Chora-se
muito em Antônia. É assim na descoberta de um
flerte com o marido da melhor amiga, é assim quando
o irmão é visto todo ensangüentado na rua, e depois
durante o trajeto e a espera por notícias no hospital;
na reconciliação depois de uma briga, na leitura da
carta recebida do presídio, numa festa de casamento
granfina ou na boca do palco de um bairro pobre. O choro
não é só a explosão de uma emoção imediata, que chega
de surpresa e por isso impede qualquer atitude mais
estruturada e consciente, primeiro passo de uma cadeia
de reações que tenha no fim um plano de ação mais racional.
Há aqui o rap, e o modo tão apaixonado com que estas
quatro cantoras o abraçam, revelando-se nas letras,
construindo nelas a imagem que querem de si, que vêem
em si, não só num exercício de imaginação simples, mas
de fato descobrindo suas humanidades e imediatamente
relatando-as em música, isso já vale como aquele outro
complemento que se espera de todas as situações comentadas
no início: o grito. Era com ele que, até aqui, a maior
parte dos filmes instalados nesse espaço social e geográfico
específico da periferia garantia sua inserção num espectro
de responsabilidade política e ideológica bastante difusa,
mas dado automaticamente como o correto. O retrato do
personagem da periferia precisava obrigatoriamente de
um quociente reativo, inconformado com sua própria condição,
e a alternativa para essa falta de voz, uma vez dada
a chance pelo cinema de se expressar para um público
que não o conhece, a resposta a toda dificuldade e falta
de oportunidade vivida neste ambiente original era o
grito. Mas Antônia, ao contrário, chora.
Essa vontade de discurso já está representada com bastante
propriedade nas músicas que o grupo compõe e canta.
Desde o primeiro show que fazem sozinhas, já sabemos
quais são as questões que interessam a essas mulheres:
a própria condição feminina é uma delas, sobretudo num
meio primordialmente masculino como o do hip-hop; um
chamado contínuo à luta, onde a palavra “guerreira”
assume diversas aplicações, porque tudo na vida delas
exige esse esforço de guerra para que se efetive, amores,
família, trabalho, sonho; a raça, negras e mestiças
para quem a cor da pele é também uma declaração de princípios,
espécie de grito natural que as instala numa posição
de histórica reação ao preconceito e a subjugação. Sendo
o musical que (também) é, Antônia assimila estas
palavras como suas próprias, porque está devotado à
aproximação íntima destas personagens, e não há modo
de contato mais pessoal com um cantor de rap do que
testemunhar o momento em que ele faz e vive sua própria
música. Quando desce do palco, é possível buscar os
espaços vazios de suas letras, as páginas em branco
que todavia não foram escritas, ou que ainda são recentes
e fortes demais para tanto, e assim Antônia vai
até onde a força divida lugar com a fragilidade, onde
a certeza seja tão firme quanto as dúvidas que a cercam,
ali onde Preta, Mayah, Barbarah e Lena choram, brigam,
titubeiam, erram.
Para tomar parte desses momentos de fraqueza secreta,
para assistir os contraplanos das apresentações do grupo,
no momento em que a figura da guerreira se debate com
a da vítima da violência, da adolescente grávida, da
mãe solteira, Antônia precisa tornar-se, ele
próprio, um veículo da intimidade, da expressão pessoal
pura, um pedaço de arte tão cheio de vida e tão identificado
àquilo que o produz a ponto de representar, imaterial
e intangível que é, toda a materialidade e fisicalidade
daquilo que, a partir dali, é ao mesmo tempo registro
e realidade de uma história. O rap é a música da alma,
como diz a letra da canção-tema do filme, e o cinema
aqui se encarrega de ser a imagem do corpo.
É assim que Antônia se coloca neste ambiente.
É preciso estar sempre ao lado dessas meninas, e são
seus corpos o princípio organizador de todos os planos,
sua presença é aquilo que se busca. Nisso a primeira
imagem do filme é reveladora: sai-se do grande plano
geral da Vila Brasilândia, cartão-postal possível da
periferia dourada pelo sol poente, e chega-se ao nível
do chão, com as quatro protagonistas caminhando na direção
da câmera, como se exigissem dela essa relação de proximidade.
O plano-seqüência parece ser a única chance de se chegar
à esses momentos de revelação das fraquezas e dúvidas,
como se a disposição em montar a cena, em dividi-la
em vários pedaços comunicantes, acabasse por reproduzir
apenas a construção de um sentimento, e não o sentimento
por si (é curioso perceber como as cenas com decupagem
interna, que tentem alguma dinâmica de campo/contracampo,
parecem sempre alardear esta construção, uma resposta
que pode chegar minutos, horas depois que se filmou
a pergunta, como quando Preta e sua mãe conversam na
cozinha de casa na manhã em que a moça vem buscar sua
filha). Do mesmo modo, só a câmera na mão poderia ser
capaz de manter este contato permanente com as protagonistas,
podendo escapar junto com elas de uma casa de shows
tumultuada, mas também conseguindo dividir o espaço
do cômodo pequeno de uma casa. Essa fórmula de crueza
e humanidade semi-documental, que se estabelece nos
últimos tempos com o uso do digital, chega a Antônia
como uma quase novidade, porque ali não se é conformativo,
não se atribui ao registro uma valorização pré-ordenada
que domestica e encerrara o objeto de atenção em suas
fronteiras, e não o contrário (nesse sentido não existem
filmes mais diferentes que Antônia e Contra
Todos, do mesmo Roberto Moreira que divide aqui
o roteiro com Tata Amaral). Antônia se constrói
desse jeito porque antes dele existiam as meninas do
grupo, e aquilo que em outros filmes é puro truque de
linguagem aqui sempre se mostra como a única linguagem
possível.
