PARA NOVOS OLHOS, PARA NOVOS OUVIDOS
Juventude em Marcha e Bamako

A carta que te levaram chegou bem? Não tive resposta tua. Fico à espera”.
(Trecho da carta de Ventura, em Juventude em Marcha, de Pedro Costa)

Observem a foto ao lado. Trata-se de uma sul-africana vítima de tuberculose. Foi tirada em novembro de 2005 pelo fotógrafo Gianlugi Guercia, veiculada por uma das principais agências de notícias do mundo, a Agence France-Presse (AFP), e divulgada no Brasil através do jornal O Globo, na edição do dia 10 de setembro de 2006, página 40 do caderno de economia.

Ao jornal carioca, a fotografia servia como uma entre várias ilustrações para uma série de reportagens sobre as relações econômicas, políticas e culturais entre três países caracterizados pelos redatores como democráticos e em desenvolvimento, ou seja, a Índia, o Brasil e a África do Sul, na chamada “cooperação Sul-Sul”. A união de interesses entre esses três países, reunidos sob a sigla IBAS, tinha como objetivo a conquista de maior espaço de negociação junto à Organização das Nações Unidas (ONU), à Organização Mundial do Comércio (OMC) e ao Fundo Monetário Internacional (FMI). Os dados estatísticos e as informações publicadas pelo jornal revelavam números sombrios em relação à taxa de desemprego, analfabetismo, dívidas interna e externa, expectativa de vida, miséria, baixo nível educacional, pessoas infectadas pelo vírus da Aids, conflitos culturais, suicídio em massa de camponeses, discriminação racial e baixíssimos salários.

Voltemos à foto da sul-africana tuberculosa. No conjunto das matérias, e comparada com as outras fotografias que as ilustram, a foto de Gianlugi Guercia chama a atenção. Inicialmente pelo tom francamente pessimista de sua composição. A mulher surge emparedada, oprimida pelo enquadramento, enclausurada entre a parede do lugar em que a foto foi feita e a própria câmera do fotógrafo. É como se, para ela, não houvesse a possibilidade da locomoção. Tudo nos leva a experimentar a sensação de uma imobilidade fatal. Essa imobilidade sugerida é, em parte, o discurso político do próprio fotógrafo, que assim busca retratar a tragédia de todo um continente.

No enquadramento, há muito mais espaço para a rústica parede do que para a própria mulher, que ocupa apenas a parte inferior do quadro, envolvida pelas sombras de um ambiente bem pouco iluminado. É verdade que na parede ao fundo há, fora de foco, um pano vermelho ou estampado, que se estende em direção ao solo. No entanto, esse pano só acentua a posição humilhante da sul-africana, pois nos faz adivinhar que ela provavelmente está sentada no chão. A cor vermelha, por outro lado, tem a ressonância sangüínea necessária à denúncia.

Quanto à própria mulher, nela tudo é silêncio, mudo sofrimento. Um mundo interior não-acessível, os olhos amarelecidos, abatidos, fitando o nada que está fora do quadro. Não parece se dar conta ou se importar com o fato de que está sendo objeto de uma fotografia para imediato consumo mundial. A sul-africana parece ignorar ou desprezar o fotógrafo (e, conseqüentemente, nós espectadores). Parece olhar para o que está fora do quadro, mas na verdade olha para dentro de si mesma. O fotógrafo nos obriga a refletir sobre a relação entre o que está fora e o que está dentro da imagem, pois é a partir dessa relação, novamente, que o seu discurso político se constrói.

Disse um pouco acima que o tom pessimista da fotografia era o que de inicío nos chamava a atenção. Mas nela há um outro aspecto igualmente importante: o seu baixo teor “informativo” (no sentido de se apresentar como mera ilustração jornalística). Efetivamente o que vemos é o rosto de uma mulher doente em um local que nos parece ser de absoluta pobreza. O fotógrafo age menos como um repórter interessado em informar do que como um artista motivado a criar: pela disposição da câmera, pela concisão do cenário e pela iluminação precisa, constrói um olhar - e esse olhar se impõe. Trata-se de uma foto para consumo mundial, sem dúvida, mas há ao menos a nítida tentativa, por parte do fotógrafo, de estabelecer um diálogo problemático entre ele e a mulher (um diálogo, diga-se de passagem, felizmente bastante diverso daquele apresentado pelos demagógicos espetáculos fotográficos de um Sebastião Salgado).

