O
atual editor dos Cahiers du Cinéma, Jean-Michel Frodon,
esteve no Brasil em agosto/setembro de 2006 para o ciclo
“O Cinema que Reinventa a Política”. Realizamos uma
entrevista em que falamos sobre a orientação editorial
empregada pela revista nos últimos anos, sobre alguns
dos filmes escolhidos por Frodon para acompanhar o ciclo
de palestras do evento e, é claro, sobre o destino do
cinema em meio ao turbilhão do universo audiovisual
contemporâneo.
No seu trabalho como crítico, há uma interrogação
primordial: como articular a herança crítica nascida
após a reflexão de conjunto sobre a moral da mise
en scène, das implicações morais da mise en scène
– a mesa redonda em torno de Hiroshima Mon Amour,
o texto de Jacques Rivette, “De l’abjection”, e mais
recentemente “Le travelling de Kapò”, de Serge
Daney –, como articular essa brilhante herança crítica
com os novos regimes de imagem, a questão de como situar
o cinema no manancial de novos objetos visuais contemporâneos.
Será que a falta de linhas divisórias, a falta de um
cataclismo primordial como o Holocausto – porque o 11
de setembro não funcionou assim –, não faz com que a
crítica se ache, de um lado, sob o risco de uma espécie
de imprecisão, de enfraquecimento conceitual mesmo,
e, do outro, sob o risco do uso inflacionista da idéia
do infilmável, ou de um dogmatismo datado, démodé, vencido?
É uma questão bem vasta... Creio que a questão central
do trabalho crítico continua a mesma: as relações de
força que se estabelecem entre aquele que é mostrado,
aquele que mostra e aquele a quem se mostra. Isso permanece
um assunto eterno, um assunto que conserva não apenas
sua força, mas a necessidade de sempre reinterrogá-lo,
e o trabalho crítico é isso, de uma grande parte é isso.
Não há razão para mim de dizer hoje, só porque se fez
isso há trinta, quarenta ou cinqüenta anos, que isso
ou aquilo não deve ser mostrado desse ou daquele jeito.
Não é mais o mesmo gênero de coisas. A forma como se
faz, como se põe em ato, como você disse, ela é submetida
a certas mudanças, mudança no estatuto das imagens e
das mises en scène – porque o mundo das imagens
e das mises en scène de hoje não é mais aquele
de trinta ou cinqüenta anos atrás –, é preciso portanto
interrogar o que se passa nesse mundo das imagens que
permite continuar a pôr aquelas questões lá, continuar
a ver como funciona as mises en scène sob um
ponto de vista ético e político, sabendo que vivemos
num mundo do videogame, da publicidade, num mundo virtual,
do digital, onde o estatuto do registro não é mais o
mesmo – não desapareceu, mas não é mais o mesmo. É um
trabalho bastante complicado quando falamos de forma
geral, e que finalmente aparece melhor no trabalho crítico
no sentido preciso da palavra, ou seja, falar de um
filme, um novo filme que entra em cartaz. Eu vivo no
presente, no meu tempo, hoje, não leio Jacques Rivette
nem Serge Daney todas as manhãs como a Bíblia, e as
outras pessoas dos Cahiers que são mais novas que eu
conhecem muito bem a história dos Cahiers du Cinéma,
são pessoas do seu tempo, e com a idade de vocês. Nessa
relação de hoje que podemos construir com o filme de
maneira atual, o como colocar essa questão, esse outro
aspecto, você tem razão, está em qual formulação, qual
escrita, quais palavras que vamos empregar, e aí há
um trabalho complicado porque ninguém pode dizer que
achou a resposta ideal, nem recorrer a um museu de palavras
e de idéias, porque os jogos políticos da mise en
scéne continuam tão sérios e reais hoje quanto no
momento do texto de Rivette ou de Daney. Então podemos
dizer que o que partilhamos na sociedade em que vivemos
hoje não são necessariamente as mesmas palavras, as
mesmas fórmulas, e portanto – não cabe a mim dizer se
conseguimos – tentamos, isso é evidente, fazer nos Cahiers
de hoje aquele mesmo trabalho porém com as palavras
de hoje, com o sistema de pensamento de hoje. Foi mais
fácil, de uma certa maneira, no momento de Rivette,
ou mesmo no momento de Daney, referir-se a grandes sistemas
de pensamento. Hoje o grande sistema de pensamento é
uma espécie de reflexo hostil e pejorativo sobre a maior
parte das pessoas, que o regozijam, ao contrário de
lamentá-lo. Mas em todo caso é mais difícil evocar um
sistema ideológico de conjunto, e então abre-se mão
de ser mais preciso, mais fatual, ou seja, é mais complicado
escrever que aquele que filma “Emmanuelle Riva agonizando
durante um travelling que termina enquadrando a mão
dela sobre o fio de arame eletrificado não tem direito
senão ao mais profundo desprezo”. Isso é dito por quê?
