A CONDESSA BRANCA
James Ivory, The White Countess, Inglaterra/EUA/Alemanha/China, 2005

Há pouco mais de três anos, em minha crítica sobre o então recém-lançado À Francesa, o trabalho anterior de James Ivory, encerrei meu texto levantando o questionamento se o cineasta ainda seria capaz de dirigir algum filme minimamente interessante, tendo em vista toda a série de desacertos que veio em seqüência à sua obra-prima Vestígios do Dia (1993). Considerando também a morte de seu parceiro de mais de quatro décadas, o produtor Ismail Merchant, a definitiva pá de cal parecia ter sido derramada sobre o cinema de Ivory.

Qual não foi a surpresa ao assistir em DVD – confesso que, a princípio, banhado de grande má vontade – a este filme mais recente de Ivory, o último realizado com Merchant ainda em vida, que permaneceu inédito em cinemas no Brasil. Se bem que com resultado ainda aquém de seus melhores momentos, como o já citado Vestígios do Dia, Uma Janela Para o Amor (1986) ou Retorno a Howard’s End (1992), A Condessa Branca consegue afirmar-se como um drama de época envolvente. É certo que, como fica patente perante qualquer filme do diretor, estamos diante de um cinema formal e acadêmico, mas que consegue aqui despertar interesse e não entediar apesar da excessiva (138 minutos) metragem.

A principal razão para isso parece advir do fato de que A Condessa Branca se firma como um filme que pretende dialogar de forma mais direta, seja com o público, seja com o gênero cinematográfico – o drama de época – no qual se enquadra. Longe assim do encastelamento ao mesmo tempo arrogante e preguiçoso de filmes mais recentes de Ivory, ensimesmados sobre as figuras históricas que retratavam – Jefferson em Paris (1995), Os Amores de Picasso (1996) – ou sobre a literatura clássica de Henry James – A Taça de Ouro (2000). Em À Francesa, Ivory parece ter pretendido exercitar esse diálogo, mas a comédia contemporânea é terreno completamente estranho para o cineasta, daí seu fracasso em todos os sentidos. Retorna, então, de forma sensata, ao gênero, no qual se sente à vontade.

Talvez o maior mérito de A Condessa Branca resida no fato de ele originar-se não de uma adaptação, mas de um roteiro original do anglo-japonês Kazuo Ishiguro, autor de Vestígios do Dia. A quebra da parceria com a roteirista habitual Ruth Prawer Jhabvala mostra-se bastante proveitosa para o diretor, que foge aqui dos vícios da mera reprodução de uma “alta literatura” para entregar-se a um drama que tende mais para o folhetim com ecos e referências a alguns momentos marcantes da história do cinema.

Estamos em 1936 na cidade de Shangai, então um fervilhante pólo multicultural, num confuso redemoinho político que antecedeu ao período da segunda guerra mundial. Temos a Condessa Sofia Belinskya (Natasha Richardson, reproduzindo, sem o mesmo talento, o ritmo de vocalização e o estilo de atuação de sua mãe, Vanessa Redgrave), que se prostitui nos cabarés de Shangai para prover o sustento de sua família empobrecida, composta por nobres arrogantes ainda que miseráveis, expulsos da Rússia natal após a revolução socialista. Numa noite, Sofia trava contato com Todd Jackson (Ralph Fiennes, mais contido que o habitual), diplomata americano que ficara cego em um acidente, fascinado pela vida noturna e que sonha ser dono de sua própria casa. A sorte na corrida de cavalos faz com que esse sonho se realize. Todd abre sua boate – A Condessa Branca do título – e contrata Sofia como uma espécie de gerente. Em meio a emoções derramadas e ao rico contexto histórico, não tarda a surgir uma paixão reprimida entre os dois.

Essa sinopse já entrega que A Condessa Branca se pretende um melodrama à antiga e, nesse sentido, consegue render a razoável contento. Ivory dá conta em construir de forma bastante competente os ambientes por onde se desenrola a trama, seja nos cortiços onde vive a família de Sofia, seja nas sofisticadas casas noturnas, como também nas ruas por onde transitam os personagens. Foge aqui do excessivo detalhismo na busca de uma reconstituição de época absolutamente verossímil que sempre caracterizou sua obra, em favor de uma ambientação estilizada, mais adequada ao melodrama. Para isso não há como deixar de destacar a leveza injetada pela fotografia de Christopher Doyle, com sua longa experiência no cinema asiático, aqui colaborando com Ivory pela primeira vez. Com isso Ivory parece ter superado, ao menos em parte, a mise-en-scène preguiçosa de seus últimos trabalhos, e redescoberto o gosto em construir planos e seqüências com um mínimo de apuro, fazendo uma utilização bastante expressiva de travellings em diversos momentos do filme.

A Condessa Branca é todo construído sobre sólidas referências a melodramas de guerra do passado, e dentre essas referências, ecoa fortemente o mais clássico momento do gênero: Casablanca. Todd Jackson pode ser visto como uma nova encarnação de Rick Blaine (Humphrey Bogart). Um americano, dono de bar, que pretende, mas não consegue, manter-se apolítico, ou, no caso de Todd, alienado num momento em que o contexto insiste em lhe cobrar uma tomada de posição. Ao contrário das frustradas tentativas de fazer cinema referencial presentes em À Francesa, vemos aqui que estas parecem harmoniosamente inseridas no conjunto e não se limitam apenas aos melodramas. A casa noturna de Todd e os números musicais lá encenados trazem, de forma inequívoca, ecos de Cabaret (1972) de Bob Fosse, onde a Berlim na qual ascendia o nazismo se equipara à Shangai assombrada pelo fantasma da invasão japonesa.

E é desse fantasma que emerge a figura mais interessante do filme, o mefistofélico Sr. Matsuda (interpretado por Hyroiuki Sanada, excelente ator de O Samurai do Entardecer), figura cativante e dúbia, que, por um lado, representa os tentáculos da totalitária expansão japonesa, mas que, paradoxalmente, vai ser sempre o catalisador das emoções reprimidas de Todd e cupido do casal em sua união final. Os momentos do clímax de A Condessa Branca, passados numa Shangai invadida e bombardeada pelos japoneses, pululam em uma emoção rasgada raramente vista nos trabalhos anteriores de Ivory. A paixão do casal Todd-Sofia faz um interessante contraponto aos sentimentos excessivamente reprimidos dos personagens de Anthony Hopkins e Emma Thompson em Vestígios do Dia, e sugere ser A Condessa Branca um ponto de união à ruptura surgida em sua obra desde então. Esperemos que essa incursão no novelão se concretize posteriormente no sopro de vida que faltava ao trabalho do diretor, que, pelo visto, não se deixou abater pela morte do companheiro e já se dedica às filmagens de The City of Your Final Destination, com o desejo que este não marque um novo retrocesso após os passos adiante concretizados com A Condessa Branca.


Gilberto Silva Jr.

(DVD Sony Pictures)