Dublê
de Corpo
Sejamos claros: Déjà Vu é um filme ridículo.
Seu andamento dependente de um sem número de absurdos
e de uma premissa justificada através de algumas explicações
científicas constrangedoras. Déjà Vu é um filme
de imagens profundamente deselegantes, imagens de superfície,
saturadas, completamente decalcadas. Enfim, é um filme
de Tony Scott, este autor marginalizado, criador de
corpos virtuais, cujos filmes parecem existir numa espécie
de último estágio de putrefação da imagem. O que por
vezes se esquece é que existe verdadeira inteligência
e obsessão autoral no cinema de Scott; ainda mais importante,
há um verdadeiro sentido de integridade estética no
seu projeto de cinema que em seus últimos três filmes
parece ter alcançado uma perfeita depuração. Por trás
de toda sua vulgaridade e grosseria, os filmes de Tony
Scott são genuinamente experimentais. O que era o anterior
Domino, se não um ensaio avant-garde sobre
imagens de mídia e representação feito num orçamento
de quase blockbuster? Posso quase ouvir a risada do
leitor diante de tal descrição, mas ignorar o trabalho
estético de Tony Scott é voltar as costas para alguns
dos desenvolvimentos potencialmente mais interessante
e experimental da imagem cinematográfica em seu estatuto
mais comercial. Já está mais do que na hora de percebermos
que Déjà Vu e Domino estão mais próximos
de um Peter Tscherkassky – outro grande cinepoeta das
imagens decalcadas – do que de um Piratas do Caribe.
Déjà Vu é vários filmes: um romance fantasmagórico
à Laura, um sci-fi de viagem no tempo, um ensaio
sobre os mecanismos da imagem inspirado em Um Corpo
que Cai, um filme nostálgico sobre o trauma do terrorismo
e, claro, uma produção de Jerry Bruckheimer cheia de
coisas explodindo. No seu centro está um completamente
absurdo laboratório de alta tecnologia, nele alguns
cientistas do governo americano trabalham com um programa
de computador que permite monitorar os acontecimentos
quatro dias e seis horas atrás. Uma espécie de máquina
do tempo imagética, que permite a quem a opera selecionar
o que vê, mas apenas num momento específico. Tudo em
Déjà Vu deriva desta máquina. Trata-se de uma
idéia simples e engenhosa, de múltiplo valor simbólico,
do qual Scott tira o máximo possível.
Uma boa porta de entrada para o filme talvez seja justamente
pensarmos seu título. Não há nenhuma alusão direta ou
função narrativa para a expressão déjà vu: ela
existe exclusivamente como um bom gancho de significado
para as diversas operações realizadas por Scott ao longo
de seu Déjà Vu. Após um atentado terrorista,
a única pista disponível aos agentes governamentais
é o assassinato de uma mulher aparentemente ligado ao
atentado; seguir o cotidiano dela ao longo dos seus
últimos quatro dias de vida se torna o melhor meio de
descobrir evidências que levem ao responsável. Durante
a maior parte do filme, Denzel Washington apenas senta
e assiste a estas imagens geradas pela máquina (ironicamente
apelidada Branca de Neve).
Este atentado inicial nos é apresentado por Scott numa
seqüência de cerca de dez minutos quase desprovida de
diálogos, que funciona como grande momento cinematógrafico
mais tradicional antecedendo a entrada do filme no universo
típico de seu autor. Em constraste com sua sequência
inicial, as imagens de Branca de Neve são filtradas
e recortadas no tom bem típico de Scott (não que o atentado
fuja por completo da obra do cineasta, mas notamos ali
um grande esforço para produzir um tipo de cinema puro
pouco habitual em seus filmes). Nos cinqüenta anos que
separam Um Corpo que Cai de Déjà Vu, televisão
e publicidade substituíram o cinema no nosso imaginário
visual, portanto o que vemos nas imagens de Branca de
Neve não deixam de fazer muito sentido. Em 2006, talvez
a melhor metáfora para o nosso inconsciente visual coletivo
seja mesmo uma espécie de televisão ao vivo quatro dias
no passado filmada como peça publicitária. Como uma
representação de cinema, Branca de Neve não poderia
ser mais humilde e mais próxima da impotência do olhar
do espectador que do domínio do autor: aos operadores
da máquina resta torcer para captarem a imagem precisa
no exato instante que ela ocorre, já que é possivel
reenquadrá-la, picotá-la, filtrá-la à vontade, mas não
voltar o relógio, não transformar o material inicial.