Rivette não tem necessidade de dizer o porquê, assim
como Daney, quando escreve “Le Travelling de Kapò”,
diz que não teve necessidade de ver o filme de Pontecorvo
para se irritar com ele. Daney sabia que Rivette tinha
razão em nome de idéias gerais, essas idéias gerais
eram partilhadas no momento em que Daney escrevia nos
anos 90. Hoje em dia não somos mais obrigados a dizer:
“eis porque, sim, eu tenho desprezo pela equipe que
fez isso”. Foi por isso que eu revi o filme – e realmente
é um filme abjeto. (risos) Creio que isso tem
a ver com o fato de que é preciso fazer mais e mais
a mesma coisa, é preciso não ter medo nem vergonha de
fazer a mesma coisa. Há um texto muito bonito, muito
emocionante pra mim, que é uma entrevista de Serge Daney
num livro que se chama Devant la recrudescence des
vols de sacs à main. Num dado momento ele diz: “Não
posso mais, desisto. Mostrei Ici et Ailleurs de
Jean-Luc Godard centenas e centenas de vezes, expliquei,
fizemos debates, conferências, e as pessoas recolocam
sempre a mesma questão”. É preciso então fazer outra
coisa. Há um lado no trabalho de crítica efetivamente
esgotante, uma espécie de suplício, os Cahiers sempre
desceram a montanha e depois recomeçaram, mas isso é
também muito apaixonante e muito agradável, porque a
situação muda, vêm novos filmes e, mais ainda, falamos
também para pessoas jovens, como vocês, isso é legal.
Eu compreendo que alguém como Serge Daney, que despendeu
uma energia gigantesca junto aos filmes, tenha percebido
que é preciso sempre recomeçar. É verdadeiramente complicado.
Há um lado um pouco irônico no fato de que os Cahiers
sejam a maior, a mais célebre revista de cinema, a que
mais influenciou uma linhagem de teoria e de realizadores
de cinema, e que sempre seja necessário recomeçar do
zero para explicar que esses filmes que são “importantes”,
que tocam em assuntos importantes como Crash,
como os filmes de Iñarritú, fazem figura de abjeção
exatamente porque tocam em certas questões sociais de
um lado mais espetacular, mais manipulador na maneira
como conduzem a narrativa, como conduzem os planos no
seu conjunto. E também com o cinema americano, creio
que seja sempre a mesma história: antigamente era preciso
dizer que Howard Hawks era um grande realizador, não
apenas “alguém que trabalhava na indústria”; hoje é
preciso fazer a mesma coisa por Michael Mann, por Shyamalan.
É irônico.
Na história dos Cahiers não há muitas reais vitórias
teóricas definitivas. Há momentos, e alguma coisa que
entra em ressonância com a sociedade que possui um efeito.
Esse efeito é trabalhado pela realidade, pelo conjunto
de forças sociais, e portanto não podemos jamais considerar
que ganhamos, que tudo vai bem. Por mim, se todos compreenderam,
passemos a outra coisa. Se não, é preciso recomeçar
do bêabá de André Bazin, dizer que documentário e ficção
não são coisas diferentes, são coisas que ocorrem sempre
ao mesmo tempo no cinema. Um dia ouvi numa rádio francesa
um locutor que disse a um realizador, de quem tinha
visto um documentário: “um dia você tem que fazer cinema”.
