A NOITE DO IGUANA
John Huston, The Night of the Iguana, EUA, 1964
OS PECADOS DE TODOS NÓS
John Huston, Reflections in a Golden Eye, EUA, 1967

A década de 1960, ou de forma mais ampla, o período compreendido entre O Bárbaro e a Gueixa (1958) e Carta ao Kremlin (1970), demonstra ser o momento mais problemático dentro da ciclotímica carreira de John Huston. Período que alterna projetos ambiciosos – Freud, Além da Alma (1962) – e outros totalmente despretensiosos – Irresistível Bandoleiro (1968) – incluindo aquele que é talvez o maior equívoco cometido por Huston, a cafonice pseudo-religiosa de A Bíblia...no Princípio (1966). A grande maioria dos filmes do período apresentou um forte conflito de interesses e egos entre Huston e os astros que lhe serviam de protagonistas (John Wayne, Burt Lancaster, Montgomery Clift, Marilyn Monroe). Nenhum desses trabalhos configurou êxito de bilheteria e mesmo aqueles que posteriormente viriam a ser considerados representativos dentro da obra – Os Desajustados (1960) ou Os Pecados de Todos Nós – não tiveram uma boa resposta de crítica em primeira hora.

Daí o interesse no lançamento quase simultâneo em DVDs – pobres em extras, diga-se de passagem – no Brasil desse último, acompanhado por A Noite do Iguana. Os dois marcam uma colaboração entre Huston e o produtor Ray Stark, de temperamento manipulador e intrusivo, mas que, até certo ponto, manteve Huston à vontade no comando das fitas. Surpreendente mesmo é o fato de que, em ambos os filmes, apesar da profusão de estrelas em seus elencos – Richard Burton, Ava Gardner, Deborah Kerr em A Noite...; Elizabeth Taylor, Marlon Brando em Os Pecados... – não houve conflitos nos sets. Em sua autobiografia, Huston narra o fato pitoresco de que, ao iniciar as filmagens de A Noite do Iguana, presenteou os protagonistas, e também Taylor (esposa de Burton que o acompanhava), com uma pistola e quatro balas douradas onde haviam sido gravados os nomes dos demais. Felizmente, ninguém chegou perto de precisar usá-las.

Mas, anedotas e fofocas à parte, o que realmente nos interessa são os filmes, e o primeiro deles, A Noite do Iguana, adaptação de uma peça de Tennessee Williams, é o mais irregular da dupla. O personagem central é o Reverendo Shannon (Burton), afastado do sacerdócio por um escândalo sexual e reduzido a guia turístico de excursões caça-níqueis pelo litoral mexicano. Se a seqüência inicial, com Shannon sendo execrado em sua paróquia, vem posteriormente se mostrar de todo dispensável, pois revela muito sobre o passado do personagem e seria mais interessante permitir que o espectador o fosse conhecendo de modo gradativo, logo a seguir Huston demonstra um pouco de seus momentos de mestre. Num exemplo certeiro de construção, apresenta, através de um plano-seqüência, os rostos e o perfil das professoras solteironas que ocupam o ônibus. Em meio a eles, duas figuras que destoam: o próprio Shannon e uma bela moçoila. As imagens seguintes, com Shannon olhando afetuosamente para um grupo de mexicanos pobres que lavam roupa em um rio, em oposição ao olhar preconceituoso das senhoras ianques, centradas em sua própria cultura, marcam um retrato da visão do próprio Huston, um americano que não gostava muito de seu país nativo e que optou por residir no exterior pela maior parte da vida.

Em permanente conflito com a líder de suas passageiras, a dominadora Miss Fellowes (Grayson Hall), Shannon hesita entre ceder e fugir ao assédio da belíssima adolescente Charlotte (Sue Lyon, a Lolita de Kubrick). Huston preenche as cenas entre os dois com intensa sensorialidade, em especial o momento no qual Burton e Lyon se banham em uma praia deserta. A força com a qual Huston capta a quase poesia das paisagens mexicanas vem, não somente de sua colaboração com o genial fotógrafo Gabriel Figueroa, mas também de sua própria paixão pelo país, em especial pelas locações de Puerto Vallarta, onde posteriormente viria a fixar residência. Infelizmente, o DVD brasileiro falha em não permitir a apreciação adequada das luzes de Figueroa e dos enquadramentos de Huston ao não preservar o formato original 1:85, podado por uma inexplicável imagem em fullscreen.

Com a chegada de Shannon e seu grupo à pousada de Maxine (Gardner), Huston prossegue fazendo de forma bem eficaz e envolvente a interação entre personagens e ambientes, recheando de profunda ironia os embates entre Shannon e Fellowes, que ressaltam o patético dos personagens. Dois momentos se destacam nessa abordagem: Burton alcoolizado, dialogando com Sue Lyon e se auto-punindo enquanto caminha descalço sobre cacos de vidro e a dança de Sue Lyon para os garotos da praia, bem construída sobre uma sensualidade incômoda. O já citado aspecto patético das figuras que povoam A Noite do Iguana só vem a se destacar com a chegada ao hotel da artista nômade Hannah Jelkes (Kerr) e seu avô, um poeta cego e centenário, duas espécies de ETs no já estranho mundo das figuras criadas por Williams. Hannah acaba por se mostrar a mais forte entre as personagens, e passa a dominar toda a cena a partir de sua entrada, o que se revela de certo modo bastante problemático, pois os conflitos que dominavam o filme até então passam a ser enfraquecidos e Maxine, uma personagem sempre não muito convincente, sucumbe de vez.

