HOMENAGEM A DANIÈLE HUILLET
(E JEAN-MARIE STRAUB)

Danièle Huillet, uma das mais importantes e mais desconhecidas diretoras de cinema do mundo, morreu no dia 9 de outubro, sem maior estardalhaço, calma, quase escondida. Discreta, como a trajetória intransigente de seus filmes. No escuro, como a recepção pública geralmente dada aos petardos assinados "Straub/Huillet", mas acima de tudo no escuro por uma opção própria por um cinema feito para atingir um sujeito determinado, repleto de coisas tangíveis, ao contrário do anonimato dos filmes feitos para qualquer um jogados em mil telas para pronto consumo.

É verdade que a mostra de qualquer grande realizador (como esse ano Imamura ou Altman) é uma morte sentida, mas com Danièle Huillet (e sabendo da possibilidade pequena que Jean-Marie Straub, seu companheiro de vida e de filmes desde o começo dos anos 60, consiga redescobrir a energia de fazer filmes sem os 50% que faltam) o cinema não perde somente uma figura notável. É mais complicado que isso. O cinema perde uma forma inteiramente diferente de se conceber, de se pensar e de se praticar o cinema. Uma forma austera, em que todos os pressupostos das convenções do cinema são colocados em xeque ou sumariamente descartados, e todo "truque" cinematográfico, os ilusionismos e as maximizações típicas do "ver grande" do cinema, ganham uma crítica que surge não pelo questionamento direto dos rumos do cinema convencional, mas pela proposição de outras maneiras de organizar o material sensível da película e do material imaterial das sensações e significações evocadas pelo filme.

Em Onde Jaz o Teu Sorriso?, filme de Pedro Costa sobre o casal, entre uma e outra frase bombástica e resmungona, Straub fala do raccord (continuidade de movimento, ação, olhar e/ou lógica espacial feita entre um corte e outro) que ele é a invenção mais estúpida do cinema. A frase pode parecer originalmente como mais uma boutade do verborrágico Jean-Marie, mas vista mais detidamente ela revela um princípio presente a todo o tempo nos filmes Straub/Huillet: uma atenção solene, um respeito quase religioso pelo de imantação do real criado pelo simples registrar de uma câmera. Serge Daney dizia que o que unia mais fortemente os filmes da dupla era a encenação de momentos de resistência, mas nos parece que essa espécie de elogio aos espaços reais, essa atenção à materialidade do que é filmado – materialidade porque num filme de Huillet e de Straub uma palavra é mais um bloco de fala do que um significado, uma postura de personagem é mais um statement do que uma expressividade "psicológica", um corte é mais um rearranjo espacial do que uma continuidade – e paradoxalmente o efeito espiritual que dali provém constituem o esforço artístico persistente desses cineastas tão coerentes no "o que filmar" quanto no "como filmar" de seus projetos.

Fala-se muito no engajamento político, na postura de não-reconciliados do casal, na economia "marxista" com que realizam seus filmes. Mas o engajamento primeiro de Straub, o encenador da imagem, e de Huillet, a encenadora do som (até essa inelutável separação constitutiva do filmar, os registros diferenciados entre som e imagem e a colocação deles em diferentes locais da película, curiosamente, é mantida no processo de trabalho dos dois), é com a factualidade do que acontece diante da câmera, com o intenso esforço de abstração e de subtração que consiste em fazer uma imagem que não tente comunicar nada além dela mesma, retirando dela toda carga conotativa, toda a poesia prêt-à-porter, todos os efeitos fáceis de significação. A esse respeito, podemos ler numa entrevista o que eles têm a dizer:

Straub: Infelizmente, o cinema é uma linguagem, mas tento destruir esta linguagem, tento fazer filmes que não levem em consideração esta linguagem.
Huillet: Não é nada complicado: é o mesmo trabalho que fazem os poetas sobre a língua. Eles pegam uma língua que em muitos casos tornou-se rígida, tornou-se um sistema de hábitos que é quase uma língua morta e bruscamente tentam fazer coisas que ainda não foram feitas ou que foram esquecidas há muito tempo.
Straub: Mas justamente com as palavras mais simples – e o menor número de palavras possível – as palavras mais gastas. Não é com palavras poéticas que se faz poesia.

A partir dessa relação bruta – ou originária, se quisermos ser idealistas – com a linguagem (tomada não mais como uma série de procedimentos convencionais de reconhecimento e organização a priori dos elementos artísticos, mas como o conjunto de todas as possibilidades expressivas de uma forma artística) surge o sentimento todo particular de se assistir a um filme de Straub/Huillet: a idéia de que se está em outra dimensão, em que as coisas vistas na tela assumem uma palpabilidade incomum em nossas relações costumeiras com outros filmes, uma aparente ausência de propósito rapidamente transformada numa imersão estranha, em que o sentimento, como o próprio Straub bem gostava de dizer a próposito de Cézanne (mas que considerava ser um propósito também de seu cinema), não passa da tela para o espectador, mas aparece materializado na própria imagem.

