CRÔNICA DE UMA AMIZADE ANUNCIADA
(sobre Le Marais)

Agrupados em torno de um tema, os curtas que compõem Paris, Eu Te Amo (assim como em qualquer filme de episódios), sugerem relações entre si a partir de elementos recorrentes, como a presença do estrangeiro, a relação entre familiar e desconhecido, ou a própria proposta central, da imbricação entre o espaço da cidade de Paris e o clima de romance. Mas vistos isoladamente, cada um deles pode apontar para relações mais instigantes, especialmente com o restante da obra de seus autores, acrescentando mais um micro-universo a universos bem mais amplos. É desta forma que Le Marais, episódio de Gus Van Sant, entabula um diálogo bastante equilibrado, com o todo do filme e com seus trabalhos mais recentes.

Eli, o rapaz fotógrafo de Elefante, retorna em Le Marais como um jovem americano trabalhando numa pequena gráfica em Paris. Retomado como personagem, o ator que vivia a si mesmo (ou alguma variação disto) no outro filme expande suas possibilidades interpretativas, ao mesmo tempo que amplia aquele universo ficcional, apresentando um possível desdobramento futuro daquela realidade. Seria o vulto que vemos ser atingido no fundo da imagem, fora de foco, na biblioteca da escola em Elefante, um outro aluno? Teria ele escapado da morte ao responder o inesperado da violência de Alex com o reflexo imediato de registrar o momento por um clique fotográfico (com toda a carga de “concessão de atenção” que o gesto revela)? Ou estaríamos diante de qualquer outra possibilidade de ficção apresentada por este personagem específico? Pouco importa, afinal a curta vivência que apresenta Le Marais já é um filme em si.

Partindo da idéia do encontro e da já citada relação entre familiar e desconhecido, Van Sant constrói em Le Marais um belo pequeno conto de amor, ou da possibilidade deste. Gaspard (Gaspard Ulliel) adentra a pequena gráfica em que Eli trabalha, acompanhando uma senhora inglesa (Marianne Faithfull), que necessita realizar alguns serviços. Após transitar com segurança entre o francês e o inglês, mediando a comunicação entre a senhora e o dono da gráfica, Gaspard percebe Eli ao fundo do estabelecimento e se dirige ate ele para conversar. Enquanto Eli, discreto, permanece passivo diante da situação, escutando o francês falar em sua língua natal, Gaspard, como que tomado por um brainstorming afetivo, faz conjeturas sobre a magia do encontro e almas gêmeas, num claro encanto com o encontro fortuito que acabara de ter com o americano. Gaspard deixa então seu telefone com Eli e parte. Eli revela finalmente a seu chefe não ter entendido quase nada do que o outro dizia. E a resposta é direta: “liga pra ele!”.

De um só golpe, a reação “apática” de Eli e o distanciamento que pautou o encontro que havíamos acabado de presenciar são reconfigurados. A atenção quase exclusiva da câmera a Gaspard, que não o conectava a Eli, não era partidária da suposta não-comunhão entre ambos, mas da sensibilidade meio perplexa de Eli, que apenas observava. Subitamente, o silêncio do rapaz e seu aparente desinteresse com a fala tão eloqüente e impulsiva do francês cedem lugar ao empenho em não deixar que aquele contato, de tão breve, se esvaeça. Eli sai correndo pelas ruas, na tentativa de ainda encontrar Gaspard nas proximidades. Atravessando um universo repleto de passantes, Eli busca restabelecer a fugidia conexão travada momentaneamente no ambiente da loja.

Se espaço cosmopolita de Paris, com sua intensa circulação, provoca a todo instante milhares de pequenos encontros, a singeleza de Gus Van Sant em Le Marais está em capturar o exato instante em que um destes encontros (de início suscetível ao completo fracasso e esquecimento, pela incomunicabilidade travestida de ruído de comunicação) acende uma faísca que desafia obrigatoriamente a transitoriedade de eventos e pessoas. Eli corre em disparada ao perceber a fugacidade daquele momento, para não deixar escapar uma possibilidade anunciada. Não a de uma relação arrebatadora (um romance?) entre almas gêmeas, como sugere a fala de Gaspard (que ele não entende), mas a de algum relacionamento, que ainda está por nascer e, portanto, pode ser tudo.

Ao invés de uma história de amor, Van Sant filma um breve entrecruzamento de caminhos que poderá (ou não) gerar uma narrativa. Desta forma, é a própria economia das relações pessoais em Paris (ou em qualquer outra cidade semelhante) o tema deste pequeno filme. Talvez, então, assim como o desdobramento possível da corrida insensata de Eli, Le Marais se firme como um desdobrar possível da aventura cinematográfica de Elefante, que buscava descrever pelas idas e vindas no espaço a economia das relações pessoais dentro daquele organismo escolar. Onde os encontros não se anunciam tão claramente em sua potencialidade, por estarem revestidos da aura do cotidiano e do corriqueiro – característica desafiada justamente pelo trágico evento ao final, que assombra a atenção dedicada à brevidade de tudo que ali (se) passa. Em Paris, cidade não-habitual, por outro lado, Gaspard, com as virtualidades de extra-ordinário que traz consigo, não pode apenas passar.


Tatiana Monassa

 

 







Gaspard e Eli em seu breve encontro na gráfica