CINDY, THE DOLL IS MINE
Bertrand Bonello, Cindy, The Doll Is Mine, França, 2005

"… But I didn't know we were gonna go there."

Quando Tiresia chega a seu segundo movimento, com o protagonista já cego e amparado por uma jovem desconhecida, acontece na nova casa um ritual de oração, em que o pai desta moça lembra uma passagem do Livro de João. Nela fala-se do momento seguinte à crucificação de Cristo, quando Pilatos ordena que os corpos daqueles três homens sejam retirados de suas cruzes, mas que antes disso se quebrem suas pernas. Cumprindo a tarefa, os soldados ferem e retiram os dois ladrões que acompanhavam Cristo, e tendo percebido que este último já estava de fato morto, não atingem suas pernas. Mas, de acordo com João, "um dos soldados lhe abriu o lado com uma lança, e logo saiu sangue e água". O Pornógrafo e Tiresia, filmes de ferida aberta, descendentes voluntários dessa laceração original, se relacionam diretamente com este sangue derramado. Seja por uma ligação perdida e então restabelecida entre pai e filho, seja pela brutalidade da caça a uma mulher na obra-prima imaginada por Jean-Pierre Léaud, ou na imagem de um parto natural, considerada pelo pornógrafo como desfecho perfeito à sua obra, ou ainda nos olhos furados da primeira Tiresia, e no atropelamento criminoso da segunda, os dois filmes anteriores de Bertrand Bonello lidavam sempre com esta porção da existência onde a paixão só consegue se manifestar pela exposição do corpo (não no mero sentido de exibi-lo, mas sim em dispor a carne às investidas da vida, às investidas de soldados e suas lanças). Cindy, The Doll Is Mine lida, em muitos sentidos, com a outra porção desta mesma existência, que até aqui havia sido parcialmente ignorada. Onde havia corpo há agora espírito, o que se fazia em sangue agora é apenas, e finalmente, água.

Em O Pornógrafo, o personagem de Léaud instruía uma de suas atrizes a não gemer ou dizer qualquer palavra durante o ato sexual, deixando para o próprio diretor a tarefa de buscar a emoção da cena. Este mandamento nunca serviu propriamente ao cinema de Bonello (o corpo já estava, afinal de contas, ferido pela lança do soldado). Houve sempre uma distância entre sua própria disposição interventora e a força natural daquilo que organizava para a encenação, distância que garantia a colaboração entre personagem e diretor, assumida pela materialidade dos filmes como o resultado dessa equação de soma, nunca de subtração. Assim, há um trajeto definido por Bonello entre o pornógrafo e o filho que abandonou a família quando descobriu a profissão do pai, e que ele seja fielmente cumprido ao longo da narrativa, confirmando aquilo que se definira no momento da apresentação desses pólos que precisavam se reunir, não significa a impossibilidade de cada parte contribuir com suas próprias afetividades neste jogo armado. Por isso os filmes que Léaud realiza durante este trajeto se misturam com o filme que Bonello faz a partir dele, sem distinção ou alarde, por isso é possível que o pornógrafo assuma a narração de sua própria história, através do diário que escreve, ou que seu filho empreste à encenação o mesmo silêncio que assume como bandeira em sua vida. Em Tiresia isso é incrivelmente ampliado, porque estamos envolvidos em uma estrutura dramática historicamente estabelecida, um mito grego já absorvido pela literatura, pela psicanálise, e agora pelo cinema. E ainda assim há ali espaço para a dúvida, para o erro, um espaço ocupado pela própria personagem mitológica, despida de sua dimensão etérea, trazida ao chão, e para seu contraponto, o provocador de suas transformações. A emoção esteve sempre em cena, e só dizia respeito a esta. Se Bonello participava dessa empreitada, era tão somente com sua disposição auxiliar, através da música, das imagens extraditadas que eventualmente se misturavam àquele fluxo original de representação (um porco-espinho no jardim, o movimento de lavas vulcânicas, a influência do vento numa floresta).