Juventude em Marcha, do português Pedro Costa, e Bamako, do maliano Abderrahmane Sissako, são dois filmes que trabalham o registro e a composição das imagens numa chave muito semelhante à que encontramos na fotografia de Gianlugi Guercia.

No caso de Juventude em Marcha (foto 2), é notável a semelhança entre os enquadramentos da foto e do filme, e o registro íntimo de um sofrimento ao mesmo tempo pessoal e continental. O cabo-verdiano Ventura é igualmente enquadrado de forma a ter seu corpo comprimido (ou oprimido) entre o fundo do quadro e a objetiva da câmera (sobre os enquadramentos de Juventude em Marcha, cf. o belo texto de Ruy Gardnier), o olhar mirando o passado interior. Em diversas seqüências, Pedro Costa acentua as sombras em espaços fechados e pouco iluminados, como nos planos em que Ventura conversa com uma de suas filhas, num casebre no bairro de Fontainhas.

Em relação a Bamako, as semelhanças entre o filme e a foto também se dão na mescla entre a denúncia de um drama interior e o grito surdo diante da tragédia dos povos subdesenvolvidos: o olhar vazio de Chaka, o marido desempregado de Mélé que passa os dias sentado num banco, recostado na parede de sua casa, ou o rapaz soro-positivo deitado no quarto fechado de sua casa, são dois exemplos. Há também nos enquadramentos de Bamako, sobretudo nas cenas do processo contra o Banco Mundial, numa corte improvisada no quintal da casa de Chaka e Mélé, muito de um certo estilo fotojornalístico, ainda que dentro de um registro diverso do que encontramos na foto da AFP em questão.

Guardadas as especificidades de cada meio, tanto na foto de Guercia quanto nos filmes de Costa e Sissako, percebe-se um mesmo fluxo, um mesmo olhar, uma certa sensibilidade contemporânea que nasce de um misterioso acordo entre aquele que faz as imagens e aquele que é fotografado; entre aquilo que está dito nas imagens e aquilo que se esconde dentro e fora das imagens; entre o poder transformador de uma realidade recriada e a aparente impossibilidade de tornar essa recriação um ato de transformação concreta da realidade.

Mas por que iniciar um texto sobre Juventude em Marcha e Bamako falando de uma foto publicada em um jornal? A razão para tal escolha se encontra no fato de que esses dois filmes, desconhecidos de grande parte do público brasileiro, espécies de acontecimentos inusitados em termos cinematográficos, na verdade trabalham com referências de imagem diariamente absorvidas por nós, isto é, referências de imagem que já fazem parte do nosso cotidiano. A forma como Pedro Costa e Abderrahmane Sissako filmam, e mesmo os temas com os quais eles trabalham, são elementos que também podem ser encontrados nas páginas de um jornal, mas disso não nos damos conta. E quando Juventude em Marcha e Bamako surgem numa tela de cinema, parecem apontar para a existência de um outro cinema, de uma outra linguagem, de uma outra realidade recriada. É o cinema que abdicou de falar nesses termos ou nós que não sabemos mais ver/ouvir/reconhecer tais imagens?

Paradoxalmente, os filmes (e a foto) exprimem a urgência e a fragilidade de um certo discurso político de resistência, qual seja, aquele que nasce da negação do espetáculo e que abraça o desafio da criação de uma linguagem poética, necessariamente inovadora. Juventude em Marcha e Bamako (tal como a foto da AFP) são testemunhos das dificuldades e da crise dessa postura política nas artes.

A crise a que me refiro não deixa de ter pontos de contato com a velha questão da banalização das imagens “políticas” que tanto podem ser encontradas num jornal impresso quanto na TV ou no cinema. Juventude em Marcha e Bamako apostam na recusa deste tipo de conformismo, aquele que aceita como politicamente válida qualquer imagem socialmente tocante. Mas quando as imagens filmadas por Pedro Costa e por Abderrahmane Sissako batem na tela, sentimos em escala muito amplificada algo próximo daquilo que já experimentamos diante da foto da sul-africana tuberculosa, exposta numa simples edição domingueira de jornal. E o que verificamos nessas imagens? Uma denúncia? Um lamento? Talvez, mas sobretudo a presença de um olhar angustiado que, para falar de uma determinada realidade, precisa recompor essa mesma realidade (personagem, cenário, enquadramento). Essa angústia é a resposta mais contundente, dada pelos filmes e por seus autores, ao momento crítico em que estão presos e do qual são frutos.

