A enorme carga de informação
derivada do volumoso número de filmes vistos entre o
Festival do Rio e a Mostra de São Paulo me fez retomar
um assunto já aqui abordado anteriormente, num artigo
intitulado Cinema
de Outros Tempos, em que me interessava pensar uma
nova relação com o tempo, de uma determinada parcela
do cinema contemporâneo. Na ocasião, me chamou atenção
especialmente o cinema americano, com suas necessidades
narrativas, seu fluxo de imagem e um determinado padrão
de se fazer cinema – ainda que contenha variantes consideráveis
–, concebidos sob outra perspectiva. Os filmes vistos
no mês de Setembro e Outubro nos dois eventos, além
das pré-estréias de peso, são daqueles que dificilmente
poderão ser vistos em cartaz, talvez por sua dificuldade
de recepção, talvez pela sua digestão dificultada. São
também aqueles que muitas vezes apresentam novos formatos
e conteúdos, caracterizando um novo cinema, que funciona
como espécie de vanguarda (com todas as complicações
que o termo acarreta). Essa generalização é uma justificativa
para apresentar os filmes da Mostra e do Festival como
aqueles tradicionalmente mais inventivos. E é por isso
que retomo aqui a idéia do cinema de suspensão,
que aparece não por minha iniciativa de buscar isso
nos filmes, mas por alguns dos próprios filmes exibidos
proporcionarem tal estado ao longo da projeção. Embarcar
na imagem, “sair do chão”, mergulhar no filme. A volta
ao assunto vale a pena e por que não repensá-lo partindo
do próprio filme, pensando nas suas artimanhas e operações?
Pensar na recepção e absorção e na relação espectador-material
fílmico sob um viés de imersão na imagem. Pensar, mantendo
um distanciamento temporal do estado espectatorial ao
longo da projeção.
Havia citado no texto em que tratei de O Novo Mundo
e Miami Vice uma certa fluidez da imagem, que
propiciava uma nova forma de embarque no filme, caracterizando
uma nova relação de tempo, tanto diegeticamente (como
a relação de tempo se apresenta dentro do filme), como
na relação do espectador com o tempo do filme e da projeção.
Essas especulações vão se confirmando com a experiência
do cinema. Se antes peguei filmes que lidavam com uma
imagem que não era necessariamente homogênea (como a
digital de Miami Vice), agora invisto em filmes
que não necessariamente mantêm uma homogeneidade na
fluidez. E me refiro especialmente a Juventude em
Marcha, de Pedro Costa. O filme, ainda que extremamente
diferente, se aproxima de um outro, concebido pelo diretor-ápice
do cinema-fluxo, Apichatpong Weerasethakul: Síndromes
e um Século, apresentado na Mostra. As diferenças
entre O Novo Mundo e Miami Vice não impediram
que se definisse (ou ao menos se especulasse) uma característica
comum a ambos: a fluidez da imagem e o “estado de suspensão”.
Agora, as diferenças de Juventude em Marcha e
Síndromes e um Século são justamente o que me
leva a pensar novamente no assunto. Como filmes formalmente
tão diferentes proporcionam sensações próximas? Como
oferecem um estado espectatorial parecido?
Juventude em Marcha chama atenção primeiramente
pela forma. Planos independentes, densos, que valem
por si e não carecem de outros para mostrar sua força.
Já falava da autonomia dos planos nesse cinema sobre
o qual especulo. Mas em Pedro Costa, mais do que autonomia,
cada plano, mesmo independente, tem sua significância
concentrada nele mesmo, pouco se diferenciando de quando
visto no todo do filme. É claro que a obra de Pedro
Costa não se define assim, nem tampouco estou afirmando
que tudo que cada plano oferece esgota-se nele mesmo.
Mas há que se pensar como cada enquadramento, com todo
o conteúdo “narrativo” nele embutido, proporciona uma
sensação de satisfação. Não é preciso repensar a imagem.
É como se a necessidade de entendimento e compreensão
dessa imagem já estivesse contida nela mesma e no tempo
em que ela é compreendida (mas é preciso notar que a
estética de Juventude em Marcha ainda reverbera
de maneira forte, tão longe esteja a memória do espectador).
A montagem do filme, no entanto, está longe de ser a
ordenação de planos autônomos, aleatoriamente. Acompanhamos
a saga de Ventura em busca de seus filhos, e há certamente
um crescente nesta busca. O lindo poema recitado (presente
na carta que Lento escreve), da mesma forma que veio
de outros tempos (e de outro filme: Casa de Lava,
também de Pedro Costa), ecoa diferente em cada momento
do filme e não se esgota na própria obra. É possível
projetá-lo novamente num outro tempo, ou mesmo em outro
filme.
Cineasta do fluxo, Apichatpong opera de maneira quase
oposta (ainda que não se pretenda traçar dicotomias).
Síndromes e um Século mantém uma forma já verificada
anteriormente em seus filmes. Planos que também exercem
uma força especial, mas que tomam novas significações
ou variâncias quando vistos num todo. A montagem de
Síndromes e um Século viabiliza a fruição da
imagem. O filme, dividido em dois – aspecto notado até
mesmo pela quase cartela que aparece no meio da obra
–, retoma situações parecidas, quando não idênticas,
em momentos diferentes, com personagens diferentes e,
finalmente, com projeções diferentes. Cada imagem remonta
à anterior com novas acepções. E cada plano carece de
um outro precedente e obriga a um posterior. Apichatpong
escolhe enquadramentos que vão ao encontro do fato narrado,
da história contada, pensando, sobretudo, na emoção
buscada. De que forma a imagem vai reverter, ou traduzir,
o sentimento que se busca? Falamos em plano conceito-sentimental.
