PARALELAS E TRANSVERSAIS
Anjos do Sol, de Rudi Lagemann
O Maio Amor do Mundo, de Cacá Diegues


Anjos do Sol, Brasil, 2006
O Maior Amor do Mundo, Brasil, 2006

Curiosas diferenças ligam O Maior Amor do Mundo e Anjos do Sol. Ambos tratam de um Brasil contemporâneo. O primeiro marcado pelo revisionismo e o segundo pelo imediatismo. Cacá Diegues mais uma vez aposta num suposto realismo a que ele se pretende. Um filme sobre as relações. Um filme humanista. Humanismo de novela do Manoel Carlos. Realidade retratada, aproximação dos personagens, identificação conseguida pelo sentimental e não pelo social, como se acredita a priori. Nada de novo. O velho Cacá repete formulas, se utiliza das mesmas ferramentas, e tudo aquilo que seus detratores já estão fartos de acusar. Mas assim como nas suas atitudes pessoais (especialmente no que tange a questão dos rumos do cinema brasileiro), o diretor é teimoso. E se seus filmes vendem (e vendem), pra que mudar? Em time que ganha não se mexe.

Rudi Lagemann também opta pelo realismo. Realismo social. Nu e cru. Filme-denúncia, que traz à tona fatos existentes, porém mascarados e escondidos. Reaviva a realidade obscura brasileira. A partir da protagonista Maria (Fernanda Carvalho), somos conduzidos a uma viagem nebulosa e cruel. Vendida pelos pais para cafetões, Maria passa de mão em mão, sofrendo constantes abusos físicos, que lhe provocam danos morais e psicológicos. Anjos do Sol tenta mostrar um caminho “natural” de desenvolvimento das mulheres retratadas (vítimas da prostituição infantil). E parte desde crianças, quando começam a exercer, forçadamente, seu ofício. E mais do que crianças, Rudi deixa claro que são crianças inocentes. A construção de personalidade e caráter vai sendo criada a partir das situações vivenciadas. Um filme sintomático, interna e externamente. Seja por causa das garotas e seus desdobramentos, seja por causa da necessidade de se fazer o filme.

A câmera de Rudi Lagemann mostra toda uma inquietação com a situação. Ainda que em grande parte do filme o diretor acabe caindo em virtuosismos desnecessários – com movimentos de câmera que partem de paisagens ou quadros construídos sem função dramática para chegar ao objeto retratado, demonstrando certo tique de linguagem – podemos ver uma câmera-urgente, que se movimenta o tempo todo tentando dar conta daquela realidade. As informações todas precisam estar presentes no quadro, e os travellings e panorâmicas contribuem para isso. A montagem acelerada e a eliminação do tempo de respiro provocam uma sensação um tanto angustiante. É o diretor Rudi Lagemann passando sua aflição e extravasando a necessidade de denúncia. Mas no meio de tudo isso as referências a Sergio Leone ou Kalatozov aparecem apenas como indumentária estilística, deslocadas de um todo da obra.

Nem sempre Rudi Lagemann acerta. Na verdade, quase nunca. A condução narrativa é forçada e truncada, a protagonista a quem o diretor deposita todas as suas apostas não corresponde, em termos dramáticos, satisfatoriamente. A postura do diretor com os demais personagens é bastante inconstante, pois parece haver certo medo na dosagem de envolvimento. Lagemann parece poupar os outros personagens a fim da protagonista Maria permanecer sempre no centro. Até mesmo na (forte) seqüência em que vemos uma das colegas de Maria sendo morta – arrastada por um carro a que estava presa –, a sensação é de choque muito mais pelo medo do mesmo ocorrer com Maria, do que pelo envolvimento que se cria com a coadjuvante assassinada.