É sempre assim, é normal, é a tração das forças sociais,
a tração de uma marcha da educação, de uma marcha do
lazer, da economia, evidentemente isso vêm sempre a
ocorrer, mas é preciso continuar a pensar porque, apesar
de tudo, no momento em que o refazemos, trocamos alguma
coisa, partilhamos alguma coisa com as pessoas e depois
isso tem efeito sobre elas. São coisas que permanecem
em circulação e em movimento. E os Cahiers du Cinéma
se impuseram como uma espécie de marca comercial, ou
não comercial que seja, mas antes simbólica, que é conhecida
no mundo inteiro. Mas quem realmente escreveu lá nos
Cahiers nos anos 50, 60, 70, quase ninguém conhece.
E os que realmente escreveram dizem hoje em dia que
estão muito contentes dos Cahiers terem se tornando
tão célebres assim, porque isso dá mais força para dizer
pela primeira vez ou para redizer hoje coisas que já
dizia André Bazin antes do nascimento dos Cahiers du
Cinéma, coisas que dizia Truffaut, Comolli, Bergala.
É um estágio em que há transmissão, em que há troca,
nós lhes respondemos. E tão melhor se o nome é célebre,
mas a celebridade do nome não solidifica nada, não protege
ninguém do porvir.
Falando ainda da mesma coisa, desse trabalho cotidiano
de insistência sobre o mesmo ponto, creio que ainda
assim há alguma coisa nova, sobre a qual é preciso refletir,
que é o estatuto do cinema, como o Júnior disse, no
“manancial de imagens” contemporâneo, e há uma diferença
de estratégia. Os Cahiers com Charles Tesson, Jean-Marc
Lalanne e Olivier Joyard tiveram uma outra estratégia,
que era mais de fazer falar essas imagens do videoclipe,
do spot publicitário, e se interrogar se elas fazem
crítica social, se há um gênio nessa máquina que não
tem autor, se há um gênio em alguma coisa e não em outra.
E você hoje parece fazer questão de pegar a especificidade
do cinema, fazer uma espécie de profissão de fé no cinema
como eixo privilegiado, como encontro, como resposta
a esse domínio da imagem publicitária no mundo.
Creio que podemos continuar a falar hoje em dia de alguma
coisa que denominamos cinema. E os Cahiers du Cinéma
não mudaram o nome para “Cahiers des Images”, “Cahiers
d’audiovisuel” etc. Isso não é exatamente para guardar
essa hipótese teórica, que é discutível, de que há alguma
coisa que vem da história do cinema, da história clássica
do cinema, e que permanece ativa em certas produções
de imagem e não em outras. Essa relação cinematográfica
se tornou um conflito com outras formas de imagem, outras
formas de audiovisual no mundo em que vivemos. Sabemos
que a fronteira não é fixa, ela oscila bastante, há
muita coisa que chamamos de filme, de cinema, e que
é afeita à televisão, por exemplo, porque partilha da
estética e da construção que vêm da televisão, e podemos
encontrar na televisão coisas que vêm do universo do
cinema, portanto as fronteiras são complicadas. Mas
ao menos a palavra cinema, aquilo que ela designa, merece
um trabalho de escrita, e esse é o trabalho dos Cahiers
du Cinéma. Não poderíamos escrever também sobre uma
peça de teatro ou sobre um novo carro fabricado ou sobre
o discurso de um presidente da república... Há um objeto,
e esse objeto existe sempre como objeto: o cinema. E,
em seguida, não como uma segunda coisa, mas sim ao mesmo
tempo, esse objeto não apenas tem uma força, uma importância
como tal, mas ele permite compreender as outras imagens:
a partir do cinema, e desse trabalho de distanciamento
e separação do cinema das outras imagens, podemos refletir
sobre o que se passa nas imagens da televisão, do vídeo,
do videogame, da publicidade, do clipe etc, e portanto
há um jogo duplo a fazer nos Cahiers du Cinéma a partir
da separação relativa do cinema em relação às outras
imagens: ao mesmo tempo interior – as coisas que continuam
do cinema, como isso funciona etc – e exterior, ou seja,
como enxergar melhor as transmissões esportivas ou a
publicidade a partir de um saber cinematográfico.
