BOÊMIO ENCANTADOR
George Cukor, Holiday, EUA, 1938

Uma característica marcante no cinema americano da década de 1930 e 1940, em especial de suas comédias, é a objetividade. Partindo do mestre-mor e pai de todos, Ernst Lubitsch, e passando por diversos diretores que cultivaram o gênero, como Howard Hawks, Leo McCarey, Preston Sturges, Gregory La Cava ou Billy Wilder, a quase totalidade de suas comédias impressiona pela simplicidade, pelo ritmo ágil de diálogos e de uma montagem quase imperceptível, e principalmente pela total ausência de excessos na narrativa. Tudo muito direto, numa alquimia aparentemente simplória, mas reflexo de uma técnica elaborada e milimetricamente precisa, cada vez mais difícil de ser reproduzida dentro dos padrões atuais do cinema comercial.

George Cukor foi mais um desses diretores, criados no sistema de produção dos estúdios e dos que desenvolveu com melhor apuro essa simplicidade narrativa. Não um especialista em comédias, mas, também como grande parte de seus contemporâneos, um pau-prá-toda-obra, saindo-se bem em qualquer gênero ao qual se entregasse. Então temos aqui Boêmio Encantador, menos falado e conhecido que outras incursões suas pela comédia como Núpcias de Escândalo (1940), Costela de Adão (1949) ou Nascida Ontem (1950). Mas um marcante exemplo de toda a ouriversaria à qual nos referimos no parágrafo anterior. Já caracterizada pela seqüência inicial, onde Johnny Case (Cary Grant) chega de uma viagem de férias à casa de um casal amigo, anunciando o noivado relâmpago com uma moça à qual se apaixonara durante o passeio. Destacando mais uma vez a submissão do cineasta à confecção de uma narrativa ágil, vale citar que, como apresentado num extra do DVD, foi filmado todo um prólogo retratando o processo de conhecimento do casal – em externas, coisa raríssima para a época – e que foi simplesmente eliminado por Cukor na sala de montagem pelo fato dele acreditar que as cenas em nada acrescentariam à trama.

Sempre excelente na direção de atores, Cukor nos traz aqui uma dupla de gênios, Cary Grant e Katharine Hepburn, ainda em estado bruto e burilando sua técnica, mas numa parceria que já vinha azeitada pelo seu trabalho imediatamente anterior, a obra-prima Levada da Breca (1938) de Howard Hawks. O roteiro não esconde sua origem teatral, mas Cukor e seus montadores têm pleno domínio de ritmo para não deixar que tudo descambe num mero “teatro-filmado”.

Voltando à trama, na segunda seqüência temos Johnny chegando à casa da amada, Julia (Doris Nolan), e descobrindo que ela é de família riquíssima. Somos também apresentados ao restante da família, o pai (Henry Koller), milionário a quem a busca dos lucros fala sempre mais alto, o irmão (Lew Aires), infeliz e alcoólatra, e a irmã, Linda (Hepburn), que se proclama a “ovelha negra da família”, rebelde e inconformista, tentando impor seu temperamento e ponto de vista particulares, numa personalidade bem próxima daquela cultivada em sua vida pessoal pela atriz que lhe dá vida. Daí em diante, temos o embate pessoal de Johnny entre a submissão às convenções sociais e aos ideais gananciosos da noiva e seu pai e a manutenção de seu projeto pessoal, o qual incluiria ganhar apenas o dinheiro suficiente para que se possa aproveitar a vida com intensidade, com o qual Linda se identifica. Obviamente, no decorrer do processo, Johnny acabará descobrindo que na verdade seria a irmã sua mulher ideal.

Vemos dessa forma que Boêmio Encantador é uma comédia toda embasada numa trama mais lenta e delicada, porém não menos sedutora, que a encontrada no ritmo frenético que dominava as comédias da época, no estilo denominado screwball, calcado numa intensa fluidez de diálogos irônicos entre os casais de protagonistas, vivendo um processo de brigas-reconciliações. Aqui temos um casal que passa por um processo de descoberta e que somente se assume como tal na seqüência final. Mas antes disso, Cukor nos traz momentos singulares e inesquecíveis, como aquele em que Julia anuncia ao pai seu novo amor em meio a uma missa ou a festa particular que Linda, Johnny e alguns amigos levam a cabo em um aposento retirado na mansão, em meio à recepção pomposa que deveria marcar o noivado de Johnny e Julia.

Outro fato marcante em Boêmio Encantador é a forma bastante sutil com que o filme desenvolve suas críticas sociais. Se, ao mesmo modo que em Irene a Teimosa (1936) de La Cava, temos aqui uma sátira corrosiva sobre a futilidade da vida dos ricos, vemos que o filme de Cukor vai um pouco mais além. Mesmo que não abertamente, o filme acaba destacando o quão nociva é a ganância capitalista, o que pode ser exemplificada no momento de diálogo em que Julia afirma “Não há nada mais excitante em ganhar dinheiro”. Coerente com essa abordagem está o retrato curioso da personagem do irmão alcoólatra, visto com uma rara simpatia, sem nunca ser condenado ou ridicularizado, mas que transfere em sua fuga para a bebida a infelicidade de sua fraqueza em não conseguir, como Linda, desafiar os ideais paternos. O filme se encaixa numa defesa dos ideais liberais, num posicionamento anti-republicano bem mais discreto, mas não menos poderoso, que o que Frank Capra apresentava em seus filmes na mesma época, mostrando-se inclusive atento à contribuição capitalista à ascensão de um totalitarismo, como no momento em que um antipático casal de primos é recebido debochadamente por Linda e seu grupo com uma saudação fascista.

Com tudo isso, fica o questionamento sobre as razões que levaram Boêmio Encantador a ter permanecido, ao longo das décadas, menos conhecido e discutido que outros exemplares de sua época. E o fracasso de bilheteria ao lançamento não é justificativa suficiente. Daí a grande importância de seu lançamento em DVD no mercado brasileiro, marcando a (re)descoberta desse pequeno grande filme. Que deve ser visto e revisto nem que seja somente para se apreciar o singelo e genial momento em que Grant e Hepburn descobrem o amor dançando ao som de uma caixa de música.


Gilberto Silva Jr.

(DVD Columbia)

 

 





Cary Grant e Katharine Hepburn em Boêmio Encantador