Essa distância, que tem diversos nomes diferentes, também se chama frieza, e este é um sentimento que não se pode negar diante da obra de Bonello (especialmente se ignorarmos a atribuição exclusivamente negativa que o costume anexou ao termo). No limite, O Pornógrafo e Tiresia eram testemunhas dessas emoções, dos sangramentos contínuos de seus personagens, mas nunca cúmplices. Cindy, The Doll Is Mine quer ultrapassar esta barreira. No curta-metragem, a fotógrafa morena ensaia diversas posições com sua modelo loira, submete-a a situações programadas, poses feitas, mas esta vontade de organizar a encenação já não satisfaz o desejo de relação que a câmera tem com seu objeto. Finalmente, a fotógrafa pede que sua modelo chore, e que sua maquiagem se borre, porque acredita que isso irá comovê-la. Estamos aqui exatamente no ponto em que os dois longas anteriores haviam nos deixado, e as tentativas de choro da modelo loira seguem o mesmo padrão de expressividade que vimos na protagonista do filme imaginário do pornógrafo e na dupla que encarna Tiresia. A motivação é novamente a dilaceração, e se já não temos uma mulher fugindo nua pela floresta do ataque de caçadores ou uma transexual que tem os olhos perfurados por uma tesoura, há em seu lugar um conjunto de bonecas desmembradas. Desta pilha de pedaços de corpos plásticos, a fotógrafa retira uma boneca que não tem as pernas, e a entrega à sua modelo. Bonello coloca em crise sua própria filmografia numa conversa que sintetiza todos os sentimentos com que lidara até ali. A modelo loira abraça o brinquedo deformado, chama-a de "minha bonequinha", e ainda assim não consegue corresponder ao desejo da fotógrafa. Não é mais o sangue, o corpo, que move as afeições do cinema de Bonello. Fotógrafa e modelo dão uma pausa na sessão, comem alguma coisa, trocam olhares carinhosos, e voltam às posições originais, mas agora já sem o brinquedo em cena. Há somente a música (justo ela, que sempre fora o sinal mais evidente da presença do diretor em seus trabalhos, ele mesmo um músico de formação, e que diz fazer "filmes de músico"). A modelo loira escolhe entre os discos espalhados no chão uma música da banda novaiorquina Blonde Redhead, chamada muito propriamente de Doll is Mine, volta ao sofá em que estava e então finalmente chora, escorrendo o rímel preto pelo rosto lívido. Faltava a outra parte do versículo de João, e se já tivemos nossa cota de sangue, Cindy, The Doll Is Mine não podia ser outra coisa senão água, lágrima.

Esse diálogo tão intenso com sua obra pregressa se dá ainda com aquela que Bonello admite ser sua maior obsessão, a questão da duplicidade. Cindy, The Doll Is Mine é um filme de encomenda, produzido para a cadeia de televisão France2 dentro de uma coleção chamada Les Films Plastiques, onde cineastas fariam curtas-metragens inspirados em artistas ou obras de arte contemporâneas (ainda fazem parte da coleção Madonna à Lourdes, dos irmãos Arnaud e Jean-Marie Larrieu, Non, de Laurence Ferreira Barbosa, Les Signes, de Engène Green e um quinto filme a ser dirigido por Mathieu Amalric). Bonello foi buscar referência na obra da fotógrafa americana Cindy Sherman, que se notabilizou com a série Untitled Film Stills, do fim dos anos 70, onde servia de modelo para seu próprio trabalho, encarnando diversas personagens inspiradas nas mulheres dos filmes B. Num trabalho posterior (The Sex Pictures), Sherman sai da frente das câmeras e passa a fotografar bonecos despedaçados em posições de apelo sexual, adicionando genitálias plásticas e próteses aos corpos já existentes. Cindy, The Doll Is Mine coloca estes dois momentos da carreira de Sherman em contato num instante só, nesta sessão de fotografia num estúdio-loft. A modelo loira parece de fato uma doll-face americana típica dos anos 50, com seu cabelo no limite do amarelo com o branco e seu vestidinho sirkinano, interpretada com uma ingenuidade devastadora por Asia Argento (talvez a única atriz do cinema americano filiada exclusivamente ao B, mesmo que o gênero não exista mais enquanto tal); e há ainda o tema das bonecas se repetindo, e os primeiros planos do filme já nos instalam exatamente nesse universo criado por Sherman trinta anos antes. A fotógrafa, morena de cabelos curtos e roupas masculinas, sem um traço de maquiagem sequer, é também feita por Asia Argento – a sinopse oficial do filme diz que esta é "a história de uma morena tirando fotos de uma loira, sendo que as duas estranhamente se parecem".

