Logo no começo de Dias Selvagens,
Yuddy (Leslie Cheung) seduz Su Lizhen (Maggie Cheung)
ao convencê-la de que eles sempre se recordarão daquele
minuto que passaram juntos. É a seqüência-chave do filme,
aquela que assombra todo o resto da ação. É também a
seqüência-chave de todo o cinema de Wong Kar-wai.
Parte do prazer de Dias Selvagens talvez resida
justamente na impressão de que a habilidade do cineasta
em captar à perfeição a textura de um momento fugidio
encontrou pela primeira vez sua completa expressão.
É seu segundo longa, mas o primeiro onde teve completa
liberdade e começou a experimentar com seu método peculiar
de filmar e posteriormente dar forma ao material. Permanece
também de certa maneira seu melhor e mais direto filme.
A cada seqüência temos a impressão de um momento capturado,
observado e imaginado nos seus menores detalhes. Basta
ver as cenas de Su Lizhen trabalhando no bar do estádio
ou qualquer momento com o personagem de Jackie Cheung,
que em poucos minutos de tela registra sua presença
de forma tão forte quanto os protagonistas.
Dias Selvagens é um filme cruel. Sua lógica é
a do desejo abortado na forma de um círculo de rejeições.
Praticamente logo depois que Yuddy e Su Lizhen têm seu
minuto, eles já estão a brigar meses depois – seu romance
todo perdido numa elipse. Dias Selvagens tem
só algum tempo para sedução e nenhum para romance. Apesar
de sua reputação de sedutor, o cineasta sempre filma
Yuddy pós-coito, exausto, os pensamentos bem distantes
de quem quer que seja a mulher ao seu lado. A única
que realmente lhe interessa é a mãe cuja identidade
desconhece, e que quando ele finalmente localiza se
recusa a vê-lo.
Com a possível exceção de Amores Expressos, uma
certa atmosfera de desespero sempre foi ingrediente
essencial do cinema de Wong Kar-wai, mas apenas aqui
e em 2046 (o filme a que Dias Selvagens
mais se assemelha) ela encontra expressão total. Até
a própria estrutura do filme reforça esta impressão,
sugerindo que cada um daqueles momentos isolados, por
mais vividos que possam ser, somam-se muito pouco uns
nos outros. A Hong Kong de Dias Selvagens é uma
metrópole fantasma. Não sei se a lenda de que se trata
de uma das produções mais caras do cinema de Hong Kong
é verdadeira, mas o cineasta não gastou um centavo com
extras; Maggie Cheung e Andy Lau podem caminhar sem
rumo pela noite de Hong Kong com a certeza de que não
encontrarão uma única alma.
Dias Selvagens é um filme incompleto. De todas
as tentativas do cineasta de achar um equivalente cinematográfico
para a literatura argentina (em especial Manuel Puig
– o montador Patrick Tam apontou que a principal inspiração
do cineasta para este filme foi Boquitas Pintadas),
Dias Selvagens é o mais bem sucedido com sua
ação passeando por um período pouco superior a dois
anos, sem que nunca tenhamos certeza de quando o próximo
take se passará. Para além das suas múltiplas
elipses, o filme é literalmente incompleto, tendo sido
originalmente planejado como a primeira metade de um
filme em duas partes, projeto cujo complemento nunca
chegou a ser filmado devido ao fracasso comercial do
primeiro. O que sobrou deste segundo filme é apenas
a seqüência final de Dias Selvagens, com um jovem
Tony Leung se preparando para sair na noite. É um dos
grandes momentos do cinema de Wong Kar-wai, uma silenciosa
seqüência de cerca de três minutos que nos emerge por
completo neste personagem sem nome enquanto ele faz
as unhas, coloca um casaco, pega dinheiro e um baralho
e penteia o cabelo. Leung já declarou em entrevistas
de que esta é sua melhor atuação, a despeito dele não
ter nenhum dialogo, e de tudo que sabemos sobre seu
personagem ser comunicado por algumas ações mundanas;
mas este é exatamente o apelo concreto da seqüência,
que só nos oferece o que está bem diante de nossos olhos.
Ainda assim, Dias Selvagens acabou sendo posteriormente
“continuado” com Amor à Flor da Pele e 2046,
e agora que os três filmes estão mais facilmente disponíveis
para o espectador brasileiro, podemos ganhar muito tentando
vê-los em seqüência, já que os filmes se complementam
de formas muito interessantes e não apenas na maneira
como personagens ressurgem de um filme ao outro (como
a Mimi de Dias Selvagens a relembrar Yuddy em
2046). Vale a pena observar como a relação com
os anos 60 em Hong Kong, por exemplo, vai lentamente
se transformando filme a filme: do período que existe
antes de mais nada como uma idéia, em Dias Selvagens,
até a imersão completa com a História, em 2046.
Vistos juntos, eles formam um vasto e belíssimo épico
histórico sobre o sentimento de perda de Hong Kong.
Filipe Furtado
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