Em O Amor em Cinco Tempos, François Ozon
decide contar uma história de amor a partir de um ponto-de-vista
inusitado. Conduzindo a narrativa através de segmentos
deslocados, o diretor faz o caminho contrário da realidade:
começa com a separação, passa pelo relacionamento e
termina no conhecimento entre dois amantes. Em A
Casa do Lago, é o próprio princípio narrativo que
já enuncia uma obra diferente dos romances hollywoodianos
(apesar de, deixemos claro, o filme nunca deixar de
ser um romance hollywoodiano): o que impede os dois
amantes de ficarem juntos não é a família de cada um,
as posições ideológicas ou mesmo a distância física;
eles simplesmente vivem em tempos distintos, um em 2004,
outro em 2006, ainda que se comuniquem. Nos dois casos,
a impossibilidade de amor é representada pelo mesmo
fator: o tempo que passa, e acaba por destruir tudo.
No filme de François Ozon, somos colocados diretamente
no desfecho inevitável e irreversível de um romance.
No filme de Alejandro Agresti, a distância temporal
acaba por assassinar o protagonista, sendo impossível
de ser banida. “É tarde demais”, a personagem de Sandra
Bullock repete algumas vezes, e parece que, em certo
sentido, os dois filmes reiteram que, desde o início
– ou desde antes do início – já é tarde demais para
se acreditar no amor. O final de A Casa do Lago,
tão abrupto quanto inacreditável, no qual os dois amantes
ficam juntos, acaba por, mais do que desmentir, confirmar
a tese.
Mas a operação utilizada em A Casa do Lago e
Amor em Cinco Tempos é por demais complexa para
que seja reduzida a essa explicação. Ao contrário de
um filme como Irreversível, no qual a estrutura
“de trás para frente” é utilizada unicamente com o intuito
de convencer-nos de que o tempo destrói tudo mesmo,
inclusive o prazer de se assistir a um filme, nas duas
obras aqui criticadas a crença no próprio cinema aponta
para um caminho contrário. Se a realidade é que os relacionamentos
podem terminar apenas em dor, ou se muitas vezes uma
paixão não consegue ser consumada, apenas o cinema tem
a capacidade de recriar o tempo, reconstruir o tempo,
inverter o tempo, e, assim, mudar essa mesma realidade.
Por que um filme sobre um relacionamento fracassado
não pode terminar com um plano do casal se apaixonando,
plano este tão belo quanto clichê, no qual fica claro
que o relacionamento não foi tão fracassado assim (ou,
se foi, que ainda mereceu ser vivido)? Por que, em outro
filme, a distância intransponível entre dois corpos
não pode ser quebrada apenas por um encontro absurdo
em uma casa do lago, na qual a morte é esquecida por
um simples desejo sentimental do roteirista e do diretor?
Nos dois filmes, a reconstrução deste tempo real – a
partir da possibilidade única do aparato cinematográfica
de montar imagens da forma que quiser, ainda que essas
imagens continuem a ser fotografias da realidade, e,
portanto, alguma forma de realidade também – não existe
fora de uma chave metalingüística na qual os códigos
cinematográficos são dominantes. Em A Casa do Lago,
a opção de Agresti é conduzir seu filme com as mesmas
características de um romance clássico-narrativo, a
ponto de quase confundir-nos com apenas mais um deles.
Essa confusão não é arbitrária. Se é de um elogio ao
cinema que sua obra é feita, por que não fazer da mesma
um elogio também ao “mundo do cinema”, aos códigos que,
bem postos, também dão aos romances um novo tom, de
importância acima da vida, acima do tempo? Dentro de
Amor em Cinco Tempos, a proposta não é tão diferente.
Desde a música pop brega italiana ao já citado plano
final, passando por toda uma construção de relacionamento
(mesmo que a partir de sua desconstrução), o filme carrega
em si inúmeras características deste modo industrial
de se fazer filmes tão preponderante e tão combatido.
