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no começo de Fahrenheit 451, os créditos de abertura
estão lá, mas não os lemos. Um narrador nos informa
a ficha completa da equipe, atores, técnicos, diretor,
sob imagens coloridas de diversas antenas de tevê espalhadas
pelos telhados da cidade. Ali já sabemos que Truffaut
quer colar a experiência de seu filme àquela mesma vivida
no universo interior da narrativa, e se os personagens
deste mundo futurista não podem ter acesso a qualquer
tipo de material escrito, também o filme não o terá.
Mais do que uma esperteza do diretor (o que não seria
uma exceção, pois várias delas estão espalhadas por
aqui), esta seqüência de créditos dará o tom da aproximação
pretendida a essa história, na época já “mundialmente
famosa” através do best-seller de Ray Bradbury. Interessa
aqui menos uma fidelização ao relato original, onde
acompanhamos o tormento de um agente da repressão que
se vê envolvido com o próprio objeto que deveria combater,
e mais a captura desta certa atmosfera atormentada que
o trajeto do personagem criaria em torno de si. Não
é à toa que este mesmo trajeto sofrerá uma alteração
fundamental na relação entre livro e adaptação cinematográfica.
Se com Bradbury já estaremos desde o começo instalados
na perturbação de Guy Montag, ainda sem muitas razões
mas claramente apontando para uma grande revolução pessoal
(a primeira frase diz “Queimar livros era um prazer”,
com o verbo no passado), Truffaut irá apresentar seu
protagonista como um legítimo soldado do regime, obediente
aos mandos de seu capitão, referindo-se a si mesmo na
terceira pessoa, cumprindo o dever de queimar livros
com o prazer atualizado pelo tempo presente. Contra
a narrativa vertical, o arco: uma transformação percebida
pelo filme, de homem cego pela lei equivocada a defensor
da causa literária, Fahrenheit 451, dantesco,
vai do inferno ao paraíso, quer o elogio da iluminação.
Aquilo que Truffaut percebera como um clima repressor
será integralmente absorvido pelo tecido do filme, e
a operação conseqüente àqueles créditos iniciais falados
será a filiação de Fahrenheit a um gênero clássico,
ao suspense. A influência de Alfred Hitchcock é decisiva,
e estamos aqui no início da relação pessoal que desembocaria
na grande entrevista-livro lançada algum tempo depois,
mas nem era preciso tanto. A trilha sonora ostensiva
de Bernard Hermann, o modo de encenar seqüências banais
como se por trás de cada uma houvesse a chave para o
mistério da trama, até mesmo algumas citações literais,
tudo está lá para anunciar esta grande influência, e
também deixar evidente o quão difícil ela torna a vida
do influenciado. Como repetiria dois anos depois na
tentativa mais declarada de aproximação com o mestre,
em A Noiva Estava de Preto, Truffaut se atrapalha
incrivelmente nas cenas de alguma ação, e se em 1968
transformaria a crueldade de Jeanne Moureau ao empurrar
um amante sacada abaixo em um momento quase-cômico,
aqui torna o ataque vingativo de Oskar Werner contra
seu chefe em um exercício de como não se decupar uma
rajada de lança-chamas.
E como nesses detalhes de realização, todo o filme estará
envolvido por uma série de primarismos; o peso do gênero,
afeito a regras e esquemas restritos, será eventualmente
grande demais para que qualquer tentativa de respiração
própria possa ter algum efeito. Há um paradoxo fundamental
no livro de Bradbury que passa ao largo de Truffaut.
Contando uma história onde a literatura é perseguida
e destruída por sua possibilidade de informação e elevação
intelectual, a própria existência do livro no qual esta
história aparece já é, por si, uma espécie de resistência,
uma afronta a esse regime imaginário e tão assustadoramente
possível, uma defesa tácita e eficientíssima daquilo
que a trajetória de Montag pretende significar. Em Fahrenheit
451, o filme, somos lembrados o tempo inteiro da
grande importância que os livros têm na história da
humanidade, num exercício de tautologia pedagógica que
beira a histeria (ou como poderíamos entender a cena
em que, revoltado com a letargia da esposa e de suas
amigas diante da televisão, Montag põe-se a ler um trecho
de um romance para que, milagrosamente, uma daquelas
mulheres finalmente se emocione e chore, depois dos
anos de anestesia de sua sensibilidade pela falta da
poesia?).
Diagnosticar o futuro com males que estão na pauta do
presente é uma constante na maior parte dos filmes que
se arriscam na previsão. Mesmo o Alphaville,
do parceiro de geração Jean-Luc Godard, realizado um
ano antes de Fahrenheit, sofre desta valorização
desmedida de suas próprias profecias sobre o mundo.
Mas lá, antes do conteúdo alarmista, da bandeira agitada,
estava na linha de frente a própria impossibilidade
de uma mise-en-scène do futuro que não se impusesse
os problemas do presente (diante de uma longa cena de
conflito entre Eddie Constantine e Anna Karina num quarto
de hotel, o que parece estar em questão não é o pesar
da confirmação destrutiva deste mundo pós-apocalíptico,
mas sim se este mesmo pendor para o cataclismo impedirá
também a existência de planos-seqüência tão nervosos
quanto aquele). Truffaut, ao contrário, é vítima da
mensagem. Não perde a piada de ver o Capitão Beatty
dizer, com consternação, que todos os livros precisam
mesmo ser queimados, até mesmo aqueles que os servem
tão bem, como o Minha Luta de Adolf Hitler que
segura com uma das mãos nesse momento, porque é importante
não deixar em suspenso que todos aqueles bombeiros empertigados
são nazistas de primeira classe. Tudo acaba sendo, no
fim das contas, uma questão de repertório. Chegando
ao trecho final, no paraíso dos homens-livro, que abrigam
todo o conhecimento do mundo na memória dos textos que
decoraram, vemos que Fahrenheit 451 debateu-se,
sempre, com sua própria capacidade de não só saber de
cor e salteado certos textos (cinematográficos), mas
também de conseguir repeti-los à imagem e semelhança
da obra original quando o momento de reabertura chegasse.
Precisamos de alguma boa vontade para recordar todos
os Beijos Roubados, Os Incompreendidos,
Jules e Jim e Duas Inglesas e o Amor de
que dispusermos, porque diante de Fahrenheit 451
somos levados a crer que François Truffaut, afora todos
esses grandes filmes que já fez, nunca foi propriamente
um homem-cinema.
Rodrigo de Oliveira
(DVD Universal)
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