ANTÔNIA
Tata Amaral, Brasil, 2006

Chora-se muito em Antônia. É assim na descoberta de um flerte com o marido da melhor amiga, é assim quando o irmão é visto todo ensangüentado na rua, e depois durante o trajeto e a espera por notícias no hospital; na reconciliação depois de uma briga, na leitura da carta recebida do presídio, numa festa de casamento granfina ou na boca do palco de um bairro pobre. O choro não é só a explosão de uma emoção imediata, que chega de surpresa e por isso impede qualquer atitude mais estruturada e consciente, primeiro passo de uma cadeia de reações que tenha no fim um plano de ação mais racional. Há aqui o rap, e o modo tão apaixonado com que estas quatro cantoras o abraçam, revelando-se nas letras, construindo nelas a imagem que querem de si, que vêem em si, não só num exercício de imaginação simples, mas de fato descobrindo suas humanidades e imediatamente relatando-as em música, isso já vale como aquele outro complemento que se espera de todas as situações comentadas no início: o grito. Era com ele que, até aqui, a maior parte dos filmes instalados nesse espaço social e geográfico específico da periferia garantia sua inserção num espectro de responsabilidade política e ideológica bastante difusa, mas dado automaticamente como o correto. O retrato do personagem da periferia precisava obrigatoriamente de um quociente reativo, inconformado com sua própria condição, e a alternativa para essa falta de voz, uma vez dada a chance pelo cinema de se expressar para um público que não o conhece, a resposta a toda dificuldade e falta de oportunidade vivida neste ambiente original era o grito. Mas Antônia, ao contrário, chora.

Essa vontade de discurso já está representada com bastante propriedade nas músicas que o grupo compõe e canta. Desde o primeiro show que fazem sozinhas, já sabemos quais são as questões que interessam a essas mulheres: a própria condição feminina é uma delas, sobretudo num meio primordialmente masculino como o do hip-hop; um chamado contínuo à luta, onde a palavra “guerreira” assume diversas aplicações, porque tudo na vida delas exige esse esforço de guerra para que se efetive, amores, família, trabalho, sonho; a raça, negras e mestiças para quem a cor da pele é também uma declaração de princípios, espécie de grito natural que as instala numa posição de histórica reação ao preconceito e a subjugação. Sendo o musical que (também) é, Antônia assimila estas palavras como suas próprias, porque está devotado à aproximação íntima destas personagens, e não há modo de contato mais pessoal com um cantor de rap do que testemunhar o momento em que ele faz e vive sua própria música. Quando desce do palco, é possível buscar os espaços vazios de suas letras, as páginas em branco que todavia não foram escritas, ou que ainda são recentes e fortes demais para tanto, e assim Antônia vai até onde a força divida lugar com a fragilidade, onde a certeza seja tão firme quanto as dúvidas que a cercam, ali onde Preta, Mayah, Barbarah e Lena choram, brigam, titubeiam, erram.

Para tomar parte desses momentos de fraqueza secreta, para assistir os contraplanos das apresentações do grupo, no momento em que a figura da guerreira se debate com a da vítima da violência, da adolescente grávida, da mãe solteira, Antônia precisa tornar-se, ele próprio, um veículo da intimidade, da expressão pessoal pura, um pedaço de arte tão cheio de vida e tão identificado àquilo que o produz a ponto de representar, imaterial e intangível que é, toda a materialidade e fisicalidade daquilo que, a partir dali, é ao mesmo tempo registro e realidade de uma história. O rap é a música da alma, como diz a letra da canção-tema do filme, e o cinema aqui se encarrega de ser a imagem do corpo.

É assim que Antônia se coloca neste ambiente. É preciso estar sempre ao lado dessas meninas, e são seus corpos o princípio organizador de todos os planos, sua presença é aquilo que se busca. Nisso a primeira imagem do filme é reveladora: sai-se do grande plano geral da Vila Brasilândia, cartão-postal possível da periferia dourada pelo sol poente, e chega-se ao nível do chão, com as quatro protagonistas caminhando na direção da câmera, como se exigissem dela essa relação de proximidade. O plano-seqüência parece ser a única chance de se chegar à esses momentos de revelação das fraquezas e dúvidas, como se a disposição em montar a cena, em dividi-la em vários pedaços comunicantes, acabasse por reproduzir apenas a construção de um sentimento, e não o sentimento por si (é curioso perceber como as cenas com decupagem interna, que tentem alguma dinâmica de campo/contracampo, parecem sempre alardear esta construção, uma resposta que pode chegar minutos, horas depois que se filmou a pergunta, como quando Preta e sua mãe conversam na cozinha de casa na manhã em que a moça vem buscar sua filha). Do mesmo modo, só a câmera na mão poderia ser capaz de manter este contato permanente com as protagonistas, podendo escapar junto com elas de uma casa de shows tumultuada, mas também conseguindo dividir o espaço do cômodo pequeno de uma casa. Essa fórmula de crueza e humanidade semi-documental, que se estabelece nos últimos tempos com o uso do digital, chega a Antônia como uma quase novidade, porque ali não se é conformativo, não se atribui ao registro uma valorização pré-ordenada que domestica e encerrara o objeto de atenção em suas fronteiras, e não o contrário (nesse sentido não existem filmes mais diferentes que Antônia e Contra Todos, do mesmo Roberto Moreira que divide aqui o roteiro com Tata Amaral). Antônia se constrói desse jeito porque antes dele existiam as meninas do grupo, e aquilo que em outros filmes é puro truque de linguagem aqui sempre se mostra como a única linguagem possível.

