Curioso que o subtítulo desta transposição do romance
de Patrick Süskind para o cinema seja “a história de
um assassino”, visto que o ato de matar tem tão pouca
importância para a narrativa de Tom Tykwer – que parece
mais interessado em fazer com que a história seja conhecida
em seus traços principais do que conceder substância
a gestos ou sensações. A narração em terceira pessoa,
que conduz o filme boa parte do tempo, busca articular
tudo aquilo que, às imagens, custaria muito contar (em
duração e em expressão cinematográfica). Não apenas
pela grande quantidade de acontecimentos que a prosa
pode articular sem problemas e que Tykwer procura manter,
como pela própria natureza etérea e impalpável do principal
elemento dramático – o olfato do personagem. Assim sendo,
todas as informações necessárias para seguir adiante
são jogadas em palavras e o diretor se desdobra em histerias
da forma, fazendo sua câmera metaforicamente flutuar
e percorrer caminhos no ar, para simbolizar os odores
que Jean-Baptiste Grenouille percebe.
Conhecemos a sensibilidade do personagem, portanto,
não pela dedicação do filme em fazer sentir,
mas por sua preocupação em fazer entender. Toda
a relação de Grenouille com o mundo (sensorial e socialmente),
um dos eixos importantes da história, é, pois, resumida
ao que o narrador informa sobre ela. É assim que a obsessão
em preservar os odores das mulheres torna-se uma motivação
quase óbvia do decorrer da vida do personagem e a narrativa
segue sem suspense ou tensão em relação aos acontecimentos,
como se seu desenrolar já estivesse prefigurado. Para
o triunfo do Grenouille-herói, que deve cumprir estas
“predeterminações” intuídas pelo filme, somos inclusive
levados a torcer, a despeito do caráter de suas ações.
Há em Perfume este quê incômodo, para além dos
expedientes narrativo-formais duvidosos: a obsessão
mórbida do personagem tornar-se absolutamente factível
e até justificada pelo seu admirável dom, que o afasta
da civilização e o aproxima de uma condição quase sobre-humana.
Grenouille é retratado como um homem excepcional pela
sua proximidade com a natureza e genial pela forma como
une a seus impulsos um raciocínio aguçado. Toda a sua
frieza, egoísmo e misantropia são relevados em nome
de uma espécie de naturalismo, de volta a um estágio
primitivo de relação vital com os sentidos e instintos.
O que poderia haver de transgressor nessa figura é anulado,
porém, por estas imagens que nos trazem um Grenouille
sempre confiante, soberbo, orgulhoso e quase-consciente
de seu valor – para a narrativa, antes de tudo. O contraste
entre a pobreza e a riqueza, entre o submundo que o
originou e a nobreza que ele aspira “capturar”, parece
ser apenas uma figuração – um fetiche visual do sujo
decadente e do belo asséptico – e nunca um fator sócio-econômico
que implica em valores, em forma de viver e relação
com o mundo. O que dizer então da seqüência final, em
que o esforço aniquilador deste homem é revertido em
um momento único de “despertar da natureza” de todos
os presentes, que há um segundo queriam ver jorrar seu
sangue? Afinal, em nome do sublime – de um segundo no
paraíso – e do rompimento com as amarras da civilização
(leis de comportamento, sensorialidade prescrita), o
que significa a vida de algumas mulheres?
Infelizmente, Tom Tykwer não encontra ironia mais ampla
nisto, pois faz Grenouille, esse ser praticamente não-humano,
pairar acima de todos os outros. Seu dom, uma inesperada
potencialidade extremada de uma característica humana,
que, por caminhos tortos, o faz se voltar contra a humanidade,
não é sinal de perversão ou de problematização do sentido
de humanidade. E o que poderia incorrer em contestação
e colocação em crise dos valores da burguesia e da “civilização”
(o perfume, símbolo elogiado da manutenção de aparências
que são puro efeito, expondo a natureza mais bruta e
animal das pessoas), apenas exalta o poderio particular
do personagem, vinculado de forma intensa à natureza.
Uma natureza, no entanto, estranhamente avessa à vida.
Tatiana Monassa
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