É
ao longo dos anos 60 que o cinema direto americano aperfeiçoa
seus métodos. Para os irmãos Maysles, especificamente,
isso significa caminhar rumo ao que eles mesmos chamariam
de primeiro longa-metragem de não-ficção do cinema,
Caixeiro-Viajante – “porque ali finalmente é
introduzido o drama”, Albert diz a João Moreira
Salles na entrevista incluída nos extras do DVD. O documentário
em formato feature film, para ser exibido em
salas comerciais, nasce portanto quando é atravessado
pelo drama, pela possibilidade de acompanhar uma narrativa
que, embora não tenha suas raízes na ficção, solicita
a emotividade do espectador. Esse drama é acentuado
pela montagem, sem dúvida, mas suas potencialidades
se efetuam mesmo é no momento do registro: esse é o
drama que mais interessa e mais surpreende no cinema
dos Maysles. Algo como: no momento em que percebemos
de uma vez por todas o sentimento de derrota do personagem,
alguém fora-de-quadro senta ao piano e começa a tocar
a música triste ideal. Uma pérola do acaso ajuda o cineasta
a ilustrar o que, no fim das contas, aparece como a
história de uma típica tragédia americana. Dessa união
entre um drama muito íntimo, uma tragédia desenhada
por rugas e expressões faciais descontentes (“tragédia
anatômica”, no vocabulário de Epstein), e uma situação
de crise que põe em xeque os grandes mitos americanos,
surge uma nova dramaturgia, calcada na meia-distância,
no cuidadoso exame de superfície, nos detalhes que o
acaso oferece (às vezes de bandeja, às vezes de maneira
a exigir bastante da atenção e da sensibilidade do cinegrafista),
porém atingindo os efeitos adesivos dos esquemas identitários
do cinema hollywoodiano. Os personagens são apresentados,
as situações se sucedem sem uma ordenação óbvia e a
partir de um certo momento o filme tem seu protagonista,
seu ponto de virada, sua progressão dramática. O espectador,
por conseguinte, entra no filme e se cola a Paul Brennan
de forma não muito distinta de como se colaria ao protagonista
de um filme de grande estúdio.
Caixeiro-Viajante mostra homens que batem de
porta em porta para vender a Bíblia. Seja nos momentos
da venda, seja quando os vendedores retornam ao quarto
de hotel onde se hospedam, a postura dos Maysles é a
mesma: deixar câmera e som ligados e buscar se neutralizar
(diferente de se anular) no espaço. Pouco a pouco o
filme foca Paul Brennan com mais atenção. Suas vendas
vêm caindo, seu humor vai embora, suas piadas se tornam
cada vez mais ácidas. Uma semelhante camuflagem do dispositivo
permitia a Frederick Wiseman implodir o discurso institucional,
ou seja, deixá-lo ruir a partir de elementos que saíam
de dentro da própria instituição, editados de modo a
produzir efeitos não raro cruéis – o último plano de
High School vai muito por aí, por mais sensacional
e assustador que seja. Em Caixeiro-Viajante,
de uma hora para outra começamos a ver a implosão do
modelo democrático americano, que mostra sua incompatibilidade
com certas vontades individuais ao submergir na frustração
de Paul. Onde o sonho americano gostaria que houvesse
uma massa, homogênea, o filme revela um quadro heterogêneo,
feito primeiro de indivíduos, depois de lares/famílias
– e estes por vezes são incomunicáveis.
Esse tropismo pelo trágico no cinema dos Maysles deste
período ganha um contorno não menos que sinistro no
filme que fizeram em seguida. Os caixeiros-viajantes
vendiam a Bíblia, e não é por acaso que um ano depois
Gimme Shelter mostrará um apocalipse filmado
com claros acentos bíblicos – basta pensar na procissão
de espectadores-peregrinos atravessando o deserto californiano
rumo à aparição dos ídolos, os Stones. A fatalidade
da história é conhecida: na Califórnia do “paz e amor”,
uma confusão entre a platéia e os hell’s angels
que faziam a “segurança” do show em Altamont descambaria
em morte. As câmeras estavam lá, posicionadas, formando
uma rede, aguardando pelo que viesse a acontecer. Ao
cabo desse exercício de espera e de atenção, o material
que tinham era o suficiente para construir um verdadeiro
monumento do cinema direto, o filme sobre o “fim de
uma era”. Nos irmãos Maysles, e no cinema direto como
um todo, há algo de uma estética da armadilha: a equipe
fica lá, calada, à espera e à espreita, usando o zoom
para não precisar chegar perto demais, evitando se mexer
ou fazer barulho para não espantar a presa. Muitas falas
de Albert na entrevista feita em fevereiro de 2006 me
deram a impressão de que ele preparava mesmo uma espécie
de armadilha. Na verdade, contudo, sua aproximação com
os personagens de Caixeiro-Viajante – contradizendo
a postura de um mero caçador – é profundamente afetiva,
e seu método não antecipa os discursos, mas sim os desvenda
ao longo de um filme-processo que se descobre filme-crise.
Gimme Shelter também funciona assim: quem imaginava
que o “Woodstock da costa oeste” seria a pá de cal da
geração flower power? (E será que foi? Ou é o
filme que, hoje, nos faz crer nisso?)
A entrevista feita por João Moreira Salles é bem interessante
principalmente porque o entrevistador é não apenas um
admirador confesso do cinema direto, mas também um realizador
que tem em cineastas como Pennebaker, Wiseman, Robert
Drew e os próprios Maysles suas maiores influências.
É cativante a curiosidade com que ele tenta extrair
o máximo de informações sobre o método-Maysles, sobre
a técnica empregada e seu desdobramento ético-estético,
sempre flertando com o ponto limítrofe em que a entrevista
se tornaria “consulta” pessoal. Tão iluminadora quanto
essa entrevista recente é a conversa de Albert e David
com o apresentador de um programa de TV, gravada em
1968, na ocasião em que eles bancaram a estréia do filme
do próprio bolso. Havia um entusiasmo grande com aquela
estética nova – e sua comparação com o cinéma vérité
é veementemente rechaçada pelos Maysles mais de uma
vez ao longo do bate-papo. Completando os extras, vem
o primeiro filme de Albert, curta-metragem documental
mais à moda antiga, sobre a psiquiatria na Rússia. Em
meio aos interesses científicos do documentário, um
observador inquieto já se insinua. Na década seguinte,
Caixeiro-Viajante já seria, em pleno sentido,
uma arte de observar – com inquietação.
Luiz Carlos Oliveira Jr.
(DVD Videofilmes)
|