Em
Aqui e Acolá, do Grupo Dziga Vertov, Godard inicia
seu percurso de questionamento explícito das imagens,
de sua fabricação e circulação, a partir da constatação
da impertinência de uma narração sobre um outro que
funciona em prol de quem narra. Notadamente, um outro
distante e assombrado pela morte, pelo fim. Um outro
já inexistente e, ao limite, incompreensível, mesmo
para as imagens que o acolhiam em sua expressão “genuína”.
Como se qualquer enunciação sem a possibilidade, virtual
que fosse, de um contraplano, estivesse também fatalmente
assombrada pelo desaparecimento. Uma imagem chama outra
imagem: todo questionamento de uma expressão (um discurso,
uma narração) sobre o outro levaria, pois, a um questionamento
sobre si.
Ao desenvolver o projeto de A Conquista da Honra,
Clint Eastwood parece ter percorrido um caminho curiosamente
inverso a este: a morte e a iminência de desaparecimento
(a memória que se perde) conduz a um questionamento
de si e das imagens que se produz, que por sua vez traz
a necessidade do contraplano. É desta forma que A
Conquista da Honra parte de um sentimento de perda
pela morte que se desdobra numa narração de “investigação”
sobre uma fotografia, em seus múltiplos agenciamentos
com a realidade (fabricação e circulação), e termina
por chamar o contraplano direto desta morte (Cartas
de Iwo Jima).
Se todo este processo de responder a um questionamento
sobre si com um olhar generoso sobre o outro nos parece
absolutamente radical dentro de um cinema que contenta-se
em produzir imagens iguais como se fossem diferentes
e que se mascara como lugar de enunciação (toda a dissertação
de Godard em Nossa Música sobre o plano e o contraplano
no cinema clássico americano e suas implicações políticas),
não é apenas pelo seu impacto político como gesto, em
plena era Bush, mas principalmente pela constituição
própria a cada um destes olhares. Sem abandonar o princípio
narrativo central do cinema americano, Eastwood elabora
dois filmes que se complementam e que dialogam entre
si, mas que não respondem a rigor um ao outro.
São narrativas cinematográficas diversas para realidades
diversas, que, no entanto, testemunham a todo instante,
cada qual à sua maneira, sua origem, seu ponto de partida.
A Conquista da Honra é um grande mergulho em
nado livre pela América, composto de emoções que vão
ligando-se umas às outras por diversos caminhos. Em
sua imponência discretamente “independente”, o filme
constrói um labirinto discursivo de grande impacto sensível.
Se em Sobre Meninos e Lobos, por exemplo, o discurso
corria sub-repticiamente entre os interstícios de uma
sociedade construída em tramas (a investigação policial
como âmago de uma nação), em A Conquista da Honra
ele é escancarado como tema e estratégia (ou retórica)
cinematográfica. Eastwood abraça a grandiose do gênero
para questionar a própria construção de um mundo em
dimensões ampliadas (de heroísmo, de poder, de domínio).
Partindo de uma imagem concreta (a famosa fotografia
no Monte Suribachi) desdobrada em duas imagens abstratas
e complementares (dois conceitos que erigem a nação):
a bandeira americana e o hasteamento da bandeira, A
Conquista da Honra discorre sobre o mito (a construção
dos efeitos públicos de uma imagem, cuja reverberação
profunda é a longo prazo) e o não-mito (a realidade
pessoal de quem origina as imagens como um momento que
desconhece seu depois). Os personagens estão imersos
em acontecimentos que os ultrapassam (sobre os quais
eles não detêm domínio algum) e os afogam em sensações
(medo, paranóia, ternura, saudade). Trata-se de uma
história que não pode ser contada linearmente, que está
perdida num turbilhão de diferentes facetas (de cacos
de memória) que ignora a unicidade – seja dos discursos,
seja das imagens –, e, desta forma, expõe suas fraturas.
O EUA não é uno. Por trás de sua aparência de solidez
espalham-se diversas rachaduras e fantasmas. Os heróis
não são heróis, o “americano autêntico” é um “fracasso”,
a foto foi tirada numa reprodução do acontecimento original,
os homens na foto não são os responsáveis pelo ato,
os nomes glorificados não são os daqueles presentes
na imagem, os soldados nem sempre diferenciam os inimigos
dos companheiros na hora de atirar. E a vitória não
se dá (a ver) no campo de batalha. Mais do que o aspecto
“denunciatório” da exposição desta “crise”, Eastwood
parece querer apontar que as coisas não estão exatamente
onde achamos que elas estão, que é preciso olhar de
mais perto e olhar além.
Este “olhar além” é o que transforma o filme numa sucessão
de imagens em tempo e espaços diferentes, cuja organização
caótica se dá por associações sensíveis, promovidas
pelo “olhar de mais perto” (olhar com os personagens),
nos conduzindo a reflexões impactantes. Os estados emotivos
de Bradley, enfermeiro da tropa – ocupação que já o
coloca em posto ligeiramente distanciado, de observação
–, que comprimem as distâncias entre o solo americano
e o campo de batalha, transformam o mundo numa coisa
só, assombrada por um único grande medo: o da morte.
Demônio primeiro de toda guerra concreta, ela solapa
de ambos os lados todo o resto que se ergue acima dela,
todos os castelos de cartas (marcadas) que fazem a História.
As enunciações sobre a construção controversa do “herói
americano” apontam então para a sua gênese (sócio-histórica
e cinematográfica): a política de Estado de sustento
através da iconografia e a edificação de valores culturais
por meio de uma “evolução” dramática. Se Bradley é um
não-herói pelo seu desmonte da ideologia cultural dominante,
ele é percebido como herói pelos códigos dramáticos
consagrados pela história do cinema. E Clint Eastwood
confronta, a todo instante, esta história em sua obra,
seja passeando pelos gêneros, seja retrabalhando “narrativas
americanas” (elaboradas, elas mesmas, em torno de iconografias).
É desta forma que um “filme de guerra” transforma-se
numa quase-denúncia ideológica, que a confusão narrativa
vai cedendo lugar a uma montagem paralela quase didática
e que o homem comum ganha aos poucos, por vias tortas,
o mérito de um verdadeiro herói.
E é por isso que não há “honra” em Flags Of Our Fathers,
nem muito menos “conquista”. Há, sim, uma tentativa
de compreensão das “bandeiras” erguidas pelas gerações
que deram origem a homens da América de hoje. Reescrever
a História, para Eastwood, é menos fazer justiça a grandes
nomes ou re-narrar grandes acontecimentos e grandes
glórias, do que resgatar memórias afetivas que exponham
as ambigüidades da formação de uma América mais múltipla
e efervescente do que muitos gostariam de crer. E, para
isto, é fundamental deixar claras as bases de onde se
parte, reconhecer e assumir sua origem, para só então
problematizá-la, questioná-la – e ser capaz, por fim,
de lançar sobre o outro um olhar digno, sincero e honesto.
Tatiana Monassa
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