A
década de 1960, ou de forma mais ampla, o período compreendido
entre O Bárbaro e a Gueixa (1958) e Carta
ao Kremlin (1970), demonstra ser o momento mais
problemático dentro da ciclotímica carreira de John
Huston. Período que alterna projetos ambiciosos – Freud,
Além da Alma (1962) – e outros totalmente despretensiosos
– Irresistível Bandoleiro (1968) – incluindo
aquele que é talvez o maior equívoco cometido por Huston,
a cafonice pseudo-religiosa de A Bíblia...no Princípio
(1966). A grande maioria dos filmes do período apresentou
um forte conflito de interesses e egos entre Huston
e os astros que lhe serviam de protagonistas (John Wayne,
Burt Lancaster, Montgomery Clift, Marilyn Monroe). Nenhum
desses trabalhos configurou êxito de bilheteria e mesmo
aqueles que posteriormente viriam a ser considerados
representativos dentro da obra – Os Desajustados
(1960) ou Os Pecados de Todos Nós – não tiveram
uma boa resposta de crítica em primeira hora.
Daí o interesse no lançamento quase simultâneo em DVDs
– pobres em extras, diga-se de passagem – no Brasil
desse último, acompanhado por A Noite do Iguana.
Os dois marcam uma colaboração entre Huston e o
produtor Ray Stark, de temperamento manipulador e intrusivo,
mas que, até certo ponto, manteve Huston à vontade no
comando das fitas. Surpreendente mesmo é o fato de que,
em ambos os filmes, apesar da profusão de estrelas em
seus elencos – Richard Burton, Ava Gardner, Deborah
Kerr em A Noite...; Elizabeth Taylor, Marlon
Brando em Os Pecados... – não houve conflitos
nos sets. Em sua autobiografia, Huston narra
o fato pitoresco de que, ao iniciar as filmagens de
A Noite do Iguana, presenteou os protagonistas,
e também Taylor (esposa de Burton que o acompanhava),
com uma pistola e quatro balas douradas onde haviam
sido gravados os nomes dos demais. Felizmente, ninguém
chegou perto de precisar usá-las.
Mas, anedotas e fofocas à parte, o que realmente nos
interessa são os filmes, e o primeiro deles, A Noite
do Iguana, adaptação de uma peça de Tennessee Williams,
é o mais irregular da dupla. O personagem central é
o Reverendo Shannon (Burton), afastado do sacerdócio
por um escândalo sexual e reduzido a guia turístico
de excursões caça-níqueis pelo litoral mexicano. Se
a seqüência inicial, com Shannon sendo execrado em sua
paróquia, vem posteriormente se mostrar de todo dispensável,
pois revela muito sobre o passado do personagem e seria
mais interessante permitir que o espectador o fosse
conhecendo de modo gradativo, logo a seguir Huston demonstra
um pouco de seus momentos de mestre. Num exemplo certeiro
de construção, apresenta, através de um plano-seqüência,
os rostos e o perfil das professoras solteironas que
ocupam o ônibus. Em meio a eles, duas figuras que destoam:
o próprio Shannon e uma bela moçoila. As imagens seguintes,
com Shannon olhando afetuosamente para um grupo de mexicanos
pobres que lavam roupa em um rio, em oposição ao olhar
preconceituoso das senhoras ianques, centradas em sua
própria cultura, marcam um retrato da visão do próprio
Huston, um americano que não gostava muito de seu país
nativo e que optou por residir no exterior pela maior
parte da vida.
Em permanente conflito com a líder de suas passageiras,
a dominadora Miss Fellowes (Grayson Hall), Shannon hesita
entre ceder e fugir ao assédio da belíssima adolescente
Charlotte (Sue Lyon, a Lolita de Kubrick). Huston preenche
as cenas entre os dois com intensa sensorialidade, em
especial o momento no qual Burton e Lyon se banham em
uma praia deserta. A força com a qual Huston capta a
quase poesia das paisagens mexicanas vem, não somente
de sua colaboração com o genial fotógrafo Gabriel Figueroa,
mas também de sua própria paixão pelo país, em especial
pelas locações de Puerto Vallarta, onde posteriormente
viria a fixar residência. Infelizmente, o DVD brasileiro
falha em não permitir a apreciação adequada das luzes
de Figueroa e dos enquadramentos de Huston ao não preservar
o formato original 1:85, podado por uma inexplicável
imagem em fullscreen.
Com a chegada de Shannon e seu grupo à pousada de Maxine
(Gardner), Huston prossegue fazendo de forma bem eficaz
e envolvente a interação entre personagens e ambientes,
recheando de profunda ironia os embates entre Shannon
e Fellowes, que ressaltam o patético dos personagens.
Dois momentos se destacam nessa abordagem: Burton alcoolizado,
dialogando com Sue Lyon e se auto-punindo enquanto caminha
descalço sobre cacos de vidro e a dança de Sue Lyon
para os garotos da praia, bem construída sobre uma sensualidade
incômoda. O já citado aspecto patético das figuras que
povoam A Noite do Iguana só vem a se destacar
com a chegada ao hotel da artista nômade Hannah Jelkes
(Kerr) e seu avô, um poeta cego e centenário, duas espécies
de ETs no já estranho mundo das figuras criadas por
Williams. Hannah acaba por se mostrar a mais forte entre
as personagens, e passa a dominar toda a cena a partir
de sua entrada, o que se revela de certo modo bastante
problemático, pois os conflitos que dominavam o filme
até então passam a ser enfraquecidos e Maxine, uma personagem
sempre não muito convincente, sucumbe de vez.