É portanto esse olhar criador, é essa busca por uma forma inquieta e surpreendente de compor as imagens, é esse corpo-a-corpo com um tipo de cinema político bastante incomum nos dias atuais - o cinema político que nasce da busca não de um “tema relevante”, mas sim de uma nova poética - que tornam Juventude em Marcha e Bamako dois dos filmes mais importantes do cinema contemporâneo. E aqui cabe assinalar a diferença fundamental entre os trabalhos de Costa e Sissako e a foto de Guercia. A imagem da sul-africana veiculada pela AFP, independentemente de sua qualidade estética e de sua postura ética, faz parte da rotina do fotojornalismo mundial. O oposto ocorre em relação a Juventude em Marcha e Bamako: ambos são exceções no cenário cinematográfico atual.

E são como exceções que esses dois trabalhos surgem no Brasil, não só em relação ao que se exibe normalmente nos circuitos comerciais, como também nos chamados circuitos “alternativos”, se é que eles existem. São filmes raros em todos os sentidos: pela forma como realizam a mise-en-scène, pela honestidade com a qual fazem o entrecruzamento entre as relações humanas e o discurso político, pelas inusitadas composições dos quadros, pela indisciplinada indistinção entre documentário e ficção, sobretudo pelo diálogo ativo que buscam estabelecer com o espectador, um diálogo muitas vezes encarado como árduo e sem concessões.

Juventude em Marcha e Bamako são raros por serem exemplos de um cinema radical. São filmes de resistência e, nesse sentido, exprimem a tensão entre o desejo de criar novas formas que atendam a uma reconfiguração da experiência fílmica nos dias atuais e os laços que os mantêm presos a uma certa tradição do cinema político praticado nos anos 1960 e 70, sobretudo nas cinematografias periféricas e européias. Assim como seus personagens, Juventude em Marcha e Bamako representam um cinema igualmente enclausurado entre o passado e o futuro, com mínimas possibilidades de locomoção. Por isso mesmo, o investimento na imagem estática, no plano fixo de longa duração, nos prolongados silêncios e na verborragia que, no fundo, se complementam, nos cenários fechados, na idéia de um cerco a envolver os personagens, cerco físico, geográfico, político, econômico - em uma palavra, histórico.

É curioso e um pouco irônico pensarmos que, de certa forma, a tradição a que pertencem os filmes em questão de Pedro Costa e Abderrahmane Sissako, também foi cara ao cinema brasileiro, já que nos anos 1960 e 70 igualmente experimentamos a realização de filmes radicais em termos políticos e estéticos, não só aqueles ligados ao cinema novo (Terra em Transe, de Glauber Rocha, O Bravo Guerreiro, de Gustavo Dahl, Os Inconfidentes, de Joaquim Pedro de Andrade, São Bernardo, de Leon Hirzsman) como os que se filiam ao chamado cinema experimental, ou marginal, ou de invenção (a série Belair, de Júlio Bressane e Rogério Sganzerla, Orgia ou o Homem Que Deu Cria, de João Silvério Trevisan, Zézero, de Ozualdo Candeias, Crônica de um Industrial, de Luiz Rosemberg Filho). Esses filmes brasileiros - inteiramente diversos dos filmes de Costa e Sissako, mas igualmente políticos na linguagem e na atitude de enfrentamento - também foram, em suas épocas, exceções, registros únicos contrários ao cinema convencional.