Falemos um pouco de alguns filmes que você escolheu
para o ciclo “O Cinema que reinventa a Política”. Vimos
ontem o filme do Chabrol, A Comédia do Poder,
e nele podemos dizer que há a mise en scène no
sentido clássico. Não falo de um academicismo, nem de
um certo grupo de procedimentos formais ou de composições
dramáticas. Falo da mise en scène no sentido
clássico porque os movimentos da câmera, os enquadramentos,
a duração, a relação do corpo com o espaço, a mise
en place dos objetos cênicos, essas são as coisas
constitutivas da mise en scène, são as coisas
que no fim das contas carregam os significados políticos,
fazem o enunciado político do filme. Num outro filme
que está no programa, o 10ème Chambre, do Depardon,
vemos algo bem diferente: há um dispositivo, três ou
quatro câmeras – não sei ao certo quantas – fixas nos
personagens, e há uma montagem-mise en scène
que faz a partilha da palavra. É curioso porque o enunciado
político é resultado de um comportamento do corpo na
arquitetura da imagem, um comportamento imprevisível,
indeterminável no espaço do quadro cinematográfico.
Tem aquela cena com o rapaz que é o personagem mais
fora-da-lei do filme, metido com droga e com armas,
e ele parece se desvencilhar do plano fixo, ele parece
buscar o fora-de-campo; o fora-da-lei parece buscar
o fora-de-campo, enquanto os outros permanecem fixos.
É uma outra concepção de mise en scène, conseqüentemente
um outro tipo de enunciação política. Mas a pergunta
é: você acha que no filme do Chabrol as questões políticas
são mais legíveis do que nessa outra proposta?
Não, a questão política é mais legível no filme de Depardon,
ela sai dos gestos, do corpo, das mises en scène,
pois é mais de uma mise en scène, mais de uma
utilização de estratégias – a juíza tem sua estratégia,
as pessoas julgadas têm sua estratégia, os advogados
têm estratégias etc – sobre a linguagem utilizada, sobre
o vocabulário. Para mim um uso verdadeiramente interessante
e novo do filme de Depardon é que isso ao mesmo tempo
ressoa o teatro e não é teatro. Falou-se sempre que
a justiça é um teatro. Mas no teatro há uma cena e o
público. Lá no filme de Depardon há várias cenas, e
há o modo como essas cenas, em correspondência ou não,
fazem surgir questões sobre as relações de poder sem
aquele fator clássico. E ao mesmo tempo há muitos filmes
sobre a justiça, notadamente o de Frederick Wiseman,
que partem da idéia de denunciar o funcionamento injusto
da justiça. 10ème Chambre é muito mais complexo
em relação a isso, ou seja, ele não pensa que o juiz
é um crápula porquanto defende o sistema e é malvado
porque o sistema é malvado. A relação com a lei aparece
no filme ao mesmo tempo como necessidade de organização
da vida coletiva e como uma depressão na justiça, uma
relação mais ativa e instável do que na maior parte
dos filmes sobre a justiça, que costumam ser bastante
passionais. O filme de Depardon não é um discurso sobre
a justiça antes de ser um filme. Antes de denunciar
o aparelho ideológico do Estado opressor da justiça
de classes, o filme mostra um aparelho em que é preciso
delimitar as coisas perigosas no comportamento. Creio
que é politicamente mais interessante observar a questão
aberta do que dizer já que o juiz é um crápula, acusar
seu poder. O conteúdo político é mais presente, se faz
mais visível no filme de Depardon. No filme de Chabrol
isso funciona de forma inteiramente diferente, é mais
a maneira como se vai jogar com os signos do romanesco
político. Há alguma coisa que joga com isso, mas que
não vai concluir o programa. É uma mise en scène
que tem muito da academia e que ao mesmo tempo não faz
coisas extravagantes. Mas há algo de bizarro ainda assim
– no campo, no plano, na duração, nos acessórios. Chabrol
é alguém que trabalha na fronteira do academicismo,
alguém que realmente vem do sentido de autor como os
Cahiers definiram os autores em Hollywood: ele parte
de um sistema para fazer algo pessoal.
Entrevista concedida a Luiz Carlos Oliveira Jr. e Ruy
Gardnier em 29/08/2006.
(Traduzida do francês por Luiz Carlos Oliveira
Jr.)
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