"…
But I didn't know we were gonna go there."
Quando Tiresia chega a seu segundo movimento,
com o protagonista já cego e amparado por uma
jovem desconhecida, acontece na nova casa um ritual
de oração, em que o pai desta moça
lembra uma passagem do Livro de João. Nela fala-se
do momento seguinte à crucificação
de Cristo, quando Pilatos ordena que os corpos daqueles
três homens sejam retirados de suas cruzes, mas
que antes disso se quebrem suas pernas. Cumprindo a
tarefa, os soldados ferem e retiram os dois ladrões
que acompanhavam Cristo, e tendo percebido que este
último já estava de fato morto, não
atingem suas pernas. Mas, de acordo com João,
"um dos soldados lhe abriu o lado com uma lança,
e logo saiu sangue e água". O Pornógrafo
e Tiresia, filmes de ferida aberta, descendentes
voluntários dessa laceração original,
se relacionam diretamente com este sangue derramado.
Seja por uma ligação perdida e então
restabelecida entre pai e filho, seja pela brutalidade
da caça a uma mulher na obra-prima imaginada
por Jean-Pierre Léaud, ou na imagem de um parto
natural, considerada pelo pornógrafo como desfecho
perfeito à sua obra, ou ainda nos olhos furados
da primeira Tiresia, e no atropelamento criminoso da
segunda, os dois filmes anteriores de Bertrand Bonello
lidavam sempre com esta porção da existência
onde a paixão só consegue se manifestar
pela exposição do corpo (não no
mero sentido de exibi-lo, mas sim em dispor a carne
às investidas da vida, às investidas de
soldados e suas lanças). Cindy, The Doll Is
Mine lida, em muitos sentidos, com a outra porção
desta mesma existência, que até aqui havia
sido parcialmente ignorada. Onde havia corpo há
agora espírito, o que se fazia em sangue agora
é apenas, e finalmente, água.
Em O Pornógrafo, o personagem de Léaud
instruía uma de suas atrizes a não gemer
ou dizer qualquer palavra durante o ato sexual, deixando
para o próprio diretor a tarefa de buscar a emoção
da cena. Este mandamento nunca serviu propriamente ao
cinema de Bonello (o corpo já estava, afinal
de contas, ferido pela lança do soldado). Houve
sempre uma distância entre sua própria
disposição interventora e a força
natural daquilo que organizava para a encenação,
distância que garantia a colaboração
entre personagem e diretor, assumida pela materialidade
dos filmes como o resultado dessa equação
de soma, nunca de subtração. Assim, há
um trajeto definido por Bonello entre o pornógrafo
e o filho que abandonou a família quando descobriu
a profissão do pai, e que ele seja fielmente
cumprido ao longo da narrativa, confirmando aquilo que
se definira no momento da apresentação
desses pólos que precisavam se reunir, não
significa a impossibilidade de cada parte contribuir
com suas próprias afetividades neste jogo armado.
Por isso os filmes que Léaud realiza durante
este trajeto se misturam com o filme que Bonello faz
a partir dele, sem distinção ou alarde,
por isso é possível que o pornógrafo
assuma a narração de sua própria
história, através do diário que
escreve, ou que seu filho empreste à encenação
o mesmo silêncio que assume como bandeira em sua
vida. Em Tiresia isso é incrivelmente
ampliado, porque estamos envolvidos em uma estrutura
dramática historicamente estabelecida, um mito
grego já absorvido pela literatura, pela psicanálise,
e agora pelo cinema. E ainda assim há ali espaço
para a dúvida, para o erro, um espaço
ocupado pela própria personagem mitológica,
despida de sua dimensão etérea, trazida
ao chão, e para seu contraponto, o provocador
de suas transformações. A emoção
esteve sempre em cena, e só dizia respeito a
esta. Se Bonello participava dessa empreitada, era tão
somente com sua disposição auxiliar, através
da música, das imagens extraditadas que eventualmente
se misturavam àquele fluxo original de representação
(um porco-espinho no jardim, o movimento de lavas vulcânicas,
a influência do vento numa floresta).
Essa distância, que tem diversos nomes diferentes,
também se chama frieza, e este é um sentimento
que não se pode negar diante da obra de Bonello
(especialmente se ignorarmos a atribuição
exclusivamente negativa que o costume anexou ao termo).
No limite, O Pornógrafo e Tiresia
eram testemunhas dessas emoções, dos sangramentos
contínuos de seus personagens, mas nunca cúmplices.
