PECADOS ÍNTIMOS
Todd Field, Little Children, EUA, 2006

Quantos segredos ainda se podem esperar de um subúrbio americano, com suas famílias desequilibradas e paranóias patológicas, depois de tantos filmes, de tantos discursos? Pecados Íntimos insiste exatamente nessa vontade por subterrâneos, mas ao mesmo tempo declara melancolicamente sua própria inviabilidade, posto que nada mais restou a ser descoberto, nenhum desejo escondido ainda aguarda por sua revelação, todo este ambiente suburbano já tendo sido devidamente dominado e decodificado pelos anos de impulso controlador manifesto em alguns cineastas (Todd Field incluído). Todo o drama do filme é acompanhado por uma narração onisciente, num tom típico dos programas documentários de uma tevê pública, cheio de informação como deve ser um show educativo, e ao mesmo tempo também um pouco sarcástico, com inegável humor negro. Este narrador é a materialização do escavador de sujeiras (lembremos de uma imagem-irmã: Steven Soderbergh começando seu Bubble com uma retro-escavadeira revirando a terra de um gramado vazio, sendo essa precisamente a intenção do filme em relação à personalidade supostamente pacata de sua protagonista); tudo aquilo ao qual, a princípio, não teríamos acesso, todos os pensamentos íntimos dos personagens, todas suas idiossincrasias não aparentes, nos serão contadas por este narrador, e aí sua comicidade assoberbada joga um papel fundamental. Em Pecados Íntimos não estamos apenas revolvendo as terras já arrasadas de uma consciência americana recorrente no cinema. Essa recorrência, essa impossibilidade do segredo, nos deixa tão soberanos sobre estes personagens que é pelo riso de constrangimento, e não mais pela identificação ou compaixão, que devemos nos relacionar com eles.

O filme acredita na pedagogia do trauma, segundo a qual todo evento emocional extraordinário, se percebido com inteligência e humildade por aqueles que o experimentam, pode servir como lição de vida, como corretor de rumos, num horizonte que tem como sentimento primordial a segurança. É por ela que todas essas famílias optaram pela vida nos subúrbios, é sobre ela que se fundam todos seus casamentos falidos, mas ainda assim vigentes, porque provedores do conforto e do luxo que a cidade grande e a vida solteira não poderiam oferecer. Do mesmo modo, para que esta crença na segurança seja reforçada, para que se mantenha enquanto guia das ações de todos ali, diante de um sinal mínimo de afronta a esse mandamento (como, por exemplo, um adultério), é preciso colocá-la à prova.

Em Entre Quatro Paredes, Todd Field internalizava esta ameaça à estabilidade ao colocar o elemento perturbador da ordem dentro do ambiente familiar (o título em português é bastante preciso quanto a isso). Um ex-marido ciumento mata o jovem noivo de sua ex-mulher, o que provoca nos pais do rapaz uma revisão de sua própria relação: drama interior, quase consangüíneo, onde os símbolos exteriores (o mais marcante deles sendo a ponte móvel existente na cidade em que o filme se passa) não são mais que reflexos inflados de todas as revoluções da intimidade deste casal que perde o filho. Pois em Pecados Íntimos já não estamos apenas dentro de um quarto, dentro de uma casa. Lidamos a todo tempo com a conjugação entre o privado e o público, não só no jogo de esconde-esconde embutido na proposta inicial de desenterrar podres alheios (ainda que essa seja realmente a maior vontade do filme, expressa, sobretudo, no modo como Field filma os momentos secretos de cada um dos personagens: a câmera parece estar sempre no ponto de vista de um observador voluntário que espia por trás da porta). O público agora é tomado como a soma de pequenos espaços privados, de maneira tão intestina quanto no filme anterior, só que agora a família é a cidade, cada casa é um membro, cada personagem apenas um bonequinho de cera pronto para ser quebrado no primeiro ataque de nervos de alguém.
E o trauma agora aparece personificado, já não é apenas um ato violento como em Entre Quatro Paredes, mas sim o próprio desdobramento figurativo do mal. O pedófilo interpretado por Jackie Earle Haley é quem dispara, involuntariamente, o alarme da insegurança na comunidade suburbana. Seu retorno não perturba apenas a ordem pública (tenta nadar na piscina pública cheia de crianças e causa um tumulto, com todos os pais tirando seus filhos da piscina, até a intervenção policial), mas também a profana de maneira imperdoável (no primeiro encontro que tem com uma mulher, depois do tempo de cadeia, o pedófilo pede para que a moça pare o carro na frente do mesmo playground onde brincam todos os dias os filhos de Sarah e Brad, os protagonistas, e então começa a se masturbar assustadoramente, olhando para o balanço).

Incorporador de todos os males, redentor de todas as perdas, poucas vezes se viu um personagem tão funcional dentro de um filme como este pedófilo de Pecados Íntimos. Sua presença é o chamado à responsabilidade: é preciso defender as trincheiras da família e do subúrbio, preservar sua integridade física e moral, e já não importa se, em algum momento anterior, houve até mesmo a defesa do adultério como liberalização feminina (a Sarah de Kate Winslet faz exatamente isso num grupo de leitura que discute Madame Bovary); não há definição melhor para a política da homeland security do governo americano que este filme de Todd Field, uma quase-propaganda do regime. É por ela que todas as histórias contadas se ligarão, no ato final. Brad precisa bater a cabeça violentamente no chão, depois de uma manobra de skate, para recuperar a consciência e valorizar o amor de sua esposa; Sarah, com quem Brad iria se encontrar no parque para fugirem juntos, se não tivesse acontecido o acidente, se vê apavorada diante da presença do pedófilo ali, àquela altura da noite, e sai desesperada atrás de sua filha, que desapareceu. No encontro, sob a luz divina de um poste público, um abraço que confirma a necessidade de se manter ao lado da família, única fonte de preocupação e amor verdadeiros na vida. Ao nosso maníaco sexual restará, finalmente, a mutilação da própria genitália, de acordo com a má interpretação de um bilhete deixado por sua mãe recém-falecida. Mas, como que agradecendo pela disponibilidade de servir tão bem aos propósitos educativos de seu filme, Todd Field aproxima de seu pedófilo o valentão que o importunava diariamente, para que salve a vida do rapaz ensangüentado e, no caminho, recupere a sua própria.

O tempo das fábulas morais parece ter acabado. Resta agora o moralismo puro e simples, que não tem pudor nenhum em abandonar a fabulação em nome instalação da arte naquela mesma cultura do medo que faz o mundo funcionar por níveis coloridos de perigo. Pecados Íntimos é o cinema sem vergonha, sem segredos, sem fundo, sem vida, sem nada.


Rodrigo de Oliveira