Em
Uma Visita ao Louvre, Straub e Huillet – os raios
ultravioleta do cinema moderno, segundo Pascal Bonitzer
(Godard seria o infravermelho) – continuam tencionando
o cinema em suas camadas geológicas mais profundas,
mais antigas. Através do que Bonitzer designou como
“efeito de sobrecultura”, eles refazem a “correnteza”
do cinema retomando o que este havia recalcado (teatro,
ópera, pintura...). Nos últimos anos, a matriz principal
vem sendo a riquíssima obra literária de Elio Vittorini
– mas a verdade é que um filme como Gente da Sicília
deve a Vittorini tanto quanto deve a Cézanne. Uma
Visita ao Louvre é, portanto, menos um intervalo
do que a parte integrante de um processo ininterrupto.
Quase todo o filme consiste em quadros de grandes pintores,
pertencentes ao acervo do Louvre, filmados em tomadas
fixas, imóveis. Há também um plano descritivo da fachada
do museu no início, um plano de uma árvore com suas
folhas balançando ao vento no meio e o plano final,
uma lenta e longa panorâmica em meio ao verde de uma
floresta. E há as telas pretas, em pequeno número, porém
profundamente perturbadoras. Percorrendo todas as imagens,
uma voz off feminina, serena e perplexa ao mesmo
tempo, alternando a calmaria da contemplação solicitada
pelos quadros à tempestade da visão que percebe o traço,
o pensamento, a vida do pintor sendo posta em obra.
Essa voz feminina “representa” Cézanne.
Sabemos que Straub e Huillet dotam o cinema de um efeito
Moebius: as pistas de imagem e de som se dobram uma
sobre a outra, sem aquisição de recursos retóricos,
e sem achatamento mútuo. Uma Visita ao Louvre leva
esse efeito ao limite, estruturando-se não em cenas
ou em temas, mas em blocos de imagem-som. Uma tela pintada
à nossa frente, enquadrada de forma extremamente simples,
e no som apenas a “trilha de comentários” sobre o que
estamos vendo: assim é o filme. E não se trata de fechar
o campo visual do cinema, de submetê-lo ou de confrontá-lo
ao espaço da pintura. Tampouco de fetichizar essas telas
dentro da tela, esses não-planos dos quais a voz em
off nos convence da sedução. O que acontece é
antes uma abertura do espaço cinematográfico ao infinito:
liberto da necessidade de mostrar o movimento, é o próprio
quadro (cinematográfico, mas também pictórico) que assume
mobilidade, uma estranha potência de auto-decomposição.
Os quadros se esmigalham na nossa frente, enquanto o
cinema, a imagem-som ligada em bloco, restitui a unidade
das pinturas. A voz off analisa, investiga os
quadros, mas não assistimos a uma operação de desconstrução.
Os planos do filme instauram uma atividade no quadro
pictórico, uma atividade que se traduz na obra se refazendo
diante de nós, o próprio processo, a própria pincelada
se re-atualizando (o oposto absoluto da desconstrução).
Nos melhores momentos de Uma Visita ao Louvre,
somos tomados pelo êxtase e pelo suspense da narração,
que conduz uma busca incessante ao visível e ao invisível
das obras filmadas. Uma tentativa de sentir as cores
e também de entender o contexto (histórico, religioso,
artístico, econômico) em que este ou aquele signo se
materializou – em última análise, uma busca pelo fora-de-campo
das obras.
A secura e a frontalidade reinam no filme como princípio
de enquadramento e composição. Nada de pontos de vista
oblíquos: não existe necessidade de introduzir
o sentimento de movimento e a noção de tempo; estes
são dados concretos. Fugindo da expressividade fácil,
Straub e Huillet põem o olho do espectador em trabalho,
em ação: um olho crítico que precisa “decupar” a imagem
por meio de seu investimento intelectual. Cada plano
do filme é um sobrequadro (o plano do pintor e o plano
do cineasta), é um encontro, ou o relato de um encontro.
O filme acaba sendo uma forma de estetizar a duração,
de desfazer a medida do tempo para torná-lo matéria
comparável à tela e à tinta do pintor (se isso é tarefa
do cinema como um todo? de uma só vez: não), e de nos
convencer de que aqueles quadros pendurados nas paredes
do Louvre estão vivos. Nem assombrações nem fantasmas
nem alucinações: vivos.
Luiz Carlos Oliveira Jr.
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