Há
pouco mais de três anos, em minha crítica sobre o então
recém-lançado À Francesa, o trabalho anterior
de James Ivory, encerrei meu texto levantando o questionamento
se o cineasta ainda seria capaz de dirigir algum filme
minimamente interessante, tendo em vista toda a série
de desacertos que veio em seqüência à sua obra-prima
Vestígios do Dia (1993). Considerando também
a morte de seu parceiro de mais de quatro décadas, o
produtor Ismail Merchant, a definitiva pá de cal parecia
ter sido derramada sobre o cinema de Ivory.
Qual não foi a surpresa ao assistir em DVD – confesso
que, a princípio, banhado de grande má vontade – a este
filme mais recente de Ivory, o último realizado com
Merchant ainda em vida, que permaneceu inédito em cinemas
no Brasil. Se bem que com resultado ainda aquém de seus
melhores momentos, como o já citado Vestígios do
Dia, Uma Janela Para o Amor (1986) ou Retorno
a Howard’s End (1992), A Condessa Branca consegue
afirmar-se como um drama de época envolvente. É certo
que, como fica patente perante qualquer filme do diretor,
estamos diante de um cinema formal e acadêmico, mas
que consegue aqui despertar interesse e não entediar
apesar da excessiva (138 minutos) metragem.
A principal razão para isso parece advir do fato de
que A Condessa Branca se firma como um filme
que pretende dialogar de forma mais direta, seja com
o público, seja com o gênero cinematográfico – o drama
de época – no qual se enquadra. Longe assim do encastelamento
ao mesmo tempo arrogante e preguiçoso de filmes mais
recentes de Ivory, ensimesmados sobre as figuras históricas
que retratavam – Jefferson em Paris (1995), Os
Amores de Picasso (1996) – ou sobre a literatura
clássica de Henry James – A Taça de Ouro (2000).
Em À Francesa, Ivory parece ter pretendido
exercitar esse diálogo, mas a comédia contemporânea
é terreno completamente estranho para o cineasta, daí
seu fracasso em todos os sentidos. Retorna, então, de
forma sensata, ao gênero, no qual se sente à vontade.
Talvez o maior mérito de A Condessa Branca resida
no fato de ele originar-se não de uma adaptação, mas
de um roteiro original do anglo-japonês Kazuo Ishiguro,
autor de Vestígios do Dia. A quebra da parceria
com a roteirista habitual Ruth Prawer Jhabvala mostra-se
bastante proveitosa para o diretor, que foge aqui dos
vícios da mera reprodução de uma “alta literatura” para
entregar-se a um drama que tende mais para o folhetim
com ecos e referências a alguns momentos marcantes da
história do cinema.
Estamos em 1936 na cidade de Shangai, então um fervilhante
pólo multicultural, num confuso redemoinho político
que antecedeu ao período da segunda guerra mundial.
Temos a Condessa Sofia Belinskya (Natasha Richardson,
reproduzindo, sem o mesmo talento, o ritmo de vocalização
e o estilo de atuação de sua mãe, Vanessa Redgrave),
que se prostitui nos cabarés de Shangai para prover
o sustento de sua família empobrecida, composta por
nobres arrogantes ainda que miseráveis, expulsos da
Rússia natal após a revolução socialista. Numa noite,
Sofia trava contato com Todd Jackson (Ralph Fiennes,
mais contido que o habitual), diplomata americano que
ficara cego em um acidente, fascinado pela vida noturna
e que sonha ser dono de sua própria casa. A sorte na
corrida de cavalos faz com que esse sonho se realize.
Todd abre sua boate – A Condessa Branca do título
– e contrata Sofia como uma espécie de gerente. Em meio
a emoções derramadas e ao rico contexto histórico, não
tarda a surgir uma paixão reprimida entre os dois.
Essa sinopse já entrega que A Condessa Branca
se pretende um melodrama à antiga e, nesse sentido,
consegue render a razoável contento. Ivory dá conta
em construir de forma bastante competente os ambientes
por onde se desenrola a trama, seja nos cortiços onde
vive a família de Sofia, seja nas sofisticadas casas
noturnas, como também nas ruas por onde transitam os
personagens. Foge aqui do excessivo detalhismo na busca
de uma reconstituição de época absolutamente verossímil
que sempre caracterizou sua obra, em favor de uma ambientação
estilizada, mais adequada ao melodrama. Para isso não
há como deixar de destacar a leveza injetada pela fotografia
de Christopher Doyle, com sua longa experiência no cinema
asiático, aqui colaborando com Ivory pela primeira vez.
Com isso Ivory parece ter superado, ao menos em parte,
a mise-en-scène preguiçosa de seus últimos trabalhos,
e redescoberto o gosto em construir planos e seqüências
com um mínimo de apuro, fazendo uma utilização bastante
expressiva de travellings em diversos momentos
do filme.
A Condessa Branca é todo construído sobre sólidas
referências a melodramas de guerra do passado, e dentre
essas referências, ecoa fortemente o mais clássico momento
do gênero: Casablanca. Todd Jackson pode ser
visto como uma nova encarnação de Rick Blaine (Humphrey
Bogart). Um americano, dono de bar, que pretende, mas
não consegue, manter-se apolítico, ou, no caso de Todd,
alienado num momento em que o contexto insiste em lhe
cobrar uma tomada de posição. Ao contrário das frustradas
tentativas de fazer cinema referencial presentes em
À Francesa, vemos aqui que estas parecem harmoniosamente
inseridas no conjunto e não se limitam apenas aos melodramas.
A casa noturna de Todd e os números musicais lá encenados
trazem, de forma inequívoca, ecos de Cabaret (1972)
de Bob Fosse, onde a Berlim na qual ascendia o nazismo
se equipara à Shangai assombrada pelo fantasma da invasão
japonesa.
E é desse fantasma que emerge a figura mais interessante
do filme, o mefistofélico Sr. Matsuda (interpretado
por Hyroiuki Sanada, excelente ator de O Samurai
do Entardecer), figura cativante e dúbia, que, por
um lado, representa os tentáculos da totalitária expansão
japonesa, mas que, paradoxalmente, vai ser sempre o
catalisador das emoções reprimidas de Todd e cupido
do casal em sua união final. Os momentos do clímax de
A Condessa Branca, passados numa Shangai invadida
e bombardeada pelos japoneses, pululam em uma
emoção rasgada raramente vista nos trabalhos anteriores
de Ivory. A paixão do casal Todd-Sofia faz um interessante
contraponto aos sentimentos excessivamente reprimidos
dos personagens de Anthony Hopkins e Emma Thompson em
Vestígios do Dia, e sugere ser A Condessa
Branca um ponto de união à ruptura surgida em sua
obra desde então. Esperemos que essa incursão no novelão
se concretize posteriormente no sopro de vida que faltava
ao trabalho do diretor, que, pelo visto, não se deixou
abater pela morte do companheiro e já se dedica às filmagens
de The City of Your Final Destination, com o
desejo que este não marque um novo retrocesso após os
passos adiante concretizados com A Condessa Branca.
Gilberto Silva Jr.
(DVD Sony Pictures)
|