E tal aplicação vale tanto pra Apichatpong quanto pra
Pedro Costa. Mas, se o primeiro constrói uma linha temporal
irregular, desprezando a ordem de tempo através de uma
montagem “aleatória”, ou não-cronológica, o segundo
despreza a relação temporal já dentro do próprio plano.
Síndromes e um Século se faz na fluidez da imagem.
Juventude em Marcha se constrói na potência do
plano. Determinações que mais são especulações ou sensações.
Mas cabe notar como os dois filmes, de maneira absolutamente
distintas, proporcionam uma sensação de levitação bastante
semelhante. Ambos proporcionam ao público a capacidade
de envolvimento com o filme de forma que os tire da
poltrona. Podemos falar em flutuar. A dureza de Pedro
Costa faz com que em cada momento do filme a entrega
seja total. O filme ao mesmo tempo em que cobra muito
do espectador – e ele só faz sentido quando este está
disposto a compartilhar das emoções apresentadas –,
oferece um estado de envolvimento absoluto. Talvez a
falta de tempos de respiro faça com que o filme se apresente
contínuo quando pensamos na fruição. Enquanto Apichatpong
estabelece isto quase como uma premissa, uma vez que
o espectador facilmente se deixa levar por aquilo que
se apresenta – e é também necessário embarcar e mergulhar
no filme –, Pedro Costa constrói seus momentos impondo
uma certa regularidade, feita de enquadramentos estranhos
e geometricamente irregulares, que potencializam a suspensão
dos sentidos.
Mas, como em tempos de festivais a carga de informação
é grande, e a capacidade de recepção é certamente menor
(com tanto conteúdo “informativo” apresentado), resta
uma sensação do que passou. E, inevitavelmente, traçam-se
paralelos às vezes lógicos, às vezes arbitrários. Conexões
são feitas, variando desde aproximações estéticas, de
tratamento de imagem e condução narrativa, até retratos
de personagem. Neste hipertexto, no meio deste “cinema
de suspensão” que parece se intensificar, e dialogando
com uma certa cena do cinema contemporâneo, aparece
O Céu de Suely, de Karim Aïnouz.
Mas o que este filme traz de semelhança com o cinema
de Pedro Costa ou Apichatpong Weerasethakul? Muita coisa,
possivelmente. Poderia enumerar algumas características
que ligam os três filmes, mas prefiro, neste instante,
me deter em algumas: o envolvimento emocional com a
imagem, sua fruição, a condução do tempo e o estado
espectatorial.
Olivier Joyard, na edição número 580 da Cahiers du
Cinéma, já falava do desaparecimento progressivo
do plano subjetivo em favor do plano conceito-sentimental.
E, baseando-se neste conceito, é possível traçar relações
entre os filmes de Pedro Costa, Apichatpong e Karim
Aïnouz. A condução de todos os três parece ser dominada
não por personagens ou por situações, mas sim pelo sentimento
e pela emoção que domina e rege os elementos do filme,
inclusive os próprios personagens e situações. No caso
de O Céu de Suely, isto se torna ainda mais curioso
quando somos levados a acompanhar, quase em todos os
planos do filme, as (des)venturas de Hermila. Sua chegada
em Iguatu, sua readaptação, seu envolvimento com o local
de retorno, seu contato com as pessoas; e, finalmente,
seu resgate do que havia deixado para trás, acrescido
da experiência de distanciamento do meio enclausurante.
Porém, ainda que a protagonista Hermila domine o filme,
e nela se construa o arco narrativo da obra, o que transborda
em O Céu de Suely é justamente a intensidade
de cada plano, concebido com emoção que se transfigura
em imagem. O que rege o plano são os sentimentos compartilhados
de Karim, Hermila-personagem e Hermila-atriz, que se
potencializam numa imagem que tenta (e consegue) traduzir
sentimentos.
O embarque em O Céu de Suely é viabilizado pelo
envolvimento com o plano e com seus respectivos agenciamentos.
Mas há algo de estranho que chama a atenção do espectador.
O Céu de Suely é também um filme de interrupções.
Se em Juventude em Marcha restava a sensação
de satisfação com o plano, em O Céu de Suely
resta a ausência da continuação. Cada plano não tem
o tempo que pede, ou que carece. Se essa foi a intenção
do diretor ou não, tampouco importa. Vale pensar que
o material apresentado está lá, e a extensão dos planos,
sua fixação, seus agenciamentos e a composição de um
todo já estão feitos. Se Apichatpong é o diretor dos
“planos-viajantes”, que se encadeiam partindo de uma
montagem que não “se mostra”, mas também “não se esconde”
(e sobre isso já havia falado no artigo anterior), Karim
Aïnouz, em O Céu de Suely, “brinca” com o fluxo
interrompido, provocando o despertar das sensações e
das emoções (poderíamos falar em “cinema de interrupção”?).
O que fica no fim são três filmes, cada um com suas
peculiaridades, que estabelecem um diálogo pelo que
os move: o convite à viagem, a crença na potencialidade
da imagem e a certeza da tradução de um sentimento particular
numa imagem que é compartilhada emocionalmente com o
espectador.
Raphael Mesquita
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