No entanto, quando chegamos a O Maior Amor do Mundo, as perspectivas são outras. Do filme urgente, importante e necessário (classificações baratas) chegamos ao filme humanista, em que os anseios dos personagens são identificados com os nossos. Sem entrar em discussões que remontam a significações de realismo ou humanismo (no cinema ou fora dele), tomamos os termos pelo seu senso comum. E o humanismo de Cacá Diegues é mais uma vez o humanismo de novela das oito. Protagonista classe alta, dívida consigo próprio e com a realidade que durante algum tempo ignora, tormento psicológico proporcionado pela proximidade da morte (causada por um câncer). Esse é o velho Cacá, que além de não saber posicionar a câmera, de filmar mal, de escolher enquadramentos errados, de privilegiar o óbvio, aposta nos mais marcados vetores narrativos. É impressionante a capacidade de não apresentar nada de novo. É a fórmula básica que (não) funciona mais uma vez. O resumo do filme: personagem doente que reavalia seus valores e entra em contato com a realidade dura que sua origem pobre não deixou escapar. Nada mais clichê. E em Deus é Brasileiro, assim como em grande parte de sua obra, Cacá já mostrou não saber lidar com os clichês. Mas curiosamente o seu modo de filmar tem traços característicos, afinal são poucos que imaginam que do fake se chegue à realidade-humanista.

O personagem de José Wilker (que tem uma interpretação regular no filme) sofre da dívida. Rico, mora fora do país e retorna para receber uma condecoração. O contato com a terra natal e a possibilidade de morte iminente provocam uma reestruturação em seu ideário e projeto de vida. Ao passar pelo processo de reavaliação, o personagem se depara com verdades escondidas, injustiças, desigualdade, valores morais independente de classe social. A volta as origens é também um processo de redescobrimento de si mesmo, e o encontro com suas raízes maternais desperta a angústia de sua incompatibilidade com o mundo a que agora pertence. Ora, assim sendo, é no morro que sua moral está bem guardada. Seu processo investigativo e de descoberta (do sexo inclusive) se dá exatamente na favela, na pobreza, e com pessoas que pertencem a este (novo) meio.

Seria uma possibilidade vermos o protagonista como uma espécie de alter ego de Cacá Diegues? Seria este também um processo pelo qual o diretor atravessa? Estaria Cacá buscando suas origens no Cinema Novo a fim de trazer à tona questões perdidas no tempo, assim como revoluções estéticas e narrativas? A triste resposta é não. Ao menos pelo material que apresenta em seus últimos filmes. O que podemos ver é sim um diretor que engana. Deixa a sensação do novo, ao mesmo tempo em que provoca discursos inflamados defendendo um continuísmo. O Maior Amor do Mundo é espaço da velha geração.

E o diálogo que estabelece com Anjos do Sol é viabilizado pela demasiada preocupação com o ser humano. Ambos os filmes tratam de uma suposta fragilidade do homem, que deixa de dar conta de si próprio no mundo contemporâneo. As meninas-abusadas, futuras mulheres-putas, pedem socorro no filme de Rudi Lagemann. Há um certo clamor que desperta questões que extrapolam políticas públicas de tratamento do excluído, abrindo espaço para o apego sentimental. O filme trabalha uma questão delicada que antecede o social. O que é necessário é acabar com esta situação. Ainda que o final do filme aponte as conseqüências do abuso infantil, culminando na marginalização de indivíduos no contexto social, que necessitam de codinomes e máscaras para sobreviver, o tom de imediatismo é presente em Anjos do Sol. Não há planos governamentais ou ajudas internacionais que justifiquem um adiamento na solução do problema.

E esse apego humanista de Anjos do Sol opera como sintoma, ao contrário de O Maior Amor do Mundo, em que o apego humanista opera como convencimento. Através da identificação, afinal a classe média e média alta freqüentadora das salas de cinema, carrega o peso da dívida com a marginalização, exclusão, distanciamento social. E para estes, é necessário parar de olhar para as estrelas e dirigir o olhar à realidade que o cerca. Não é esta a função de José Wilker no filme? O astrofísico, quando descobre o câncer (que inevitavelmente pode ser lido como uma série de metáforas), cai em si e depara-se com um processo de descobrimento.

Ainda que Anjos do Sol cresça quando colocado ao lado de O Maior Amor do Mundo, ainda ficamos no aguardo de um cinema que se entregue à realidade brasileira, sem medo das conseqüências, operando seu papel social, mas com talento. Proporcionando um choque espectatorial a partir do material fílmico e não apenas despertando nossa atenção (e tensão) pelo conteúdo.


Raphael Mesquita