Quantos
segredos ainda se podem esperar de um subúrbio americano,
com suas famílias desequilibradas e paranóias patológicas,
depois de tantos filmes, de tantos discursos? Pecados
Íntimos insiste exatamente nessa vontade por subterrâneos,
mas ao mesmo tempo declara melancolicamente sua própria
inviabilidade, posto que nada mais restou a ser descoberto,
nenhum desejo escondido ainda aguarda por sua revelação,
todo este ambiente suburbano já tendo sido devidamente
dominado e decodificado pelos anos de impulso controlador
manifesto em alguns cineastas (Todd Field incluído).
Todo o drama do filme é acompanhado por uma narração
onisciente, num tom típico dos programas documentários
de uma tevê pública, cheio de informação como deve ser
um show educativo, e ao mesmo tempo também um pouco
sarcástico, com inegável humor negro. Este narrador
é a materialização do escavador de sujeiras (lembremos
de uma imagem-irmã: Steven Soderbergh começando seu
Bubble com uma retro-escavadeira revirando a
terra de um gramado vazio, sendo essa precisamente a
intenção do filme em relação à personalidade supostamente
pacata de sua protagonista); tudo aquilo ao qual, a
princípio, não teríamos acesso, todos os pensamentos
íntimos dos personagens, todas suas idiossincrasias
não aparentes, nos serão contadas por este narrador,
e aí sua comicidade assoberbada joga um papel fundamental.
Em Pecados Íntimos não estamos apenas revolvendo
as terras já arrasadas de uma consciência americana
recorrente no cinema. Essa recorrência, essa impossibilidade
do segredo, nos deixa tão soberanos sobre estes personagens
que é pelo riso de constrangimento, e não mais pela
identificação ou compaixão, que devemos nos relacionar
com eles.
O filme acredita na pedagogia do trauma, segundo a qual
todo evento emocional extraordinário, se percebido com
inteligência e humildade por aqueles que o experimentam,
pode servir como lição de vida, como corretor de rumos,
num horizonte que tem como sentimento primordial a segurança.
É por ela que todas essas famílias optaram pela vida
nos subúrbios, é sobre ela que se fundam todos seus
casamentos falidos, mas ainda assim vigentes, porque
provedores do conforto e do luxo que a cidade grande
e a vida solteira não poderiam oferecer. Do mesmo modo,
para que esta crença na segurança seja reforçada, para
que se mantenha enquanto guia das ações de todos ali,
diante de um sinal mínimo de afronta a esse mandamento
(como, por exemplo, um adultério), é preciso colocá-la
à prova.
Em Entre Quatro Paredes, Todd Field internalizava
esta ameaça à estabilidade ao colocar o elemento perturbador
da ordem dentro do ambiente familiar (o título em português
é bastante preciso quanto a isso). Um ex-marido ciumento
mata o jovem noivo de sua ex-mulher, o que provoca nos
pais do rapaz uma revisão de sua própria relação: drama
interior, quase consangüíneo, onde os símbolos exteriores
(o mais marcante deles sendo a ponte móvel existente
na cidade em que o filme se passa) não são mais que
reflexos inflados de todas as revoluções da intimidade
deste casal que perde o filho. Pois em Pecados Íntimos
já não estamos apenas dentro de um quarto, dentro de
uma casa. Lidamos a todo tempo com a conjugação entre
o privado e o público, não só no jogo de esconde-esconde
embutido na proposta inicial de desenterrar podres alheios
(ainda que essa seja realmente a maior vontade do filme,
expressa, sobretudo, no modo como Field filma os momentos
secretos de cada um dos personagens: a câmera parece
estar sempre no ponto de vista de um observador voluntário
que espia por trás da porta). O público agora é tomado
como a soma de pequenos espaços privados, de maneira
tão intestina quanto no filme anterior, só que agora
a família é a cidade, cada casa é um membro, cada personagem
apenas um bonequinho de cera pronto para ser quebrado
no primeiro ataque de nervos de alguém.
E o trauma agora aparece personificado, já não é apenas
um ato violento como em Entre Quatro Paredes,
mas sim o próprio desdobramento figurativo do mal. O
pedófilo interpretado por Jackie Earle Haley é quem
dispara, involuntariamente, o alarme da insegurança
na comunidade suburbana. Seu retorno não perturba apenas
a ordem pública (tenta nadar na piscina pública cheia
de crianças e causa um tumulto, com todos os pais tirando
seus filhos da piscina, até a intervenção policial),
mas também a profana de maneira imperdoável (no primeiro
encontro que tem com uma mulher, depois do tempo de
cadeia, o pedófilo pede para que a moça pare o carro
na frente do mesmo playground onde brincam todos os
dias os filhos de Sarah e Brad, os protagonistas, e
então começa a se masturbar assustadoramente, olhando
para o balanço).
Incorporador de todos os males, redentor de todas as
perdas, poucas vezes se viu um personagem tão funcional
dentro de um filme como este pedófilo de Pecados
Íntimos. Sua presença é o chamado à responsabilidade:
é preciso defender as trincheiras da família e do subúrbio,
preservar sua integridade física e moral, e já não importa
se, em algum momento anterior, houve até mesmo a defesa
do adultério como liberalização feminina (a Sarah de
Kate Winslet faz exatamente isso num grupo de leitura
que discute Madame Bovary); não há definição
melhor para a política da homeland security do
governo americano que este filme de Todd Field, uma
quase-propaganda do regime. É por ela que todas as histórias
contadas se ligarão, no ato final. Brad precisa bater
a cabeça violentamente no chão, depois de uma manobra
de skate, para recuperar a consciência e valorizar o
amor de sua esposa; Sarah, com quem Brad iria se encontrar
no parque para fugirem juntos, se não tivesse acontecido
o acidente, se vê apavorada diante da presença do pedófilo
ali, àquela altura da noite, e sai desesperada atrás
de sua filha, que desapareceu. No encontro, sob a luz
divina de um poste público, um abraço que confirma a
necessidade de se manter ao lado da família, única fonte
de preocupação e amor verdadeiros na vida. Ao nosso
maníaco sexual restará, finalmente, a mutilação da própria
genitália, de acordo com a má interpretação de um bilhete
deixado por sua mãe recém-falecida. Mas, como que agradecendo
pela disponibilidade de servir tão bem aos propósitos
educativos de seu filme, Todd Field aproxima de seu
pedófilo o valentão que o importunava diariamente, para
que salve a vida do rapaz ensangüentado e, no caminho,
recupere a sua própria.
O tempo das fábulas morais parece ter acabado. Resta
agora o moralismo puro e simples, que não tem pudor
nenhum em abandonar a fabulação em nome instalação da
arte naquela mesma cultura do medo que faz o mundo funcionar
por níveis coloridos de perigo. Pecados Íntimos
é o cinema sem vergonha, sem segredos, sem fundo, sem
vida, sem nada.
Rodrigo de Oliveira
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