Curiosas diferenças ligam O Maior Amor do
Mundo e Anjos do Sol. Ambos tratam de um
Brasil contemporâneo. O primeiro marcado pelo revisionismo
e o segundo pelo imediatismo. Cacá Diegues mais uma
vez aposta num suposto realismo a que ele se pretende.
Um filme sobre as relações. Um filme humanista. Humanismo
de novela do Manoel Carlos. Realidade retratada, aproximação
dos personagens, identificação conseguida pelo sentimental
e não pelo social, como se acredita a priori. Nada de
novo. O velho Cacá repete formulas, se utiliza das mesmas
ferramentas, e tudo aquilo que seus detratores já estão
fartos de acusar. Mas assim como nas suas atitudes pessoais
(especialmente no que tange a questão dos rumos do cinema
brasileiro), o diretor é teimoso. E se seus filmes vendem
(e vendem), pra que mudar? Em time que ganha não se
mexe.
Rudi Lagemann também opta pelo realismo. Realismo social.
Nu e cru. Filme-denúncia, que traz à tona fatos existentes,
porém mascarados e escondidos. Reaviva a realidade obscura
brasileira. A partir da protagonista Maria (Fernanda
Carvalho), somos conduzidos a uma viagem nebulosa e
cruel. Vendida pelos pais para cafetões, Maria passa
de mão em mão, sofrendo constantes abusos físicos, que
lhe provocam danos morais e psicológicos. Anjos do
Sol tenta mostrar um caminho “natural” de desenvolvimento
das mulheres retratadas (vítimas da prostituição infantil).
E parte desde crianças, quando começam a exercer, forçadamente,
seu ofício. E mais do que crianças, Rudi deixa claro
que são crianças inocentes. A construção de personalidade
e caráter vai sendo criada a partir das situações vivenciadas.
Um filme sintomático, interna e externamente. Seja por
causa das garotas e seus desdobramentos, seja por causa
da necessidade de se fazer o filme.
A câmera de Rudi Lagemann mostra toda uma inquietação
com a situação. Ainda que em grande parte do filme o
diretor acabe caindo em virtuosismos desnecessários
– com movimentos de câmera que partem de paisagens ou
quadros construídos sem função dramática para chegar
ao objeto retratado, demonstrando certo tique de linguagem
– podemos ver uma câmera-urgente, que se movimenta o
tempo todo tentando dar conta daquela realidade. As
informações todas precisam estar presentes no quadro,
e os travellings e panorâmicas contribuem para
isso. A montagem acelerada e a eliminação do tempo de
respiro provocam uma sensação um tanto angustiante.
É o diretor Rudi Lagemann passando sua aflição e extravasando
a necessidade de denúncia. Mas no meio de tudo isso
as referências a Sergio Leone ou Kalatozov aparecem
apenas como indumentária estilística, deslocadas de
um todo da obra.
Nem sempre Rudi Lagemann acerta. Na verdade, quase nunca.
A condução narrativa é forçada e truncada, a protagonista
a quem o diretor deposita todas as suas apostas não
corresponde, em termos dramáticos, satisfatoriamente.
A postura do diretor com os demais personagens é bastante
inconstante, pois parece haver certo medo na dosagem
de envolvimento. Lagemann parece poupar os outros personagens
a fim da protagonista Maria permanecer sempre no centro.
Até mesmo na (forte) seqüência em que vemos uma das
colegas de Maria sendo morta – arrastada por um carro
a que estava presa –, a sensação é de choque muito mais
pelo medo do mesmo ocorrer com Maria, do que pelo envolvimento
que se cria com a coadjuvante assassinada.
No entanto, quando chegamos a O Maior Amor do Mundo,
as perspectivas são outras. Do filme urgente, importante
e necessário (classificações baratas) chegamos ao filme
humanista, em que os anseios dos personagens são identificados
com os nossos. Sem entrar em discussões que remontam
a significações de realismo ou humanismo (no cinema
ou fora dele), tomamos os termos pelo seu senso comum.