E não só de planos-seqüência e granulações: há toda uma reordenação narrativa em curso aqui. Contra tudo o que esse estilo realidade-nua-e-crua poderia fazer supor, Antônia se apóia em num tom fabular quase clássico, não só quando se guia pela carta que Barbarah escreve na prisão e que conduz a primeira metade do filme como narração em off, mas quando as amizades perdidas e distantes são reatadas a partir de um pesadelo da pequena Emília que Preta tenta apaziguar recuperando a história do grupo Antônia em forma de conto de fadas, anunciando no final, numa brincadeira de duplo sentido com o sonho fatalista da menina, que seria ela a juntar os pedacinhos, de sua filha e do grupo também. A superfície de Antônia parece sugerir esse conto da escalada para o sucesso, a dureza de uma vida que é recompensada no final com a valorização do talento e da determinação, mas a fábula é toda construída a partir de pedaços dispersivos de drama, que deixam coisas a serem resolvidas, que abrem portar por onde não se entrará, ou mesmo trazendo seqüências cheias de planos mortos, que atravancam o fluxo narrativo ascendente e contínuo que se espera de um filme musical de apelo popular evidente. Em algum momento imaginou-se que tudo isso era preparação para a série de tevê que se produziria a partir do filme, mas vieram os cinco episódios exibidos na Globo e eles tampouco puderam completar estes espaços em branco. Seguimos sem uma idéia de totalidade, os dramas de cada personagem não pareceram mais profundos ou mais reveladores. Fez-se algo totalmente diverso, quase inesperado: na série assumiu-se a discussão política e social como questão narrativa, com uma coragem de se pensar e encenar fatos contemporâneos reais (no caso, os atentados de organizações criminosas à alvos policiais e civis em São Paulo) quando eles ainda estavam em pauta nos noticiários, sem que fosse preciso esperar qualquer distância histórica ou diluição popular, algo que a arte brasileira no geral, não só o cinema ou a televisão, raramente se dispõe a fazer. Encerrar as histórias abertas no longa-metragem, no entanto, não fazia parte da pauta.

Porque Tata Amaral sabe que não há nada ali a ser encerrado, que não há letra de rap ou close-up que consiga completar uma imagem destas quatro mulheres. Se existiu a fábula, é porque existia nelas mesmas a vontade de sonho, se existiu o filme musical, é porque cantar não era apenas a arma para vencer, era a chance de continuar existindo. E o que sobra em Antônia são esses pequenos pedaços de existência, trechos de vida que apontam para todos os lados e também para lado nenhum a não ser o seu próprio, que se ligam ao que veio antes e ao que se seguirá apenas porque há ali a recorrência de uma marca, aquela imagem do corpo que interessou o filme desde a imagem inicial, quatro cantoras e seus sonhos. Num encantamento que começa com Olhos Coloridos sendo cantada à capela numa estação de trem deserta e que só termina no sucesso final do show do grupo, o filme vai revelando uma jóia atrás da outra, seqüências produzidas quase como curta-metragens, que rapidamente dão conta de uma situação dada, introduzem as possibilidades de atuação e logo em seguida já se entregam à experiência proposta. Os primeiros planos da festa de casamento em que o grupo vai tocar deixam claro o constrangimento das meninas pela imposição de uma distância econômica e social entre o ambiente que estão animando e aquele de onde vieram (ali precisam cantar música romântica, o rap não cabe), e a reação imediata ao impulso do noivo em tomar o microfone e cantar uma música para sua mulher é a da confirmação de um espaço intransponível, de um estranhamento mútuo entre as partes. Pois o modo delicado como o grupo assume seu papel dentro desse novo contexto, acompanhando o noivo emocionado, e então levando sozinhas a música americana que ele escolhera é o que fará os planos finais da seqüência, tomadas da festa idênticas àquelas primeiras, apagarem o constrangimento e a animosidade e se entregarem ao puro gozo da oportunidade de se compartilhar alguma emoção com aquelas quatro cantoras.

Compartilhar: palavra-chave na percepção de Antônia. É através dessa atitude que Preta pode deixar-se filmar em plano-seqüência, depois de uma noite de puro desespero, com o ataque ao irmão da melhor amiga e a morte do namorado dele, visivelmente cansada e abatida, porque sabe que receberá de Tata Amaral a resposta mais íntegra possível: transformar esse momento tão negativo numa das cenas mais bonitas do cinema brasileiro recente, com Negra Li chegando à casa da mãe e encontrando-a reunida com o grupo de cantores evangélicos na sala, para então fechar a porta e, com a música que entoam de fundo, dar a volta por toda construção até encontrar seu pai nos fundos, sentado no chão descascando uma laranja, sem forças para responder o que acontecera na noite anterior, para que então finalmente entre na casa e busque no abraço da filha, que ainda dorme, alguma razão para seguir vivendo tudo aquilo. Antônia, o filme, sabe bem sua própria razão, e talvez por isso pareça assim tão aberto: é como se fosse impossível recusar qualquer oportunidade de estar ao lado de suas protagonistas novamente. Por isso chora com elas, por isso canta com elas, por isso parece tão disposto a acompanhar suas vidas com a mesma pulsação e entrega com que são vividas, e desse modo, por tudo o que consegue, assim como Preta, Mayah, Barbarah e Lena, Antônia também brilha.


Rodrigo de Oliveira

 

 





Antônia se encontra com suas protagonistas,
na primeira imagem do filme