Branca de Neve se propõe como uma verdadeira janela
para um passado concreto, mas suas imagens estão bem
distantes disso e revelam aonde jaz o cinema de Tony
Scott. É no estágio da imagem imaterial e virtual que
o cinema de Scott reside, tentar se engajar diretamente
com os corpos que ela representa significa dar o salto
definitivo para o terreno da ficção científica, ainda
que um movimento necessário.
A arte de Tony Scott sempre foi uma arte de animar uma
imagem morta e desgastada, e encontra aqui portanto
seu momento mais expressivo: o cotidiano de uma mulher
morta, mas ainda assim viva. Um corpo artificial cadáver
tanto numa mesa de autópsia (nossa introdução a ela)
quanto ao escovar os dentes no banheiro. Ainda assim
por trás de filtros de falso capaz de gerar a fascinação
que permite ao filme existir neste terreno do romance
fantasmagórico. Que seu espectador fiel se apaixone
por ela é conseqüência óbvia (não é como funciona nosso
próprio romance com o cinema?). Claro que após abandonar
seu truque metalingüístico, Déjà Vu mantém seu
jogo de imagens assombradas. Quando Washington, de volta
ao passado, finalmente se encontra com a vítima, sua
primeira reação é perguntar você não se lembra de
que apertamos as mãos uma vez?, referindo-se ao
seu encontro na mesa de autópsia, completamente incapaz
de articular a diferença entre virtual e real. Os corpos
nos filmes de Scott são afinal intercambiáveis como
o belíssimo final romântico em que um novo Denzel Washington
substitui o antigo. Quando Brian De Palma atualizou
Um Corpo que Cai como um thriller softcore ele
ainda podia lidar com a idéia de uma mulher que dubla
a outra; a Scott mesmo este referente é negado. Este
apagar de referência no universo das imagens gera a
seqüência mais inspirada do filme (e talvez o momento
maior do expressionismo de Tony Scott), uma perseguição
de carros que se realiza em duas esferas temporais com
Denzel Washington perseguindo a imagem do terrorista
no passado enquanto causa progressiva destruição na
rodovia no presente. A cada instante menos consciente
do estrago que causa à sua volta e mais envolvido com
a perseguição de ficção (ponto reforçado quando no meio
da sequência Washington perde o referente visual e passa
a ser apenas guiado pela narração que recebe via rádio).
É como se a segunda metade do subestimado Chamas
da Vingança fosse concentrada em gloriosos e selvagens
quatro minutos com a obstinência do bom soldado Denzel
Washington (com todas as qualidades hawksianas do melhor
herói do cinema americano) sendo usada como antena amplificadora
do desastre inicial.
A busca por este referente para ancorar estas imagens
decalcadas é a ambição final de toda a parte madura
da obra de Tony Scott. Desastre é uma regra no Scott
tardio, aqui amplificado pela decisão de localizar o
filme em Nova Orleans, cuja paisagem, ainda afetada
pelo furacão Katrina, serve de lembrete de que desastres
contemporâneos nâo se resumem ao terrorismo. Assim como
a evocação constante de Oklahoma City devolve à história
o fato de que terrorismo não passa apenas pelos suspeitos
de sempre do governo americano (por sinal, escalar o
nosso Jesus Jim Caviezel como o terrorista de extrema
direita do filme só nos lembra como Tony Scott é um
mestre do casting). No centro de Déjà Vu se encontra
um desejo por um retorno para um momento pré-11 de Setembro,
por um mecanismo que permitisse tornar terrorismo reversível.
Neste sentido, o filme se assemelha bastante ao Minority
Report de Steven Spielberg, mas enquanto Spielberg
confude imagem com narrativa e se perde numa individualização
da questão, Scott espertamente usa a premissa apenas
como uma porta de entrada para uma alegoria sobre responsabilidade.
Buscando conciliar suas imagens com história, desastre
com responsabilidade. Como ensaio contemporâneo sobre
nossa herança imagética coletiva e história, Déjà
Vu (e Domino) só tem como rival no cinema
americano recente o Femme Fatale de De Palma,
mas aquele filme se apresentava num mais digerível ensaio
discursivo godardiano. O filme de Scott certamente se
sente mais à vontade colocado ao lado do trabalho de
nomes como Peter Tscherkassky ou Pat O’Neill, em que
um sentido corrente das imagens é apresentado de forma
mais abstrata. A crítica cinematográfica brasileira
herdou da francesa um histórico de dificuldades de lidar
com o genuinamente abstrato em cinema e nisso o cinema
de Tony Scott acaba perdido como intercambiável com
o resto da obra do seu produtor, mas para apreciá-lo
basta ver.
Filipe Furtado
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