A meia hora final apresenta uma conclusão bem pouco
satisfatória. Se até então, na maior parte do tempo,
Huston conseguira impor à sua mise-en-scéne alguma
liberdade e criatividade, ele acaba por sucumbir à teatralidade
do texto de Williams, grande calcanhar de Aquiles do
filme, pois A Noite do Iguana está longe de ser
uma das melhores peças do dramaturgo. O diálogo entre
Hannah e Shannon, concebido como o clímax da fita, apresenta-se
cinematograficamente pobre, filmado numa previsível
sucessão de campo-contracampo e representa um retrocesso
naquilo que havia sido mostrado até então, assim como
a conclusão, que força um pouco convincente final feliz.
Mas isso não invalida o interesse pelo filme, sempre
merecedor de ser conferido, ainda intenso apesar de
sua sucessão de erros e acertos.
Os Pecados de Todos Nós é certamente um filme
mais forte e coeso, apesar de não ser a obra-prima apontada
por muitos, inclusive por mim mesmo durante um certo
tempo... Leitor compulsivo ao longo de toda a vida –
daí o fato de em sua obra raramente ter trabalhado com
roteiros originais –, Huston adapta aqui um romance
de Carson McCullers, escritora nativa do sul dos EUA
(assim como o Tennessee Williams de A Noite do Iguana),
e cuja obra aborda igualmente a temática das repressões,
em especial a da sexualidade, interferindo nas relações
humanas. Temos aqui dois casais em uma base militar
situada no ambiente natal da autora. O major Penderton
(Brando) é casado com Leonora (Taylor). Ele, impotente
e homossexual enrustido, ela, sublimando sua intensa
sexualidade tendo como amante o coronel Langdon (Brian
Keith), marido de Alison (Julie Harris), depressiva
e com frágil saúde física e mental. O tênue equilíbrio
entre os dois casais será abalado pelo soldado Williams,
retraído e voyeur compulsivo, que penetra sorrateiramente
toda noite a casa dos Penderton para velar o sono de
Leonora. À medida em que Penderton não consegue mais
conter sua atração pelo soldado, tudo se encaminha para
uma conclusão trágica, já anunciada pela cartela que
abre o filme e que diz: “Existe um forte no sul onde,
alguns anos atrás, foi cometido um assassinato”.
A idéia de Huston era apresentar o filme de um ponto
de vista distanciado – o “olho dourado” do título original
– citado no filme por Anacleto, o bizarro acompanhante
de Alison, como sendo oriundo de um olhar de pavão.
O filme foi concebido, em experiências de Huston com
os fotógrafos Aldo Tonti e Oswald Morris (não creditado),
para ter suas cores esmaecidas por um tom predominantemente
dourado, evitando, como disse o diretor, “um technicolor
muito vivo, que poderia interferir entre o público e
o que se passava na tela – um conflito de personalidades,
idéias e emoções”. Apesar da dificuldade em se atingir
as cores desejadas, o filme só foi visto assim em pouquíssimas
exibições nos EUA e distribuído com as cores normais,
para desgosto do diretor. O mérito da versão em DVD
que nos chega às mãos é mostrar o filme com a coloração
idealizada. Mas mesmo assim, o DVD ainda fica devendo
se comparado à versão americana, onde existe a opção
dele ser assistido em ambos os formatos.
A impressão sentida por quem já conhecia o filme anteriormente,
ao assistir à versão “do diretor”, parece ser a de que,
apesar da delicadeza atingida pelos tons suaves da imagem,
esta pouco parece interferir no resultado final da fruição
do filme. A verdade é que a experiência cromática às
vezes se demonstra óbvia e pueril, causando em determinados
momentos o desconforto de um cansaço visual. Não é nela
que reside a força de Os Pecados de Todos Nós,
mas sim nos conflitos destacados pela citação de Huston
e muito bem retratados pelo diretor e por seus atores
impecáveis. É perfeita toda a administração de tensões
trazidas pelo filme em suas situações claustrofóbicas,
calcadas em uma incessante variação de personagens que
transmitem uma intensa crítica à hipócrita sujeição
da existência humana a máscaras e papéis pré-determinados
e ao quão difícil é deles fugir.
Em alguns aspectos, decorridos quase 40 anos, determinados
conflitos do filme, os que se referem em especial à
repressão sexual, parecem ter envelhecido. Soma-se a
isso o impacto reduzido para nós brasileiros, familiarizados
com a obra de Nelson Rodrigues, onde as questões de
sexualidade abordadas por Carson McCullers parecem por
vezes brincadeira de criança. Mas nada disso anula os
méritos desse filme belo e tenso, talvez aquele que
apresente os enquadramentos mais criteriosamente concebidos
de toda a filmografia de John Huston, aqui preservados
em DVD no formato de tela cinemascope. É o momento
de ver e rever imagens inesquecíveis como as dramáticas
cavalgadas pela mata – em especial aquela em que Brando
força e não consegue domar um cavalo rebelde –, Taylor
agredindo Brando – seja de forma sutil, despindo-se
e subindo as escadas, seja de forma explícita, chicoteando
seu rosto em meio a uma festa –, Brando em frente ao
espelho e, principalmente, a bela seqüência final, com
uma movimentação de câmera inusitada e desconcertante.
Gilberto Silva Jr.
(DVD Warner)
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