Imersão, sim, é disso que se trata. Pois, ainda que a maior parte do que se fala a respeito do cinema deles seja a propósito de seus aspectos meramente negativos em relação ao cinema convencional (não-naturalismo dos personagens, não-psicologismo dos comportamentos, fuga da prosódia natural, fuga da montagem "esquema sensório-motor"), os filmes de Straub/Huillet não têm nada a ver com um cinema que busque simplesmente um estranhamento que deixe os espectadores sem emoção, mas sim com a busca de outra emoção, talvez mais longínqua, talvez uma que seja necessário trabalhar para alcançar, mas talvez simplesmente a beleza mais acessível de todas, que entretanto toda a capa da superestrutura do espetáculo e da indústria opulenta do entretenimento transformou em algo quase invisível. A busca de S&H é a busca de uma emoção não-entorpecida, de uma apreciação absorta porém lúcida. Quase uma mágica, quase como se o campo visual do retângulo da imagem de seus filmes supusesse por sua própria natureza um fora-de-campo infinito em que se escondesse a mágica oculta para além da matéria. Existe um bazinismo profundamente místico em Straub/Huillet, uma crença inconfessa de que filmando-se a materialidade da matéria acede-se ao intangível da Graça. Não à toa os personagens sempre olham para um horizonte que parece estar muito além da lateral do plano; não à toa os filmes (e certos planos) parecem acabar em momentos inesperados, que rearrumam em nossa cabeça o significado do que acabamos imediatamente de ver; não à toa há uma lógica entre o visto e o não-visto que mais evoca do que dá a ver. Na composição desse intangível da Graça, as ausências criadas pela composição e pela estrutura dramática ocupam um papel tão ou mais importante do que as presenças.

Se há algo em que Danièle Huillet e Jean-Marie Straub pensaram profundamente ao construírem a estética de seus filmes, é na questão da ênfase da palavra. E, aí, especialmente, a palavra literária. Como trazê-la para o filme de forma que ela mantenha sua força como palavra, não como transporte de um significado? Como fazer dela não a transmissão de uma informação, mas uma intensidade, uma vibração, um gosto? Esse magnífico achado, eles conseguiram chegar a ele quebrando os efeitos naturalistas da prosódia corriqueira, fazendo seus atores dizerem o texto colocando os acentos em sílabas improváveis, criando pausas ali onde não se espera que elas existam, superdramatizando frases sem pompa ou desdramatizando frases e palavras decisivas. Dissociada de sua função de transmissão, a palavra nos filmes de Danièle Huillet e Jean-Marie Straub ganha uma imprevista sensação de musicalidade, como se o italiano dos poersonagens de Das Nuvens à Resistência e de Gente da Sicilia, com se o francês de En rachâchant ou de Cézanne, com se o alemão de A Morte de Empédocles ou Antígona fossem línguas reencontradas, jamais ouvidas em sua verdadeira acepção e riqueza antes. Uma riqueza que, somada ao caráter austero do quadro e da luz (geralmente a cabo dos magos da luz natural, William Lubtchansky, Renato Berta...), fazem com que vejamos com novos olhos tudo aquilo que, de certa forma, já tínhamos visto infinitas vezes.

Se há uma diferença entre esse cinema e todos os outros que conhecemos, ela nasce inicialmente na postura, na disposição diante do ato cinematográfico. Para Danièle Huillet e Jean-Marie Straub, o cinema não é uma máquina de reproduzir um roteiro, não é uma forma de trucar a realidade para se conseguir um determinado efeito. O raccord, elemento de base do processo de montagem de 99,9%, é uma estupidez, dizem eles. A dublagem é uma traição, um achatamento da realidade sonora que se chegou na hora da filmagem. O instante que vale é a hora da filmagem, com suas instabilidades suas surpresas, seus encontros com os atores, sempre ou quase sempre não-profissionais, ou atores de grupos de camponeses amadores (como por exemplo os últimos filmes), mas acima de tudo o encontro da fala dos escritores e poetas com a voz dos atores que as transformarão em matéria. O cinema de Straub/Huillet trabalha com uma verdade que deveria ser geral de todo filme, mas que só em pouquíssimos casos toma a frente e seduz ao mesmo tempo por sua franqueza e simplicidade que explodem na tela: a de que o cinema é a música da voz e a poesia da luz. Todas elas, naturalmente, captadas ao natural, fazendo a harmonia, a beleza, a estrutura brotar a partir de uma rigoroso registro do que já está lá na natureza, austeramente, pronto para se filmar. Quantos cineastas pediram isso do cinema?

Ruy Gardnier

 

 





Danièlle Huillet


Quei loro incontri (Aqueles Encontros com Eles, 2007),
último filme de Danièle Huillet e Jean-Marie Straub