Cindy, The Doll Is Mine quer ultrapassar esta
barreira. No curta-metragem, a fotógrafa morena
ensaia diversas posições com sua modelo
loira, submete-a a situações programadas,
poses feitas, mas esta vontade de organizar a encenação
já não satisfaz o desejo de relação
que a câmera tem com seu objeto. Finalmente, a
fotógrafa pede que sua modelo chore, e que sua
maquiagem se borre, porque acredita que isso irá
comovê-la. Estamos aqui exatamente no ponto em
que os dois longas anteriores haviam nos deixado, e
as tentativas de choro da modelo loira seguem o mesmo
padrão de expressividade que vimos na protagonista
do filme imaginário do pornógrafo e na
dupla que encarna Tiresia. A motivação
é novamente a dilaceração, e se
já não temos uma mulher fugindo nua pela
floresta do ataque de caçadores ou uma transexual
que tem os olhos perfurados por uma tesoura, há
em seu lugar um conjunto de bonecas desmembradas. Desta
pilha de pedaços de corpos plásticos,
a fotógrafa retira uma boneca que não
tem as pernas, e a entrega à sua modelo. Bonello
coloca em crise sua própria filmografia numa
conversa que sintetiza todos os sentimentos com que
lidara até ali. A modelo loira abraça
o brinquedo deformado, chama-a de "minha bonequinha",
e ainda assim não consegue corresponder ao desejo
da fotógrafa. Não é mais o sangue,
o corpo, que move as afeições do cinema
de Bonello. Fotógrafa e modelo dão uma
pausa na sessão, comem alguma coisa, trocam olhares
carinhosos, e voltam às posições
originais, mas agora já sem o brinquedo em cena.
Há somente a música (justo ela, que sempre
fora o sinal mais evidente da presença do diretor
em seus trabalhos, ele mesmo um músico de formação,
e que diz fazer "filmes de músico").
A modelo loira escolhe entre os discos espalhados no
chão uma música da banda novaiorquina
Blonde Redhead, chamada muito propriamente de Doll
is Mine, volta ao sofá em que estava e então
finalmente chora, escorrendo o rímel preto pelo
rosto lívido. Faltava a outra parte do versículo
de João, e se já tivemos nossa cota de
sangue, Cindy, The Doll Is Mine não podia
ser outra coisa senão água, lágrima.
Esse diálogo tão intenso com sua obra
pregressa se dá ainda com aquela que Bonello
admite ser sua maior obsessão, a questão
da duplicidade. Cindy, The Doll Is Mine é
um filme de encomenda, produzido para a cadeia de televisão
France2 dentro de uma coleção chamada
Les Films Plastiques, onde cineastas fariam curtas-metragens
inspirados em artistas ou obras de arte contemporâneas
(ainda fazem parte da coleção Madonna
à Lourdes, dos irmãos Arnaud e Jean-Marie
Larrieu, Non, de Laurence Ferreira Barbosa, Les
Signes, de Engène Green e um quinto filme
a ser dirigido por Mathieu Amalric). Bonello foi buscar
referência na obra da fotógrafa americana
Cindy Sherman, que se notabilizou com a série
Untitled Film Stills, do fim dos anos 70, onde
servia de modelo para seu próprio trabalho, encarnando
diversas personagens inspiradas nas mulheres dos filmes
B. Num trabalho posterior (The Sex Pictures),
Sherman sai da frente das câmeras e passa a fotografar
bonecos despedaçados em posições
de apelo sexual, adicionando genitálias plásticas
e próteses aos corpos já existentes. Cindy,
The Doll Is Mine coloca estes dois momentos da carreira
de Sherman em contato num instante só, nesta
sessão de fotografia num estúdio-loft.
A modelo loira parece de fato uma doll-face americana
típica dos anos 50, com seu cabelo no limite
do amarelo com o branco e seu vestidinho sirkinano,
interpretada com uma ingenuidade devastadora por Asia
Argento (talvez a única atriz do cinema americano
filiada exclusivamente ao B, mesmo que o gênero
não exista mais enquanto tal); e há ainda
o tema das bonecas se repetindo, e os primeiros planos
do filme já nos instalam exatamente nesse universo
criado por Sherman trinta anos antes. A fotógrafa,
morena de cabelos curtos e roupas masculinas, sem um
traço de maquiagem sequer, é também
feita por Asia Argento – a sinopse oficial do filme
diz que esta é "a história de uma
morena tirando fotos de uma loira, sendo que as duas
estranhamente se parecem".