E é por acreditar nestas características (e não rir
delas, como em outros filmes seus), que o cineasta dá
força a seu filme. As duas obras são, sim, recheadas
de clichês, mas acreditam tanto na utilização deles
que os momentos batidos surgem à tela com novo frescor,
nova forma, nova vida. Alguns “eu te amo” significam
bem mais que outros.
Ainda que os dois filmes sejam compostos como uma reconstrução
do tempo comum, é natural que esta reconstrução não
se dê da mesma forma. François Ozon transforma aquilo
que deveria ser tratado de forma contínua – um relacionamento
– em uma sucessão de momentos estanques, críticos, como
se cada um deles pudesse ser um resumo do todo não mostrado.
O fato de passar os momentos ao contrário da ordem em
que teriam sido vividos aumenta nosso senso de desorientação.
Dessa forma, os personagens deixam de ser modelos para
tornarem-se objetos imprevisíveis. Não temos um antes,
e o depois não é suficiente para nos explicar a ação
corrente na cena (desconhecemos o porquê do casal estar
em crise, assim como a razão pela qual o pai entra em
transe quando nasce seu filho, para mencionar apenas
dois exemplos). A cena transforma-se em um palco aberto,
para o qual podemos entrar de peitos abertos ou simplesmente
virar os olhos. De um modo ou de outro, Ozon exige nossa
participação na construção daquela cena, daquele filme,
nos joga em cada tempo como se a fuga – da psicologia,
da dramaturgia, do cinema – já não fosse possível. Apaixonamo-nos
não pelos personagens (aqueles contínuos desconhecidos),
mas pelo sentimento de se apaixonar. Ao jogar fora o
tempo de antes e ao afastar-se do tempo de depois, o
cineasta nos deixa com o agora, o sentimento em estado
puro, sem explicações ou julgamentos.
Alejandro Agresti opera pelo mecanismo contrário. O
diretor transforma aquilo necessariamente estanque (a
distância instransponível entre os tempos, aumentada
pelo fato de ser, por causa disso, impossível vermos
os dois protagonistas que se apaixonam no mesmo plano)
em uma relação palpável, uma união de épocas, uma evolução
amorosa. Ao contrário de As Horas, porém, seu
material de trabalho não é constituído apenas de truques
de montagem baratos para colar o não-colável. Desde
o início, Agresti parece saber que, para seu filme funcionar,
é necessário deixar de chamar atenção para si e colocar
todo o foco no filme (interessante pensar que, mesmo
com uma premissa fantástica como esta, seu filme é o
oposto de um roteiro de Charlie Kaufman). Sua câmera
eternamente movimentada é menos a afirmação de um diretor
virtuoso do que a tentativa de, em um plano, unir o
personagem dentro dele e aquele que está fora, como
se a câmera buscasse, dentro da cena, aquilo que pertence
a dois anos antes ou depois dela. Quando os rodopios
são exagerados, é exatamente porque, nestes momentos,
o diretor não encontra o momento exato de parar, e,
assim, também o tempo futuro (ou passado) que busca.
Mesmo assim, é singular – e preciso – o modo como conduz
a narrativa. Quando uma árvore cresce em frente à Sandra
Bullock ou quando a montagem transforma o caminho individual
dos dois personagens pela cidade em um caminho conjunto,
é como se, no fundo, tudo fosse vivido conjuntamente,
e nós, também, estivéssemos com eles, neste caminho
entre tempos, neste apaixonar-se para além das regras
da física.
O Amor em Cinco Tempo e A Casa do Lago
certamente não são obras-primas, mas a crítica não precisa
dissecar a obra quando os elementos favoráveis são superlativos.
Que interessa a péssima escalação de protagonistas no
filme de Agresti ou a cena de sexo absolutamente deslocada
no filme de Ozon quando os momentos e escolhas erradas
ou desnecessárias pouco importam dentro da obra inteira?
Os dois cineastas nos mostram que talvez seja preciso
parar – ou até mesmo voltar – o tempo para recuperar
a beleza de andar de mãos dadas, apaixonar-se e redescobrir
a vida, ainda que esta possa acabar amanhã, ainda que
esta acabe todo dia.
Leonardo Levis
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