Mas é realmente possível falarmos em referências compartilhadas pelo cinema brasileiro e por Juventude em Marcha e Bamako? Em termos gerais e indiretos, sim, muito embora Costa e Sissako desempenhem um trabalho de recriação e de absorção de influências muito particular. Ainda assim, o filme de Abderrahmane Sissako, por exemplo, faz um deliberado uso do teatro como espaço dos discursos políticos, e isso nos é muito familiar. Digo teatro no sentido amplo, que engloba a encenação (melodramática) de uma corte judicial. A frontalidade, a absorção dramática de uma platéia como elemento de composição da mise-en-scène, a eloqüência verbal versus a sensibilidade dialeto-musical, a caricatura como arma de crítica política (o advogado pró-Banco Mundial sendo chifrado por um bode), o uso paródico-didático do filme-dentro-do-filme (o faroeste Morte em Timbuktu). Tudo isso nos remete a Glauber Rocha (mas também ao Grupo Dziga Vertov), a uma longa tradição do melodrama de tribunal, à chanchada, ao teatro de rua francamente utilizado tanto pelo cinema novo quanto pelo cinema de invenção.

Já em Juventude em Marcha, Pedro Costa realiza uma espécie de miraculosa junção entre o expressionismo e o neo-realismo: uma espécie de ideal zavattiniano filmado por Murnau ou por Robert Wiene (algo que, de certa forma, também aproxima Pedro Costa de Jean-Marie Straub/Danielle Huillet). A imagem de Ventura - o corpo entre o curvo e o erecto - entrando no casebre onde mora uma de suas filhas, nos remete a uma confluência entre Umberto D. e Nosferatu/Caligari: Pedro Costa realiza com luz natural as sombras expressionistas que nos anos 20 eram pintadas nos cenários (no caso de Juventude em Marcha, o desenho da sombra do telhado sobre a fachada branca da casa). O fantasmagórico e o fantástico convivem com o registro cru da realidade filmada sem interrupções, algo possibilitado tanto pelo investimento no fluxo temporal das ações quanto pela já mencionada total ausência de fronteiras entre documentário e ficção. Essa radical absorção da tradição neo-realista me parece absolutamente inovadora - e sabemos todos do peso do neo-realismo na tradição de um cinema político no Brasil.

O aparecimento de filmes como Juventude em Marcha e Bamako e suas passagens meteóricas pelas mostras de São Paulo e Rio, entre outros inúmeros efeitos, podem nos fazer refletir justamente sobre a ausência de um cinema político radical no Brasil de hoje. Ou seja, Juventude em Marcha e Bamako, por serem filmes nascidos da grande crise de um modelo de cinema já experimentado nos anos 1960 e 70, surpreendem por se apresentarem como dois filmes excepcionais, dos pontos de vista formal e de construção narrativa, justamente por serem filmes opostos ao mainstream e por reintroduzirem, como matéria crítica, isto é, em crise, o próprio discurso político/estético que os construiu. Sua força transformadora é justamente a sua vulnerabilidade assumida. Sem dúvida, Pedro Costa e Abderrahmane Sissako agarram corajosamente os riscos de um cinema que não tem espaço na cinematografia mundial. No Brasil, é um cinema atualmente impensável: não cabe nem no mercado de exibição nem nas televisões e nas videolocadoras, bem como não oferece modelos estéticos aceitos pelos mecanismos atuais de produção.

Cabe aqui um rápido parêntesis: com tudo o que foi dito acima, meu intuito não é integrar a ladainha nostálgica do tipo “como era político o nosso cinema e como hoje não mais o é”. Tampouco meu objetivo é apontar este ou aquele filme como virtuais “modelos” a serem seguidos. Meu interesse é unicamente pensar sobre o fato de que, muito embora próximos a nós em diversos sentidos (até porque são filmes realizados com poucos recursos, trabalhando com personagens e temas que nos tocam), Juventude em Marcha e Bamako causam um estranhamento no mínimo revelador da distância (estética? ideológica?) que nos separa desses filmes e de seus autores.

Assim, o que nos trazem Juventude em Marcha e Bamako? De que maneira é possível pensá-los no contexto cinematográfico brasileiro atual? Para além da surpresa (e do prazer que ela eventualmente pode causar) no espectador, o que se desenha na relação entre esses dois filmes e o cinema brasileiro contemporâneo (incluindo aí mercado de exibição e mecanismos de produção) é, no fundo, um quase intransponível abismo.

