NAPOLEON DYNAMITE
Jared Hess, EUA, 2004

Antes da presença encaracolada, lentes-grossas e boca-sempre-aberta de Jon Heder, o cinema americano não tinha mais do que uma vaga idéia do que poderia ser a imagem de um nerd. Napoleon Dynamite restabelece alguns elos na cadeia devoradora do universo colegial, atribuindo características até então inimagináveis a alguns de seus elementos, recolocando outros em seus devidos lugares (a diferença entre presa e predador nunca foi tão pouca, e ainda assim, tão definitiva), assumindo eventualmente uma posição clara nessa briga de foices, e como fica evidente desde as duas primeiras seqüências do filme, essa posição é bem ao lado deste protagonista extraordinário. Logo no começo vemos Napoleon tomar o ônibus escolar, adolescente gigante no meio de meninos de 10 anos de idade. Sentado na última fileira, desenrola um fio preso ao corpo de um bonequinho de ação e, lançando-o janela afora, faz correr atrás de si, arrastado pelo asfalto, o boneco amarrado. Mas há aí um corte, e no momento seguinte Napoleon está diante de sua classe, atualizando os colegas a respeito das últimas tentativas de captura do monstro do Lago Ness. Antes que as risadas da turma atrapalhem seu discurso, o rapaz prossegue dando o nome de um sir escocês empenhado na aventura, fala de bruxos e magias, e então mais um corte. Estas duas ações, isoladas de qualquer explicação ou conseqüência, momentos de liberdade deste personagem em relação às suas expressões naturais, não poderiam obter do filme outra resposta que não este corte a impedir qualquer desdobramento. Ali já sabemos que a figura de Napoleon tem autonomia o bastante para se construir múltiplo, diferente, e se Jared Hess pega seu nome emprestado para o próprio filme que dirige, não só a confiança de absorver todas essas demonstrações da riqueza de sua personalidade, mas a contrapartida da tomada de lado, da ridicularização de tudo o que não for igualmente rico, serão atitudes fundamentais.

Porque fomos levados a crer, a golpes de Lindsay Lohan, que aquilo que separa a alta casta do high school e os pobres e mal-vestidos mortais é o sentimento puro e distinto da bondade; uma diferença clara entre este bem-aventurado baixo clero e aquelas execráveis meninas malvadas foi traçada, e pouco importava se a figura de intersecção entre um gordinho afeminado e sua amiga lésbica neo-punk e as loiras populares, lindas e platinadas fosse uma atriz-cantora cuja imagem estivesse evidentemente mais identificada a este último grupo. Napoleon Dynamite invoca uma outra relação de forças, anterior a este julgamento de caráter da juventude. Antes de bons e maus, antes mesmo de nerds ou jogadores de futebol americano, de meninas desenxabidas ou musas adolescentes, o que precisa ser dito é que, no colegial, todos são idiotas. Voltar a câmera para este ambiente escolar passa a ser, então, a percepção do tipo de idiotice que ainda parece valer a pena, aquela que se cria como a pura impossibilidade de funcionamento sob o regime da razão estabelecida, sendo necessária uma razão própria, que absorva todo traço de ignorância como uma nova chance de conhecimento (de si mesmo, da vida, dos outros).

É por isso que Napoleon está sempre, e literalmente, na linha de frente do filme. O modo de falar de Jon Heder, com uma impostação anti-natural, projetando a voz para muito além das necessidades dos ambientes específicos por onde anda, os olhos constantemente fechados, como que a separar o tempo de seu raciocínio do tempo do mundo, e sua relação com a câmera, quase sempre frontal, perdendo o olhar num fora-da-tela sem alvo direto, criam uma estranha pedagogia da idiotice, proto-brechtiana, momentos em que Napoleon Dynamite se coloca em primeiro plano, deixando a falta de foco para o que acontece atrás de si, e ali constrói-se como a imagem possível do perdedor com o qual só temos a ganhar.

Seu oposto, se assim podemos dizer, é Don, o loiro forte e alto de cabelos cheios de gel, quarterback do time de futebol, namorado da garota mais linda do colégio. À imagem clássica do macho estudantil superior é colada uma babaquice magistral: não há nenhuma cena em que Don não apareça fazendo alguma careta, sempre pretendida como desdém à alguma das pirações de Napoleon, mas cujo efeito imediato é sua própria ridicularização (ajudado em muito pela boa canastrice do ator Trevor Snarr). Enquanto a namoradinha Summer faz o discurso da campanha para a presidência do grêmio do colégio, dois contraplanos definem os eleitos e os derrotados em Napoleon Dynamite. Primeiro, diante de promessas como brilho labial grátis no banheiro feminino, o diretor Jared Hess opõe à imagem da líder-de-torcida três moleques em plano conjunto, um gordinho, outros dois magricelas de óculos e roupas sociais, todos com uma cara de absoluto desprezo pela idéia em que aquela garota está envolvida. No fim do discurso, diante da platéia estática, Don é o único de pé, vibrando e dando socos espertos no ar a cada palavra. Não queremos a imbecilidade disfarçada pela beleza, mas sim a própria beleza da imbecilidade.

Queremos que Pedro Sanchéz, amigo latino de Napoleon, o único com bigode na escola inteira, cumpra a promessa que faz durante seu próprio discurso de candidato, queremos que torne realidade todos os nossos sonhos mais loucos. A loucura, entenda-se bem, passa longe de qualquer patologia mental que se possa atribuir ao nosso protagonista. Napoleon Dynamite, de certa maneira, já trabalhava para fazer exatamente isso. A realidade do filme foi, desde o começo, o espaço de convergência das loucuras específicas. Estamos num espaço geográfico claramente demarcado, a cidade de Preston, no interior do estado de Idaho, mas a vastidão do deserto em torno da cidade, sempre utilizado como referência pela câmera, empresta à cidade uma sensação de trânsito, de movimento. Do mesmo modo, mas ainda mais radicalmente, o tempo deste lugar aparece embaralhado, algo entre os anos 80 e os anos 2000, e se a abertura traz uma música do White Stripes, o baile será regado à Forever Young e The Promisse, para que então pulemos aos Backstreet Boys sem a menor cerimônia. O computador que o irmão de Napoleon usa está ligado à internet, mas o vídeo-cassete da casa parece ainda um dos primeiros protótipos do aparelho, e essa fluidez temporal, no limite apenas mais uma das demonstrações de uma loucura tornada realidade na materialização do filme, é também a fluidez do próprio protagonista. Nunca estivemos diante de um fraco tão forte, sempre irritadiço, enfrentando os valentões aos gritos de “stupid!”, resmungando interjeições engraçadíssimas a cada frustração, se permitindo momentos de puro encantamento com suas próprias possibilidades, como na coreografia do Clube Mãos Felizes, ou na consagração final dançando black music para uma platéia estarrecida. Desse cruzamento torto de Porky’s com Elefante sai um sujeito repleto de uma raiva que não sabemos exatamente de onde vem, e que dá vazão à ela tratando o mundo como um palco cuja fraqueza maior é a suscetibilidade à sua comédia física involuntária. Um perfeito idiota, daqueles que fazemos questão de abraçar.


Rodrigo de Oliveira

(DVD Paramount)

 

 







Os nerds contra-atacam em Napoleon Dynamite