Bonello enxerga o drama sempre aos pares. Brigam na mesma personalidade a figura de um diretor de filmes pornô e de um pai, e no mesmo filme as imagens feitas dessa briga com as imagens criadas pelo próprio pornógrafo. Ou ainda uma pessoa que carrega consigo os dois sexos, homem e mulher ao mesmo tempo, e que terá sua trajetória também partida em dois, o começo mundano e a elevação espiritual a partir da cegueira. O pareamento é visto, sobretudo, como a possibilidade de um confronto que imponha problemas e obstáculos à manifestação livre desses personagens, algo que eventualmente levará a um debate íntimo sobre os estatutos de sua natureza, sem que no entanto esta oposição seja percebida como a manipulação consciente de um autor que coloca suas criaturas à prova (daí a necessidade daquela distância a que nos referimos anteriormente). Mas o duplo em O Pornógrafo e Tiresia, ao mesmo tempo em que lograva este confronto livre de manipulações exteriores, não fazia mais do que elogiar sua própria dinâmica, de modo que os indivíduos e os sentimentos singulares de cada participante, uma vez aproximados e levados a dialogar, voltavam depois a seus lugares de origem ainda mais seguros de suas identidades. A única figura de exceção é o seqüestrador interpretado por Laurent Lucas em Tiresia, que na segunda parte do filme reaparece em outro personagem, desta vez um padre. O poder dessa figura dentro daquilo que Bonello começava a traçar como seu caminho futuro ficava explícito na imagem-problema do final do longa de 2003, quando aquele mesmo padre, depois de atropelar Tiresia propositalmente, temendo o grau de revoluções que as profecias do mito teriam sobre sua própria fé, era visto num jardim brincando com uma criança bastante nova. Ao mesmo tempo em que apaga a fronteira entre o seqüestrador e o padre, Bonello instala em sua filmografia um signo e um ruído que ainda não tínhamos visto, e é com as risadas da criança em off que o filme termina (o cumprimento da promessa de Léaud em terminar um filme selvagem com uma imagem de renovação, talvez?).

Pois Cindy, The Doll Is Mine repete esta mesma operação que em Tiresia era a exceção, torna-a regra, e Asia Argento está nos dois papéis existentes no filme, como Cindy Sherman quando fotografava a si mesma nos anos 70. Sem uma conseqüência natural, sem uma hierarquia que permita dizer quem é espelho e quem é reflexo, o duplo se recoloca enquanto a ocorrência simultânea de uma paixão original em indivíduos distintos, mas complementares. Já não interessa medir forças, nem muito menos manter íntegra a natureza individual: testemunhar a emoção não basta mais, é preciso vivê-la também. A modelo chora ajoelhada diante da câmera, e não poderia receber da fotógrafa outra atitude que não seu próprio choro. Nenhuma chapa foi batida durante toda a sessão de fotos, e nem poderia ser. Cindy, The Doll Is Mine é a história da descoberta de um amor que consegue se manifestar pelo sangue e pela água, pela dilaceração e pela introspecção, pelo grito e pela lágrima muda. Não há que se buscar a emoção da cena, porque o Bonello que sai deste curta-metragem sabe que encenar é a própria emoção em estado puro. Seu novo filme, o média-metragem My New Picture, parte de um projeto multimídia que envolve ainda o lançamento de um disco, uma instalação e um site na internet, é chamado por ele mesmo de um "álbum de cineasta". Ali, dividido em quatro movimentos, são apresentadas seqüências sem diálogo ou voz off, narração e drama sendo conduzidos exclusivamente pela música (composta pelo próprio diretor). A imagem-símbolo do filme, presente em todas as notícias que o mencionam, traz a atriz Sabrina Seyvecou com fones de ouvido grandes em torno da cabeça e os olhos totalmente transtornados pelas lágrimas. O diretor tem dito que este My New Picture é o filme que mais se aproxima de sua sensibilidade íntima, e não poderíamos esperar nada menos do que isso. Porque sabemos, deste Cindy, The Doll Is Mine, que o cinema de Bertrand Bonello já aprendeu a chorar.


Rodrigo de Oliveira

 

 







"Cause I think it would move me."