vê na imagem de seu amado a luz
e a força indestrutível de um verdadeiro Deus. Força
que será capaz de remover e ultrapassar todos os obstáculos
para promover o bem. Quando o seu irmão Mohel e o primo
Abdel Hamid foram presos, ela realmente acreditava que
no exato momento em que Ibrahim se interasse do fato,
ele os libertaria em uma fração de segundo. De fato,
se lembrarmos da extrema facilidade com que o protagonista
entra no palácio de governo, mata o 1º Ministro e foge
da prisão dias depois, tendemos a concordar com Newal
a respeito da invulnerabilidade de nosso herói. Tamanho
aspecto invencível é explicado pela força de seus objetivos.
Quando Abdel Hamid pergunta com evidente perplexidade
sobre a razão que o levou a assassinar o governante,
sacrificando assim o seu futuro, Ibrahim responde: “Fé,
se tiver fé em seus princípios, jamais terá dúvidas”.
Em um outro momento, o personagem afirma: “servir o
meu país não foi uma questão pessoal”. Esse impetuoso
sentimento de doação, de se sacrificar pela coletividade
ou pela entidade que ele compreende como “povo”, está
intimamente entrelaçado com a atmosfera religiosa/messiânica
onipresente no transcurso da narrativa. Fé e nacionalismo
são aqui substâncias indissociáveis. Ser patriota é
tão natural quanto acreditar em Deus. Ser patriota transcende
o fato de ser ou não politizado. Quando a “sagrada família”
se encontrava no dilema entre dar ou negar abrigo a
Ibrahim, a apolítica Newal diz que sendo egípcios eles
teriam a obrigação de acolhê-lo. A igualmente alienada
Samia, afirma que “até mesmo um ateu” teria dado abrigo
ao fugitivo. Convencido por esse argumento, de que é
necessário socorrer o próximo quando este se encontra
em apuros, o Pai volta atrás e o recebe em seu lar.
O pai alega que seu ato não o faz se envolver com política
e que o mesmo se funda unicamente no sentimento religioso
de ajudar o seu semelhante. Porém, todos sabiam que
Ibrahim não era um assassino comum e tinham a ciência
do que o levou a matar. O grande temor pela política
sentido e difundido pelo patriarca se baseia na possibilidade
que ela apresenta em levar seus entes queridos para
caminhos perigosos. O Pai aconselha Mohel a se dedicar
exclusivamente em seus estudos e a nunca se envolver
com os “amigos de Ibrahim”. A política e os indivíduos
que estavam próximos dela eram sem dúvida más companhias.
O discurso de que é importante ser fiel à pátria e de
que a política é um negócio arriscado e para poucos,
mais do que emanar das ações/falas dos personagens,
acaba adquirindo maior relevância através do uso das
tais estratégicas clássicas priorizadas pelo filme.
Ao fazer uso do herói idealizado, Um Estranho em
Minha Casa corrobora a idéia de que a sua atitude
revolucionária é uma exceção e não uma regra. Aqueles
manifestantes que aparecem no inicio da narrativa formam
uma massa e um todo homogêneo. Não existem outros Ibrahims
no meio daquela multidão que se rebela. Aquela massa
não é composta por vários Ibrahims, e sim por indivíduos
cujos rostos são apagados para que possamos enxergar
com extrema nitidez apenas o rosto do nosso grande herói.
Até mesmo os outros líderes estudantis, companheiros
próximos do protagonista, não possuem a sua inabalável
integridade ética. Um deles chega a sonegar informação
para que o líder possa se exilar na França.
Em várias falas o protagonista diz que a família que
o acolheu não tem “culpa”, porque não se envolve com
política. A política é realmente algo para poucos abnegados
que lutam e se interessam pelo bem-estar do povo. Este
deve se preocupar apenas com os seus estudos, com o
seu trabalho e com a sua vida cotidiana, deixando que
esses poucos o conduzam. A determinação e o caráter
de Ibrahim é vista pelo espectador como algo louvável,
mas, também, sobrenatural. Ao mesmo tempo em que queremos
ser como ele, devido ao processo de identificação que
se consolidou, consideramos que alguém como ele “é coisa
de cinema”, afirmação que comprova que, apesar do uso
de um pretenso “realismo”, o que sobressai é o espetáculo
clássico e as convenções de representação.
Estevão Garcia
(DVD Magnus Opus)
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