O ÚLTIMO REI DA ESCÓCIA
Kevin Macdonald, The Last King of Scotland, EUA, 2006

A primeira informação que recebemos de O Último Rei da Escócia é uma tela preta com letras brancas que nos avisa que o filme foi inspirado em fatos reais. Avisos como esse parecem querer legitimar o filme como peça histórica contendo relatos relevantes ou justificar a existência de “cenas fortes” aparentemente exageradas, como que já se preparando para responder críticas de senhoras horrorizadas sobre a violência excessiva com a resposta “é triste, mas é a realidade”, estampada antes do próprio filme começar. Mas a ligação imediata com a realidade que esse aviso evoca, em se tratando de um filme cujo contexto histórico é o de uma ditadura sangrenta em um país da África na década de 1970, aumenta a idéia já contida no próprio enredo: um filme-denúncia. No entanto, são necessários apenas 30 minutos de filme para se perceber que o principal interesse do diretor Kevin Macdonald é criar tensão, utilizando o período da ditadura de Idi Amin em Uganda como pano de fundo “eletrizante” para a aventura de seu protagonista, posicionando-se longe de qualquer tipo de denúncia a ser levada a sério.

Logo que entramos nos “fatos reais” da cartela inicial, somos rapidamente apresentados ao jovem escocês Nicholas Garrigan - recém-formado em medicina e com um desejo latente de fugir do cotidiano prosaico que sua família preparou para ele - e em menos de 3 minutos é feito um salto da Escócia para Uganda, onde “Nick” vai ajudar pessoas miseráveis. Embora cheio de clichês a princípio, o personagem de Nicholas é bem trabalhado pelo filme. Sua gradativa mudança de consciência sobre a situação de Uganda é óbvia dentro da trama, mas interessante. No pouco tempo em que fica lá, ele deixa de ver sua viagem como apenas uma aventura (uma de suas primeiras atitudes quando chega no país é flertar e ir pra cama com uma jovem, sem se interessar sobre o que ela diz sobre o golpe que o general Idi Amin acabara de dar), e passa a entender a necessidade de uma estrutura de saúde no país e, posteriormente, a complexidade política causada por anos de imperialismo. Sua melhor compreensão da situação de Uganda deriva de um maior envolvimento com ela e com o próprio ditador/presidente Idi Amin, mas também será motivo de toda a tensão criada pelo diretor.

Se o peso do personagem de Nick se dá pelo tempo em que a narrativa o acompanha – quase a totalidade do tempo do filme –, o de Amin se dá pela força da interpretação de Forrest Whitaker. Sua presença em quadro faz os personagens e os espectadores tremerem e rirem. Ele é um ditador excêntrico, lunático e violento, cuja personalidade fascina e abala as pessoas a sua volta, e tudo isso está presente na maneira de se colocar em cena do ator. Mesmo sendo tomado por um bobalhão por Nick no início do relacionamento dos dois, para os espectadores está claro que esse homem não é um ditador à toa. Amin é o bandido, o vilão, enquanto o escocês é obrigado a ser algum tipo de herói, devido à proximidade deles (Nick é convidado a ser o médico particular de Amin) e a facilidade que ele tem de interferir na vida do general.

A questão é que Amin não é um vilão apenas para Nick, ao contrário do que faz parecer o filme. Mesmo com toda a insistência na questão de um certo retrato da realidade (o que a fotografia granulada, as referências biográficas a Amin e as imagens de arquivos “refilmadas” só tendem a ampliar), a encenação exagerada coloca Amin como antagonista unicamente do jovem escocês, pois é com a segurança dele que o filme joga ou se preocupa. O Último Rei da Escócia, em um certo ponto, abraça o gênero do suspense e assume que a sobrevivência de seu protagonista importa mais que a situação de todo um país. Mas como esquecer que aquele homem foi responsável por mais de 300.00 mortes durante a sua ditadura, como uma outra cartela, agora no final do filme, faz questão de nos informar?

Por mais que se afirme que o país ganha a importância devida quando o jornalista inglês aparece e começa a abrir os olhos de Nick para as atrocidades cometidas por Amin sobre o povo ugandense, finalmente exigindo que o médico arrume uma forma de assassinar o General, é interessante perguntar “que povo ugandense?”. Onde está esse povo no filme? Como massa, o povo é tratado como alienado e ingênuo, dividido entre a felicidade com a tomada de poder por Amin e a inércia conformada dos habitantes, tão exagerada na generalização do filme que chega a reificar essas pessoas. Individualmente, os poucos ugandenses presentes parecem só estar lá para cumprir sua função na trama, como é uma das esposas de Amin, com a qual Nick se envolve, e o antigo médico particular dele, sem nos aproximar de um lado mais íntimo dos problemas do país, que estaria para além dos estereótipos e do resumidos livros didáticos de história. Em contrapartida, os ingleses cujo escocês principal nutre uma antipatia derivada de razões políticas e históricas, são colocados como as pessoas cientes da situação, preocupadas e ativas no movimento para derrubar o ditador, o que é bastante estranho se pensarmos que foram os próprios europeus que submeteram os países Africanos àquela situação, após anos de exploração imperialista e de parceria com governos corruptos.

Todos esses fatores parecem ser fruto de uma certa inabilidade do diretor Kevin Macdonald, cuja câmera é a principal cúmplice. Ao apresentar Uganda aos nossos olhos, ela trata o ambiente e as pessoas de uma forma exótica e pouco interessada já tão comum nos filmes passados na África – com direito a uma espécie de tique de câmera, um zoom rápido como a lente de um turista buscando um close, que se repete incessantemente. O pretexto de que esse olhar inicial representa o olhar de Nick ainda na fase aventureira de sua viagem seria interessante se o filme não mantivesse o mesmo comportamento da câmera por todo ele. O zoom que antes procurava o belo sorriso de um africano é utilizado com a mesma forma para procurar suspense e tensão nos olhares dos personagens, quando a vida de Nick entra em perigo. O acúmulo da tensão durante o filme cria um efeito do tipo bomba-relógio em que, como no final de um filme do 007, o mundo inteiro parece depender de uma certa luta contra o tempo de um personagem. Interessante notar que o ponto de alívio do filme, em que o tempo volta ao normal e pára de se comportar como comparsa do vilão, é exatamente quando o protagonista consegue fugir do país. Mesmo que Uganda ainda esteja nas mãos de um ditador insano, não há mais motivo para suspense, pois o resto é História, são números e estatísticas. O resto é a África.

Se não fosse o fato do filme se travestir de um filme-denúncia que chama atenção para um tema atual (a África, mesmo que aqui no passado), talvez ele se saísse como um filme intrigante, com reviravoltas de roteiro e boas atuações. Mas uma questão do tamanho da que o filme pretende abordar não pode ser tratada como um simples filme de gênero, de mocinho ingênuo e bandido mau. Os "fatos reais" tão ressaltados na propaganda, na crítica, definitivamente criaram o principal defeito dele, impossível de se relevar.

Bernardo Barcellos