A meia hora final apresenta uma conclusão bem pouco satisfatória. Se até então, na maior parte do tempo, Huston conseguira impor à sua mise-en-scéne alguma liberdade e criatividade, ele acaba por sucumbir à teatralidade do texto de Williams, grande calcanhar de Aquiles do filme, pois A Noite do Iguana está longe de ser uma das melhores peças do dramaturgo. O diálogo entre Hannah e Shannon, concebido como o clímax da fita, apresenta-se cinematograficamente pobre, filmado numa previsível sucessão de campo-contracampo e representa um retrocesso naquilo que havia sido mostrado até então, assim como a conclusão, que força um pouco convincente final feliz. Mas isso não invalida o interesse pelo filme, sempre merecedor de ser conferido, ainda intenso apesar de sua sucessão de erros e acertos.

Os Pecados de Todos Nós é certamente um filme mais forte e coeso, apesar de não ser a obra-prima apontada por muitos, inclusive por mim mesmo durante um certo tempo... Leitor compulsivo ao longo de toda a vida – daí o fato de em sua obra raramente ter trabalhado com roteiros originais –, Huston adapta aqui um romance de Carson McCullers, escritora nativa do sul dos EUA (assim como o Tennessee Williams de A Noite do Iguana), e cuja obra aborda igualmente a temática das repressões, em especial a da sexualidade, interferindo nas relações humanas. Temos aqui dois casais em uma base militar situada no ambiente natal da autora. O major Penderton (Brando) é casado com Leonora (Taylor). Ele, impotente e homossexual enrustido, ela, sublimando sua intensa sexualidade tendo como amante o coronel Langdon (Brian Keith), marido de Alison (Julie Harris), depressiva e com frágil saúde física e mental. O tênue equilíbrio entre os dois casais será abalado pelo soldado Williams, retraído e voyeur compulsivo, que penetra sorrateiramente toda noite a casa dos Penderton para velar o sono de Leonora. À medida em que Penderton não consegue mais conter sua atração pelo soldado, tudo se encaminha para uma conclusão trágica, já anunciada pela cartela que abre o filme e que diz: “Existe um forte no sul onde, alguns anos atrás, foi cometido um assassinato”.

A idéia de Huston era apresentar o filme de um ponto de vista distanciado – o “olho dourado” do título original – citado no filme por Anacleto, o bizarro acompanhante de Alison, como sendo oriundo de um olhar de pavão. O filme foi concebido, em experiências de Huston com os fotógrafos Aldo Tonti e Oswald Morris (não creditado), para ter suas cores esmaecidas por um tom predominantemente dourado, evitando, como disse o diretor, “um technicolor muito vivo, que poderia interferir entre o público e o que se passava na tela – um conflito de personalidades, idéias e emoções”. Apesar da dificuldade em se atingir as cores desejadas, o filme só foi visto assim em pouquíssimas exibições nos EUA e distribuído com as cores normais, para desgosto do diretor. O mérito da versão em DVD que nos chega às mãos é mostrar o filme com a coloração idealizada. Mas mesmo assim, o DVD ainda fica devendo se comparado à versão americana, onde existe a opção dele ser assistido em ambos os formatos.

A impressão sentida por quem já conhecia o filme anteriormente, ao assistir à versão “do diretor”, parece ser a de que, apesar da delicadeza atingida pelos tons suaves da imagem, esta pouco parece interferir no resultado final da fruição do filme. A verdade é que a experiência cromática às vezes se demonstra óbvia e pueril, causando em determinados momentos o desconforto de um cansaço visual. Não é nela que reside a força de Os Pecados de Todos Nós, mas sim nos conflitos destacados pela citação de Huston e muito bem retratados pelo diretor e por seus atores impecáveis. É perfeita toda a administração de tensões trazidas pelo filme em suas situações claustrofóbicas, calcadas em uma incessante variação de personagens que transmitem uma intensa crítica à hipócrita sujeição da existência humana a máscaras e papéis pré-determinados e ao quão difícil é deles fugir.

Em alguns aspectos, decorridos quase 40 anos, determinados conflitos do filme, os que se referem em especial à repressão sexual, parecem ter envelhecido. Soma-se a isso o impacto reduzido para nós brasileiros, familiarizados com a obra de Nelson Rodrigues, onde as questões de sexualidade abordadas por Carson McCullers parecem por vezes brincadeira de criança. Mas nada disso anula os méritos desse filme belo e tenso, talvez aquele que apresente os enquadramentos mais criteriosamente concebidos de toda a filmografia de John Huston, aqui preservados em DVD no formato de tela cinemascope. É o momento de ver e rever imagens inesquecíveis como as dramáticas cavalgadas pela mata – em especial aquela em que Brando força e não consegue domar um cavalo rebelde –, Taylor agredindo Brando – seja de forma sutil, despindo-se e subindo as escadas, seja de forma explícita, chicoteando seu rosto em meio a uma festa –, Brando em frente ao espelho e, principalmente, a bela seqüência final, com uma movimentação de câmera inusitada e desconcertante.


Gilberto Silva Jr.

(DVD Warner)

 

 







A Noite do Iguana


O tom predominantemente dourado de
Os Pecados de Todos Nós