Quando
resolve viver a vida, depois da descoberta de que vai
morrer, Harold Crick vai ao cinema. Na tela, vê O
Sentido da Vida, do Monty Python. É uma comédia.
Uma das mais celebradas já feitas, aliás. Ele ri. Será
a única vez que rirá no filme.
Momento sugestivo em um filme que é supostamente também
uma comédia. Mas, veja: é uma comédia cujo protagonista
acaba de saber que vai morrer. Em que, apesar de mostrar-se
feliz nos momentos em que se encontra com sua amada,
esse protagonista não ri. No filme, ele ou está perplexo
ou está de fato arrasado diante da perspectiva da morte.
E, de fato, há pouco do que rir em Mais Estranho
que a Ficção. Não por uma suposta ineficiência de
sua operação cômica, mas é porque ele é montado mesmo
como uma comédia triste. Aliás, de comédia, o filme
guarda mais a definição estrutural, a idéia de subversão
da lógica do drama e da tragédia. No horizonte, então,
coloca-se um conflito sobre que estatuto dar aos acontecimentos,
no horizonte de uma padronização: notícias de morte
são para fazer chorar, ainda que num ambiente de riso.
Enterro de palhaço também traz luto ao circo.
E uma operação metalingüística está não apenas nessa
construção estrutural que coloca no filme cenas mais
torcidas para o lado do absurdo do que da gag (como
a da demolição da fachada do prédio por engano ou os
encontros com o professor de literatura ou mesmo a própria
apresentação do inusitado plot). Essa metalinguagem
transparece também, por exemplo, no casting,
ao se utilizar Will Ferrell, sobre quem pesa uma imagem
muito mais forte como comediante do que como ator, e
Queen Latifah, que tem ocupado papel de alívio cômico
em comédias e dramas e fez de seu rosto uma imagem familiar
ao riso.
Se essa operação de casting, entretanto, ocupa
um lugar de clichê em um universo de elencamento que,
no cinema americano, tem feito o trânsito de comédia
para drama para atores associados ao primeiro gênero
- com Jim Carrey, Adam Sandler e Jack Black como exemplares
mais habituais e recentes dessa mecânica -, ela ao mesmo
tempo se torna um dos elementos mais determinantes na
operação do filme. Chapliniano/keatoniano, Ferrell se
dá ao filme como um elemento de um sistema, mais do
que como ator. Por mais, inclusive, que ele imprima
dramaticidade ao papel - a cena em que ele se resigna
a morrer pelo bem do livro é feita sem nenhum exagero
e não poderia mesmo ser considerada uma situação cômica
-, é pelo jogo duplo de atuação-dramática-de-ator-de-comédia
que se dá tal funcionalidade.
É, então, uma metáfora sobre a morte e sobre como sobreviver
a sua eminência: em certa medida, Harold Crick poderia
ter câncer ou ser um condenado, sua reação em busca
da autora não é muito diferente da de um enfermo que
busca a cura ou de um executando que busca por clemência.
E é uma tentativa de uma narrativa doce - porque fantasiosa
- sobre ela. E não porque seja um filme “existencialista”,
mas porque ele faz uma eficiente articulação entre vida
e mitificação, a partir justamente do jogo com a disparidade
entre timing de comédia e timing de drama.
Uma boa demonstração disso é a cena em que a escritora
descobre que seu personagem existe. Inconsciente do
fato de que escreve a história de um personagem que
existe de fato - e sobre cuja vida (e morte) ela desconhece
ter poder - ela, ao mesmo tempo, ao escrever a passagem
derradeira de seu livro, parece saber, parece participar
de um plano determinado: o telefone toca em resposta
a sua datilografia. Toca mais uma vez. Mais outra. Ela
pede que a assistente não atenda. Ela mesma resolve
atender. Autora, mas também determinada por um outro
autor.
Trata-se, então, de uma tragédia, no sentido grego.
O protagonista se digladia com o destino, com as determinações
superiores, sem que haja um antagonista formal. Ao mesmo
tempo, sua única fonte de delícia é a mesma fonte de
terror: é a morte que lhe abre as portas para o amor.
Há, entretanto, um outro hemisfério no filme e que soa
inexplicável. A mise en scène aposta em uma visualidade
a começar límpida, iluminada e, um passo adiante, por
um conjunto de anotações visuais com uma nítida lógica
digitalizante. Se colabora para a atmosfera de irrealidade
que se quer imprimir para promover a ambigüidade entre
narrativa ficcional e narrativa real(ista), o recurso
ao mesmo tempo dá ao projeto visual do filme uma forte
incoerência. A uma autora que escreve seu livro em uma
máquina de escrever, a direção de arte junta ícones
de feição computacional. É como se todo o universo do
filme estivesse embarcado em um Macintosh. E isso vai
além, chega à semiose: produz um efeito semelhando ao
de vermos um avião a voar em um filme passado no século
XVIII.
Além disso, filme-para-toda-a-família, ele não consegue
escapar da conclusão edificante. Por isso, fecha-se
ao trágico e, ao mesmo tempo, às possibilidades que
a exploração da morte iminente abrem, sobretudo em uma
história dotada de licença por se ambientar no plano
do fantasioso.
Parece ser o problema desse novo gênero comédia-dramática-americana-do-absurdo
(uma fauna de seres como Quero ser John Malkovich,
Adaptação e Brilho Eterno de um Mente sem
Lembranças, os três roteiros de Charlie Kaufman,
ou, anteriormente O Show de Truman): parte-se
de um plot absolutamente inusitado, mas não se
mantém a coragem de sustentar o absurdo, o plot
habitualmente se converte em racionalização. Mesmo que
isso não tenha exatamente comprometido nenhuma dessas
obras, parece ser o grande problema de Mais Estranho
que a Ficção, o que mais radicalmente cede à imposição
de limites.
Alexandre Werneck
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