O
que costumeiramente ouvimos falar do cinema de Antonioni?
Incomunicabilidade? Sentido de não-pertencimento
a um espaço? Tempos mortos? Munidos desse esboço
de cartilha, tornado hoje um clichê abissal, conseguiremos
talvez passear aos trancos e barrancos pelos filmes
dos anos 60, mas não entenderemos lhufas sobre
o que motivou o cineasta a fazer um documentário
sobre a China, o que o fez retomar Cocteau em vídeo,
ou, de forma mais geral, todo esse cinema de Antonioni
que vem sensual e ligeiramente frívolo, sem a
pomposa capa da "angústia do ser" de
filmes como A Noite. Aqueles que forem atrás
de Lo sguardo di Michelangelo buscando o Antonioni
que comunica a incomunicabilidade vão se frustrar.
O tema do filme é o contato, a comunicação
dentro da diferença absoluta de registro (de
tempo e relação com a eternidade, de épocas
distintas, etc.), enfim um encontro: dois Michelangelos,
um cineasta, outro escultor-pintor. Um através
do corpo, o outro através de sua criação.
Um, envelhecido e fragilizado pelo tempo, e o outro
restaurado, eternizado como momento de ouro de um determinado
momento da civilização, patrimônio
humano. Em torno desse confronto e do reconhecimento
da enormidade dessa diferença se constrói
esse pequeno filme de Michelangelo Antonioni.
Lo sguardo di Michelangelo monta-se a partir
de uma recorrência e um desejo primeiro de Antonioni,
aquilo que, mais que qualquer outra coisa, chama atenção
para seu cinema: a construção arquitetônica
do espaço, a meticulosa observação
de como um enquadramento, uma distância em relação
ao objeto filmado pode configurar ou reconfigurar um
espaço real, e como essa relação
entre espaço e luminosidade pode criar efeitos
de monumentalidade que ora faz com que os personagens
sintam-se deslocado diante de tamanha grandeza (Deserto
Vermelho, A Aventura), ora faz com que eles
gozem com a intensa sensualidade que brota dessa magnitude
(Eros, o fim de Zabriskie Point). Lo sguardo
do Michelangelo, embora seja posto de pé por
essa relação de agigantamento, por essa
idéia de "maior que o homem", não
guarda nenhum desses efeitos. Sua idéia é
simples: Antonioni entra numa catedral, dirige-se à
estátua de Moisés feita por Michelangelo
e passa a contemplá-la em seus mínimos
detalhes. Dependendo do momento, a postura do observador
diante da obra parece diferente: um olhar indagador
que tenta se apoderar do mistério da obra, um
olhar que reconhece a perfeição da obra,
um olhar que julga sua própria posição
em relação àquilo que está
sendo visto. Aos poucos, a relação de
grandeza entre o homem e o espaço que o circunda
(os planos iniciais do filme) transforma-se na grandeza
de tudo que separa uma obra imortal de um homem de carne
e osso.
Olhando um Michelangelo, um outro Michelangelo evidencia
e põe a nu um pouco de seu próprio cinema.
Na desnecessidade de personagens, intrigas, orçamentos
que possibilita um filme totalmente despretensioso do
ponto de vista industrial, cabe ao cineasta salientar
as formas da estátua, chamar a atenção
para certos aspectos da composição, para
o olhar severo, para o extremo delineamento, e, de maneira
mais especulativa, para o objeto que perdura no tempo
enquanto o homem está fadado a desaparecer (atenção
ao corte da mão frágil de um velho Antonioni
para a mão impávida do Moisés de
mármore). Antonioni filma o Moisés de
Michelangelo da mesma forma que anteriormente filmara
seus personagens em espaços monumentalmente opressores
e belos, e a idade do realizador (92 quando fez o filme)
e o depuramento fazem o resto: sob qualquer aspecto,
um grande elogio ao cinema como arte visual de organizar
um espaço tridimensional com uma câmera.
Lo sguardo di Michelangelo é, além
disso e antes de tudo, um enorme elogio do tempo próprio
de se fruir do efeito artístico. O caminhar inicial
de Antonioni em direção à obra
dentro da catedral (um caminhar, deve-se dizer, inteiramente
feito por computador, uma vez que Antonioni está
preso a uma cadeira de rodas há mais de uma década),
ainda que magnífico pelo enquadramento de cima
e pelo efeito da luz que entra na igreja, tem apenas
o efeito de um antepasto preparatório para o
prato principal, a relação do olho de
um homem (e de seus dedos: olhos que tocam, dedos que
vêem) com toda uma gama de detalhes e construções
delicadas que têm seu tempo natural para vir à
percepção do observador e nele imprimir
toda sua força. O efeito estético é
um desses momentos onde se está completamente
só, onde o tempo de percepção que
se cria é totalmente diferente de nossas vivências
cotidianas, e faz parte de seu gosto próprio
o ato de justamente nos propor novas orientações
sensórias. Tanto é que, ao final do filme,
o som ambiente começa pela primeira vez a ser
ouvido, e temos claramente a impressão de que
voltamos "ao mundo normal", populado, com
seu prosaico e rotineiro andamento de tempo. Tempo morto?
De forma alguma. O tempo de Lo sguardo di Michelangelo,
assim como os tempos dos outros filmes de Antonioni,
é simplesmente o tempo que a situação
demanda, com a atenção e o mergulho necessários
para criar um relevo particular, um tempo do pensamento,
um tempo de se relacionar com os objetos ou com o entorno.
um tempo que provoca uma materialidade precisa. E, tão
inefável que possa parecer esse efeito estético
construído pelo filme, é um efeito que
nos afronta como se estivesse diante de nossos próprios
olhos.
Ruy Gardnier
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