E não só de planos-seqüência e granulações: há toda
uma reordenação narrativa em curso aqui. Contra tudo
o que esse estilo realidade-nua-e-crua poderia fazer
supor, Antônia se apóia em num tom fabular quase
clássico, não só quando se guia pela carta que Barbarah
escreve na prisão e que conduz a primeira metade do
filme como narração em off, mas quando as amizades perdidas
e distantes são reatadas a partir de um pesadelo da
pequena Emília que Preta tenta apaziguar recuperando
a história do grupo Antônia em forma de conto de fadas,
anunciando no final, numa brincadeira de duplo sentido
com o sonho fatalista da menina, que seria ela a juntar
os pedacinhos, de sua filha e do grupo também. A superfície
de Antônia parece sugerir esse conto da escalada
para o sucesso, a dureza de uma vida que é recompensada
no final com a valorização do talento e da determinação,
mas a fábula é toda construída a partir de pedaços dispersivos
de drama, que deixam coisas a serem resolvidas, que
abrem portar por onde não se entrará, ou mesmo trazendo
seqüências cheias de planos mortos, que atravancam o
fluxo narrativo ascendente e contínuo que se espera
de um filme musical de apelo popular evidente. Em algum
momento imaginou-se que tudo isso era preparação para
a série de tevê que se produziria a partir do filme,
mas vieram os cinco episódios exibidos na Globo e eles
tampouco puderam completar estes espaços em branco.
Seguimos sem uma idéia de totalidade, os dramas de cada
personagem não pareceram mais profundos ou mais reveladores.
Fez-se algo totalmente diverso, quase inesperado: na
série assumiu-se a discussão política e social como
questão narrativa, com uma coragem de se pensar e encenar
fatos contemporâneos reais (no caso, os atentados de
organizações criminosas à alvos policiais e civis em
São Paulo) quando eles ainda estavam em pauta nos noticiários,
sem que fosse preciso esperar qualquer distância histórica
ou diluição popular, algo que a arte brasileira no geral,
não só o cinema ou a televisão, raramente se dispõe
a fazer. Encerrar as histórias abertas no longa-metragem,
no entanto, não fazia parte da pauta.
Porque Tata Amaral sabe que não há nada ali a ser encerrado,
que não há letra de rap ou close-up que consiga completar
uma imagem destas quatro mulheres. Se existiu a fábula,
é porque existia nelas mesmas a vontade de sonho, se
existiu o filme musical, é porque cantar não era apenas
a arma para vencer, era a chance de continuar existindo.
E o que sobra em Antônia são esses pequenos pedaços
de existência, trechos de vida que apontam para todos
os lados e também para lado nenhum a não ser o seu próprio,
que se ligam ao que veio antes e ao que se seguirá apenas
porque há ali a recorrência de uma marca, aquela imagem
do corpo que interessou o filme desde a imagem inicial,
quatro cantoras e seus sonhos. Num encantamento que
começa com Olhos Coloridos sendo cantada à capela
numa estação de trem deserta e que só termina no sucesso
final do show do grupo, o filme vai revelando uma jóia
atrás da outra, seqüências produzidas quase como curta-metragens,
que rapidamente dão conta de uma situação dada, introduzem
as possibilidades de atuação e logo em seguida já se
entregam à experiência proposta. Os primeiros planos
da festa de casamento em que o grupo vai tocar deixam
claro o constrangimento das meninas pela imposição de
uma distância econômica e social entre o ambiente que
estão animando e aquele de onde vieram (ali precisam
cantar música romântica, o rap não cabe), e a reação
imediata ao impulso do noivo em tomar o microfone e
cantar uma música para sua mulher é a da confirmação
de um espaço intransponível, de um estranhamento mútuo
entre as partes. Pois o modo delicado como o grupo assume
seu papel dentro desse novo contexto, acompanhando o
noivo emocionado, e então levando sozinhas a música
americana que ele escolhera é o que fará os planos finais
da seqüência, tomadas da festa idênticas àquelas primeiras,
apagarem o constrangimento e a animosidade e se entregarem
ao puro gozo da oportunidade de se compartilhar alguma
emoção com aquelas quatro cantoras.
Compartilhar: palavra-chave na percepção de Antônia.
É através dessa atitude que Preta pode deixar-se filmar
em plano-seqüência, depois de uma noite de puro desespero,
com o ataque ao irmão da melhor amiga e a morte do namorado
dele, visivelmente cansada e abatida, porque sabe que
receberá de Tata Amaral a resposta mais íntegra possível:
transformar esse momento tão negativo numa das cenas
mais bonitas do cinema brasileiro recente, com Negra
Li chegando à casa da mãe e encontrando-a reunida com
o grupo de cantores evangélicos na sala, para então
fechar a porta e, com a música que entoam de fundo,
dar a volta por toda construção até encontrar seu pai
nos fundos, sentado no chão descascando uma laranja,
sem forças para responder o que acontecera na noite
anterior, para que então finalmente entre na casa e
busque no abraço da filha, que ainda dorme, alguma razão
para seguir vivendo tudo aquilo. Antônia, o filme,
sabe bem sua própria razão, e talvez por isso pareça
assim tão aberto: é como se fosse impossível recusar
qualquer oportunidade de estar ao lado de suas protagonistas
novamente. Por isso chora com elas, por isso canta com
elas, por isso parece tão disposto a acompanhar suas
vidas com a mesma pulsação e entrega com que são vividas,
e desse modo, por tudo o que consegue, assim como Preta,
Mayah, Barbarah e Lena, Antônia também brilha.
Rodrigo de Oliveira
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