A
Passarela Se Foi, esse belíssimo curta-metragem
de Tsai Ming-liang, que no Brasil pôde ser visto antes
das sessões de Adeus Dragon Inn na Mostra de
São Paulo de 2003, traz uma grande amostragem da obra
do taiwanês que nos anos 90 deixou boquiabertos muitos
críticos e cinéfilos. São apenas vinte minutos, mas
vemos uma condensação de quase tudo que Tsai tinha feito
antes, além de percebermos o elo que o curta estabelece
com o que viria a seguir. Os personagens do filme são
retomados de Que Horas São Aí?, o momento mais
Tati de Tsai, e estariam depois em O Sabor da Melancia.
Esse curta é meio que uma passarela entre os
dois longas.
Mas a passarela se foi, o título avisa, e sem essa referência
espacial a moça que no filme anterior viajara a Paris
não pode reencontrar o vendedor de relógios (Lee Kang-sheng).
Ele, agora, nem vende mais relógios, tampouco sonha
com a moça enquanto assiste a filmes de Truffaut: a
última cena o mostra fazendo teste para ator de filme
pornográfico (quem viu O Sabor da Melancia há
de entender). Num determinado momento, eles até se cruzam,
um indo em cada direção na passagem subterrânea que
se substituiu à passarela que havia sobre a rua. Ela
está de cabeça baixa e não o vê; ele, por sua vez, olha
para trás depois que passa por ela, certamente reconhecendo-a,
mas não vai atrás dela, fica lá no fundo da imagem,
pontinho negro em meio à luz estourada. Um plano extraordinário,
dos mais fortes que Tsai já filmou. Entre a passarela
que cortava o céu e aquela que perfura o chão, alguma
coisa muito melancólica se produziu. O desencontro,
essa premissa na vida dos personagens de Vive l’Amour,
volta com tudo.
A cidade mutante passa pela frente do filme – nas ruas,
nas calçadas, nos vidros. O espaço exterior não é mais
o espelho que reflete a interioridade (como era em Antonioni
nos anos 60, para citar um cineasta tão referencial
para Tsai), e sim o puro reflexo de um espaço sem dono,
uma exterioridade que reflete outra exterioridade. Como
sempre em Tsai, a câmera se fixa na maioria dos planos,
e o efeito é a cidade escorrendo pela tela. É como se
a fixidez fosse a forma de acentuar a passagem – tudo
fica ainda mais rápido, fugaz, uma procissão de vultos:
os carros que riscam o quadro, as pessoas que passam
refletidas nas superfícies envidraçadas, o movimento
coletivo dos transeuntes. No fim é o espaço que se move
sozinho. E a moça não sabe o que fazer, não sabe como
se deslocar por esse espaço, fica perdida. Para onde
ir uma vez que o próprio espaço se desloca e se transforma
à nossa revelia?
Depois da duração de pedra de Vive l’Amour e
O Rio, em A Passarela Se Foi Tsai buscou
uma duração mais leve (em Que Horas São Aí? a
realidade acha uma interseção com o mundo dos fantasmas,
mas a composição ainda é demasiado rígida), assim como
os planos se tornaram menos definitivos e mais precários.
O que faz a cena da discussão com o guarda de trânsito
ser tão magnífica é seu aspecto de plano improvisado,
encontrado ao acaso naquela situação. A falsa distância
da câmera se revela um dos pontos de vista mais imersivos
de toda a obra de Tsai, anterior e posterior. Um drama
que brota do extra-campo, do barulho de trânsito. A
construção dramática é tão minimal quanto preciosa:
a moça desnorteada no meio da discussão, olhando para
os lados, para finalmente perguntar novamente, alheia
ao que o guarda fala: o que diabos ocorreu com a passarela?
Evaporou-se: resposta dada pelo plano final de A
Passarela Se Foi, mostrando aquelas nuvens que dançam
no céu azul. Nesse momento, Tsai radicaliza na abstração
– movimento que retoma em Adeus Dragon Inn, filme-fantasma
por excelência, e agora em Eu Não Quero Dormir Sozinho,
linda fábula sobre a possibilidade de uma vida em conjunto,
mesmo que o lugar dessa vida tenha de ser a água turva
encontrada num prédio abandonado. Ou o céu.
Luiz Carlos Oliveira Jr.
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