Nouvelle
Vague irreverente
A primeira seqüência de Atirem no
Pianista mostra um homem fugindo de outros dois.
A perseguição começa sem que saibamos
do que se trata, e sem ao menos identificar os personagens
(o ambiente escuro contribui para isso). O homem corre
até encontrar de frente com um poste. O choque
inevitável o derruba, mas, num acaso, acaba desviando
os perseguidores. Caído no chão, é
atendido por um quarto homem que, após checar
o estado físico do primeiro o levanta e ambos
caminham juntos pela rua escura. O homem puxa conversa
e pergunta sobre uma possível vontade do outro
em se casar. Com a maior naturalidade os dois começam
a conversar sobre o assunto até que em determinada
esquina, o rapaz vira-se e pergunta para onde aquele
seguirá. Como irão para caminhos diferentes,
se despedem e seguem normalmente. O primeiro após
olhar para trás e checar se está sendo
perseguido, volta a correr e subitamente os dois perseguidores
reaparecem. E assim é este segundo longa de Truffaut.
A espontaneidade, o acaso e o nonsense estão
presentes não só nesta primeira seqüência,
como ao longo do filme. Predomina um humor perspicaz
que se dá através da naturalidade com
que são tratadas as diferentes situações.
Se em Os Incompreendidos Truffaut tinha uma preocupação
narrativa e sobretudo um envolvimento pessoal refletido
numa trama de reconhecimento, em Atirem no Pianista
o que vemos é um jovem diretor que faz um filme
sem maiores expectativas além do entretenimento.
As questões problematizadas no filme – os perseguidores,
o irmão do pianista, o mistério que se
faz em torno deles, sua dupla identidade – funciona
como pano de fundo das cômicas (ainda que por
vezes trágicas) situações presentes.
Ao longo da narrativa a situação dramática
proposta vai perdendo importância até atingir
a inexpressão. Somos conduzidos a não
levar a sério o que se trata, tão pouco
esperar qualquer resolução verossímil.
Truffaut faz um filme cheio de vigor e humor. Ainda
que resista uma certa melancolia na figura do pianista
(Charlie Kohler/Edouard Saroyan, emblematizado por Charles
Aznavour) o tom que perdura no filme é de leveza
e satisfação. Charles Aznavour pode ser
visto como o par antitético de Jean Paul Belmondo
(protagonizando nesta época os filmes de Godard
– Acossado, Uma Mulher É uma Mulher,
Pierrot le fou). Se Belmondo faz um tipo característico,
uma mistura da figura de malandro com sujeito boa pinta,
o tipo simpático, Aznavour ganha a simpatia a
partir da simplicidade. Se Belmondo se ornamenta de
artimanhas (seu gesto típico de passar o dedo
sobre os lábios), Aznavour faz o tipo bonzinho,
o sujeito legal. O primeiro ganha pela esperteza desmascarada,
o segundo pela simplicidade no olhar e nos dedos ágeis
no piano. Se pra Godard, Belmondo atende bem a seus
anseios, inserido em narrativas irregulares que apostam
na provocação, pra Truffaut Aznavour vem
preencher com satisfação uma narrativa
despretensiosa, mas que conta com um certo afeto que
faz com que nos liguemos ao personagem.
Atirem no Pianista mostra toda irreverência
que a Nouvelle Vague parecia relutar. Irreverência
que não é a de Godard político,
é a irreverência gratuita, de um diretor
corajoso, sem medo de errar, que aposta nas mais inusitadas
referências e situações. Deixar
uma narrativa ser conduzida sem a preocupação
do que acontecerá na seqüência seguinte
talvez tenha sido uma das características constantes
nos filmes da Nouvelle Vague, mas cabe aqui ressaltar
de que maneira Truffaut estabelece esta operação
em Atirem no Pianista. Usando a janela 2:35:1
o espaço na tela torna-se imenso para mostrar
apenas a simplicidade sugerida. E apesar de quase não
utilizar luz artificial, há construções
estéticas muito bem estabelecidas, que dão
ganho ao filme sem contrapor o "despropósito"
narrativo. Talvez isso só fosse possível
no começo da década de 60, em que a experimentação
caminhava junto com a preocupação formal
do filme. E Truffaut arrisca fazer planos virtuosos,
enquadramentos precisos, trabalhando uma imagem apurada,
mesclando com deficiência técnica e descontrole
narrativo. Apesar de quase um contra-senso, o filme
torna-se primoroso, pois compartilha suas características
com o espectador, deixando de canja ainda, uma trilha
incidental precisa, que conta com letras, no mínimo,
engraçadas. Truffaut mostra aqui, como se viu
poucas vezes em seu cinema, um filme próximo
do humor, da irreverência e da coragem que o caracterizava
nas críticas da Cahiers du Cinema.
Raphael Mesquita
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