Bonello enxerga o drama sempre aos pares. Brigam na
mesma personalidade a figura de um diretor de filmes
pornô e de um pai, e no mesmo filme as imagens
feitas dessa briga com as imagens criadas pelo próprio
pornógrafo. Ou ainda uma pessoa que carrega consigo
os dois sexos, homem e mulher ao mesmo tempo, e que
terá sua trajetória também partida
em dois, o começo mundano e a elevação
espiritual a partir da cegueira. O pareamento é
visto, sobretudo, como a possibilidade de um confronto
que imponha problemas e obstáculos à manifestação
livre desses personagens, algo que eventualmente levará
a um debate íntimo sobre os estatutos de sua
natureza, sem que no entanto esta oposição
seja percebida como a manipulação consciente
de um autor que coloca suas criaturas à prova
(daí a necessidade daquela distância a
que nos referimos anteriormente). Mas o duplo em O
Pornógrafo e Tiresia, ao mesmo tempo
em que lograva este confronto livre de manipulações
exteriores, não fazia mais do que elogiar sua
própria dinâmica, de modo que os indivíduos
e os sentimentos singulares de cada participante, uma
vez aproximados e levados a dialogar, voltavam depois
a seus lugares de origem ainda mais seguros de suas
identidades. A única figura de exceção
é o seqüestrador interpretado por Laurent
Lucas em Tiresia, que na segunda parte do filme
reaparece em outro personagem, desta vez um padre. O
poder dessa figura dentro daquilo que Bonello começava
a traçar como seu caminho futuro ficava explícito
na imagem-problema do final do longa de 2003, quando
aquele mesmo padre, depois de atropelar Tiresia propositalmente,
temendo o grau de revoluções que as profecias
do mito teriam sobre sua própria fé, era
visto num jardim brincando com uma criança bastante
nova. Ao mesmo tempo em que apaga a fronteira entre
o seqüestrador e o padre, Bonello instala em sua
filmografia um signo e um ruído que ainda não
tínhamos visto, e é com as risadas da
criança em off que o filme termina (o cumprimento
da promessa de Léaud em terminar um filme selvagem
com uma imagem de renovação, talvez?).
Pois Cindy, The Doll Is Mine repete esta mesma
operação que em Tiresia era a exceção,
torna-a regra, e Asia Argento está nos dois papéis
existentes no filme, como Cindy Sherman quando fotografava
a si mesma nos anos 70. Sem uma conseqüência
natural, sem uma hierarquia que permita dizer quem é
espelho e quem é reflexo, o duplo se recoloca
enquanto a ocorrência simultânea de uma
paixão original em indivíduos distintos,
mas complementares. Já não interessa medir
forças, nem muito menos manter íntegra
a natureza individual: testemunhar a emoção
não basta mais, é preciso vivê-la
também. A modelo chora ajoelhada diante da câmera,
e não poderia receber da fotógrafa outra
atitude que não seu próprio choro. Nenhuma
chapa foi batida durante toda a sessão de fotos,
e nem poderia ser. Cindy, The Doll Is Mine é
a história da descoberta de um amor que consegue
se manifestar pelo sangue e pela água, pela dilaceração
e pela introspecção, pelo grito e pela
lágrima muda. Não há que se buscar
a emoção da cena, porque o Bonello que
sai deste curta-metragem sabe que encenar é a
própria emoção em estado puro.
Seu novo filme, o média-metragem My New Picture,
parte de um projeto multimídia que envolve ainda
o lançamento de um disco, uma instalação
e um site na internet, é chamado por ele mesmo
de um "álbum de cineasta". Ali, dividido
em quatro movimentos, são apresentadas seqüências
sem diálogo ou voz off, narração
e drama sendo conduzidos exclusivamente pela música
(composta pelo próprio diretor). A imagem-símbolo
do filme, presente em todas as notícias que o
mencionam, traz a atriz Sabrina Seyvecou com fones de
ouvido grandes em torno da cabeça e os olhos
totalmente transtornados pelas lágrimas. O diretor
tem dito que este My New Picture é o filme
que mais se aproxima de sua sensibilidade íntima,
e não poderíamos esperar nada menos do
que isso. Porque sabemos, deste Cindy, The Doll Is
Mine, que o cinema de Bertrand Bonello já
aprendeu a chorar.
Rodrigo de Oliveira
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