In
Public é a primeira experiência de
Jia Zhangke com uma câmera de vídeo digital.
Na época, vale lembrar, ele tinha a reputação
de um realizador-promessa, com dois longas-metragens
intransigentes a tiracolo, Xiao Wu e Plataforma,
que eram defendidos apenas por críticos mais
radicais (nós incluídos). Hoje, depois
do enorme burburinho que O Mundo recebeu até
da mídia oficial e do prêmio em Veneza
2006 para Still Life, Jia sobe ao Panteão
do cinema de autor como um realizador que, através
das sagas de seus personagens, cria retratos em tempo
presente das modificações históricas,
culturais e sociais pelas quais passa a China em seu
vertiginoso processo de modernização.
Essa imagem não é falsa. Muito pelo contrário,
a ambição (inteiramente cumprida, diga-se
de passagem) de Jia Zhangke passa um pouco pela busca
radiográfica de registrar um determinado momento
da sociedade chinesa, uma percepção, ou,
mais precisamente, aquilo que os alemães chamam
de stimmung. Mas esse aspecto pode acabar obscurecendo
uma outra característica pregnante de seu cinema,
o ímpeto extremamente lírico de capturar
momentos de espera de seus personagens, seja à
espera de algo um tanto incerto, seja simplesmente o
específico sentimento da pessagem do tempo provocada
pela falta do que fazer. In Public é uma
entrega total a essa prática de observação.
De início, somos transportados para uma estação
de trem, e um homem em especial nos chama a atenção,
como a esperar alguém (os minutos seguintes confirmarão
a impressão, ele esperava sua família).
Nas cenas seguintes, passamos para grupos de pessoas
à beira da estrada, esperando vans para transportá-los
de um lugar a outro. Mais um filme sobre o estado de
eterna espera da população chinesa diante
de uma realidade avassaladora e sem maiores perspectivas?
Não exatamente. Logo ficará clara a maneira
como as imagens existem e se montam umas com as outras:
trinta e dois minutos de variações sobre
comportamento "em público", esperando
transporte, em trajeto ou finalmente numa nada glamurosa
discoteca em que se toca uma música nacionalista.
Naturalmente, existe aí uma maneira de extrair
significações políticas ou no mínimo
dados controversos uma discoteca, influência
ocidental, convivendo com a música de propaganda
que nela toca , mas o que mais parece importar
a Jia Zhangke em In Public é esse desejo
tão primário quanto exuberante de simplesmente
registrar a passagem do tempo e como certas pessoas
ocupam esse tempo. A esse respeito, a relação
da câmera com aqueles que por ela são retratados
é encantadora: crianças, adultos, homens,
mulheres ficam sem saber o que fazer diante dela, olham
com um olhar cheio de curiosidade e indagação,
mas em nenhum momento se dirigem a ela, atuam para ela.
É um pouco a mesma sensação que
se depreende da parte "At Noon" de Misterioso
Objeto ao Meio-Dia de Apichatpong Weerasethakul:
simplesmente uma passagem agradável de uma determinada
duração que transcorre para algumas pessoas.
Essa impressão de "retratos a esmo",
da câmera que persiste filmando uma situação,
provoca instantaneamente a sensação de
um olhar meio indiscreto, de alguma forma perscrutador,
mas não visto como "necessário"
nem se dando a si mesmo a justificativa de estar lá.
As imagens de In Public são de uma gratuidade
libertadora. Ora, essa liberdade e essa indiscrição
são as mesmas de um cineasta que fazia filmes
clandestinamente (os filmes chineses passam por um processo
de dupla censura no começo e no fim da cadeia,
precisando de aval inclusive para a compra de negativos)
com material significativamente mais pesado de película,
e que agora pode se postar no meio da rua, sem se esconder,
entregue aos acasos e acidentes que possam ser provocados
pelas coisas imprevisíveis que podem acontecer,
sem ensaio, diante de uma câmera. Daí que
"em público" talvez diga mais respeito
à postura do próprio realizador nesse
filme do que ao tema encontrado. Vemos aí um
Jia francamente mais solto, sem a severidade ou a sensação
de destino inevitável provocada pela ausência
de perspectivas dos personagens de seus longas-metragens.
Seu objetivo permanece o mesmo, fazer um retrato da
população chinesa trabalhadora de cidade
pequena, mas dessa vez a chave é quase heróica,
mostrando como esses homens e mulheres persistem, movimentam-se
de um canto a outro, ou seja, são figuras com
vida que habitam um processo histórico. Em In
Public, Jia Zhangke esquece um pouco a pressão
da História e filma seus personagens em momentos
de mais livre respiração. O resultado
é encantador.
Ruy Gardnier
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