Ou seja, ver filmes como Juventude em Marcha e Bamako significa - mais uma vez - entrar em contato com um “outro cinema”. Claro, esse “outro cinema”, em tudo distante do que se produz aqui atualmente, não é o dominante. Não se produz no Brasil filme político como O Plano Perfeito (Inside Man, de Spike Lee), mas tampouco esse filme se coloca num contexto de crise. Mal ou bem, dialoga-se aqui com Spike Lee com maior proximidade ou naturalidade do que com os próprios cineastas brasileiros.

Mas com filmes como Juventude em Marcha e Bamako estamos diante de uma situação bem diversa. Esse “outro cinema” de Pedro Costa e Abderrahmane Sissako é realmente um “outro”, muito distante. Não se trata apenas de uma questão mercadológica (títulos não exibidos no Brasil). Trata-se sobretudo do fato de que esses filmes retomam formas e posturas que tão somente não são mais aceitas pelo meio cinematográfico brasileiro. A bem da verdade, nunca foram. Mas num determinado período - os anos 1960/70 - tais formas, tais posturas aliavam-se ao discurso dominante da intelectualidade de esquerda, hegemônico no campo cultural. Pois esses antigos intelectuais e seus jovens herdeiros, hoje, nunca estiveram tão distantes de filmes como Juventude em Marcha e Bamako. A conseqüência é o silêncio de parte a parte: desconhecidos estão os filmes, desconhecidos devem ficar. Isso significa, também, que a simples exibição desses filmes no Brasil constitui, já, numa forma política de experiência (e de resistência) cinematográfica. Em termos de um mercado restrito de salas de cinema, por enquanto (até quando?) tudo se restringe a mostras e festivais, isso quando temos a sorte de tais filmes serem selecionados.

Talvez por essa razão, Juventude em Marcha e Bamako tematizem de forma tão explícita a questão da perda do poder da palavra, conseqüentemente, do desaparecimento de determinados discursos.

A carta de amor que Ventura repete, ditando-a a seu amigo Lento, tem o mesmo valor simbólico de uma mensagem numa garrafa atirada ao oceano. É necessário que as mesmas palavras sejam ditas e repetidas, uma vez que elas nos escapam e estão constantemente mudando de sentido. Só nos resta retomar o discurso para torná-lo mais resistente. O que ocorre, porém, é o contrário: esfumaçam-se os significados, perdem-se destinos e destinatários.

Em Bamako o mesmo ocorre na cena-clímax do velho camponês que, logo no princípio do filme, tendo sua palavra terminantemente negada, retorna ao fim e, contrariando todas as formalidades da “corte”, faz um longo desabafo em forma de canto, no seu próprio dialeto, incompreensível para nós espectadores (a cópia exibida aqui, com legendas em inglês, não traduz esse trecho do filme). Embora não possamos compreender uma só palavra do que o velho diz/canta, é ele quem nos oferece o momento mais arrebatador de todo o filme. Mas para onde vão suas palavras em dialeto desconhecido? Perdem-se, evaporam-se, deixam apenas em quem as ouve o seu eco musical. A palavra final será sempre daqueles que detêm o poder (não importa se se trata do advogado branco que defende a causa dos malianos ou do advogado branco que defende o FMI).

A essa perda irreparável dos discursos poéticos/políticos (tanto a carta de Ventura quanto o canto do velho camponês são poemas e são panfletos), Pedro Costa e Abderrahmane Sissako respondem com o silêncio – sempre angustiado, sempre grávido – de seus desfechos: Ventura deitado na cama do quarto de Vanda, ao lado de uma criança e de uma TV (em Juventude em Marcha) e as imagens silenciosas captadas em vídeo do corpo de Chaka, o marido desempregado de Mélé que se suicida (em Bamako).

Costa e Sissako não só assumem, portanto, os riscos que envolvem a realização de um cinema político radical como sabiamente percebem o sentido atual desse cinema: o de ser uma carta endereçada a quem se disponha a lê-la, mesmo que ninguém a queira.


Luís Alberto Rocha Melo

 

 








1. A foto de Gianlugi Guercia
publicada em O Globo


2. Ventura igualmente oprimido entre o fundo do quadro
e a objetiva da câmera (Juventude em Marcha)


3. A angústia se reconstruindo no próprio
enquadramento de Juventude em Marcha.


4. Cena de julgamento em Bamako