Antes
da presença encaracolada, lentes-grossas e boca-sempre-aberta
de Jon Heder, o cinema americano não tinha mais do que
uma vaga idéia do que poderia ser a imagem de um nerd.
Napoleon Dynamite restabelece alguns elos na
cadeia devoradora do universo colegial, atribuindo características
até então inimagináveis a alguns de seus elementos,
recolocando outros em seus devidos lugares (a diferença
entre presa e predador nunca foi tão pouca, e ainda
assim, tão definitiva), assumindo eventualmente uma
posição clara nessa briga de foices, e como fica evidente
desde as duas primeiras seqüências do filme, essa posição
é bem ao lado deste protagonista extraordinário. Logo
no começo vemos Napoleon tomar o ônibus escolar, adolescente
gigante no meio de meninos de 10 anos de idade. Sentado
na última fileira, desenrola um fio preso ao corpo de
um bonequinho de ação e, lançando-o janela afora, faz
correr atrás de si, arrastado pelo asfalto, o boneco
amarrado. Mas há aí um corte, e no momento seguinte
Napoleon está diante de sua classe, atualizando os colegas
a respeito das últimas tentativas de captura do monstro
do Lago Ness. Antes que as risadas da turma atrapalhem
seu discurso, o rapaz prossegue dando o nome de um sir
escocês empenhado na aventura, fala de bruxos e magias,
e então mais um corte. Estas duas ações, isoladas de
qualquer explicação ou conseqüência, momentos de liberdade
deste personagem em relação às suas expressões naturais,
não poderiam obter do filme outra resposta que não este
corte a impedir qualquer desdobramento. Ali já sabemos
que a figura de Napoleon tem autonomia o bastante para
se construir múltiplo, diferente, e se Jared Hess pega
seu nome emprestado para o próprio filme que dirige,
não só a confiança de absorver todas essas demonstrações
da riqueza de sua personalidade, mas a contrapartida
da tomada de lado, da ridicularização de tudo o que
não for igualmente rico, serão atitudes fundamentais.
Porque fomos levados a crer, a golpes de Lindsay Lohan,
que aquilo que separa a alta casta do high school e
os pobres e mal-vestidos mortais é o sentimento puro
e distinto da bondade; uma diferença clara entre este
bem-aventurado baixo clero e aquelas execráveis meninas
malvadas foi traçada, e pouco importava se a figura
de intersecção entre um gordinho afeminado e sua amiga
lésbica neo-punk e as loiras populares, lindas e platinadas
fosse uma atriz-cantora cuja imagem estivesse evidentemente
mais identificada a este último grupo. Napoleon Dynamite
invoca uma outra relação de forças, anterior a este
julgamento de caráter da juventude. Antes de bons e
maus, antes mesmo de nerds ou jogadores de futebol americano,
de meninas desenxabidas ou musas adolescentes, o que
precisa ser dito é que, no colegial, todos são idiotas.
Voltar a câmera para este ambiente escolar passa a ser,
então, a percepção do tipo de idiotice que ainda parece
valer a pena, aquela que se cria como a pura impossibilidade
de funcionamento sob o regime da razão estabelecida,
sendo necessária uma razão própria, que absorva todo
traço de ignorância como uma nova chance de conhecimento
(de si mesmo, da vida, dos outros).
É por isso que Napoleon está sempre, e literalmente,
na linha de frente do filme. O modo de falar de Jon
Heder, com uma impostação anti-natural, projetando a
voz para muito além das necessidades dos ambientes específicos
por onde anda, os olhos constantemente fechados, como
que a separar o tempo de seu raciocínio do tempo do
mundo, e sua relação com a câmera, quase sempre frontal,
perdendo o olhar num fora-da-tela sem alvo direto, criam
uma estranha pedagogia da idiotice, proto-brechtiana,
momentos em que Napoleon Dynamite se coloca em primeiro
plano, deixando a falta de foco para o que acontece
atrás de si, e ali constrói-se como a imagem possível
do perdedor com o qual só temos a ganhar.
Seu oposto, se assim podemos dizer, é Don, o loiro forte
e alto de cabelos cheios de gel, quarterback do time
de futebol, namorado da garota mais linda do colégio.
À imagem clássica do macho estudantil superior é colada
uma babaquice magistral: não há nenhuma cena em que
Don não apareça fazendo alguma careta, sempre pretendida
como desdém à alguma das pirações de Napoleon, mas cujo
efeito imediato é sua própria ridicularização (ajudado
em muito pela boa canastrice do ator Trevor Snarr).
Enquanto a namoradinha Summer faz o discurso da campanha
para a presidência do grêmio do colégio, dois contraplanos
definem os eleitos e os derrotados em Napoleon Dynamite.
Primeiro, diante de promessas como brilho labial grátis
no banheiro feminino, o diretor Jared Hess opõe à imagem
da líder-de-torcida três moleques em plano conjunto,
um gordinho, outros dois magricelas de óculos e roupas
sociais, todos com uma cara de absoluto desprezo pela
idéia em que aquela garota está envolvida. No fim do
discurso, diante da platéia estática, Don é o único
de pé, vibrando e dando socos espertos no ar a cada
palavra. Não queremos a imbecilidade disfarçada pela
beleza, mas sim a própria beleza da imbecilidade.
Queremos que Pedro Sanchéz, amigo latino de Napoleon,
o único com bigode na escola inteira, cumpra a promessa
que faz durante seu próprio discurso de candidato, queremos
que torne realidade todos os nossos sonhos mais loucos.
A loucura, entenda-se bem, passa longe de qualquer patologia
mental que se possa atribuir ao nosso protagonista.
Napoleon Dynamite, de certa maneira, já trabalhava
para fazer exatamente isso. A realidade do filme foi,
desde o começo, o espaço de convergência das loucuras
específicas. Estamos num espaço geográfico claramente
demarcado, a cidade de Preston, no interior do estado
de Idaho, mas a vastidão do deserto em torno da cidade,
sempre utilizado como referência pela câmera, empresta
à cidade uma sensação de trânsito, de movimento. Do
mesmo modo, mas ainda mais radicalmente, o tempo deste
lugar aparece embaralhado, algo entre os anos 80 e os
anos 2000, e se a abertura traz uma música do White
Stripes, o baile será regado à Forever Young
e The Promisse, para que então pulemos aos Backstreet
Boys sem a menor cerimônia. O computador que o irmão
de Napoleon usa está ligado à internet, mas o vídeo-cassete
da casa parece ainda um dos primeiros protótipos do
aparelho, e essa fluidez temporal, no limite apenas
mais uma das demonstrações de uma loucura tornada realidade
na materialização do filme, é também a fluidez do próprio
protagonista. Nunca estivemos diante de um fraco tão
forte, sempre irritadiço, enfrentando os valentões aos
gritos de “stupid!”, resmungando interjeições engraçadíssimas
a cada frustração, se permitindo momentos de puro encantamento
com suas próprias possibilidades, como na coreografia
do Clube Mãos Felizes, ou na consagração final dançando
black music para uma platéia estarrecida. Desse cruzamento
torto de Porky’s com Elefante sai um sujeito
repleto de uma raiva que não sabemos exatamente de onde
vem, e que dá vazão à ela tratando o mundo como um palco
cuja fraqueza maior é a suscetibilidade à sua comédia
física involuntária. Um perfeito idiota, daqueles que
fazemos questão de abraçar.
Rodrigo de Oliveira
(DVD Paramount)
|