E o humanismo de Cacá Diegues é mais uma vez o humanismo
de novela das oito. Protagonista classe alta, dívida
consigo próprio e com a realidade que durante algum
tempo ignora, tormento psicológico proporcionado pela
proximidade da morte (causada por um câncer). Esse é
o velho Cacá, que além de não saber posicionar a câmera,
de filmar mal, de escolher enquadramentos errados, de
privilegiar o óbvio, aposta nos mais marcados vetores
narrativos. É impressionante a capacidade de não apresentar
nada de novo. É a fórmula básica que (não) funciona
mais uma vez. O resumo do filme: personagem doente que
reavalia seus valores e entra em contato com a realidade
dura que sua origem pobre não deixou escapar. Nada mais
clichê. E em Deus é Brasileiro, assim como em
grande parte de sua obra, Cacá já mostrou não saber
lidar com os clichês. Mas curiosamente o seu modo de
filmar tem traços característicos, afinal são poucos
que imaginam que do fake se chegue à realidade-humanista.
O personagem de José Wilker (que tem uma interpretação
regular no filme) sofre da dívida. Rico, mora fora do
país e retorna para receber uma condecoração. O contato
com a terra natal e a possibilidade de morte iminente
provocam uma reestruturação em seu ideário e projeto
de vida. Ao passar pelo processo de reavaliação, o personagem
se depara com verdades escondidas, injustiças, desigualdade,
valores morais independente de classe social. A volta
as origens é também um processo de redescobrimento de
si mesmo, e o encontro com suas raízes maternais desperta
a angústia de sua incompatibilidade com o mundo a que
agora pertence. Ora, assim sendo, é no morro que sua
moral está bem guardada. Seu processo investigativo
e de descoberta (do sexo inclusive) se dá exatamente
na favela, na pobreza, e com pessoas que pertencem a
este (novo) meio.
Seria uma possibilidade vermos o protagonista como uma
espécie de alter ego de Cacá Diegues? Seria este
também um processo pelo qual o diretor atravessa? Estaria
Cacá buscando suas origens no Cinema Novo a fim de trazer
à tona questões perdidas no tempo, assim como revoluções
estéticas e narrativas? A triste resposta é não. Ao
menos pelo material que apresenta em seus últimos filmes.
O que podemos ver é sim um diretor que engana. Deixa
a sensação do novo, ao mesmo tempo em que provoca discursos
inflamados defendendo um continuísmo. O Maior Amor
do Mundo é espaço da velha geração.
E o diálogo que estabelece com Anjos do Sol é
viabilizado pela demasiada preocupação com o ser humano.
Ambos os filmes tratam de uma suposta fragilidade do
homem, que deixa de dar conta de si próprio no mundo
contemporâneo. As meninas-abusadas, futuras mulheres-putas,
pedem socorro no filme de Rudi Lagemann. Há um certo
clamor que desperta questões que extrapolam políticas
públicas de tratamento do excluído, abrindo espaço para
o apego sentimental. O filme trabalha uma questão delicada
que antecede o social. O que é necessário é acabar com
esta situação. Ainda que o final do filme aponte as
conseqüências do abuso infantil, culminando na marginalização
de indivíduos no contexto social, que necessitam de
codinomes e máscaras para sobreviver, o tom de imediatismo
é presente em Anjos do Sol. Não há planos governamentais
ou ajudas internacionais que justifiquem um adiamento
na solução do problema.
E esse apego humanista de Anjos do Sol opera
como sintoma, ao contrário de O Maior Amor do Mundo,
em que o apego humanista opera como convencimento. Através
da identificação, afinal a classe média e média alta
freqüentadora das salas de cinema, carrega o peso da
dívida com a marginalização, exclusão, distanciamento
social. E para estes, é necessário parar de olhar para
as estrelas e dirigir o olhar à realidade que o cerca.
Não é esta a função de José Wilker no filme? O astrofísico,
quando descobre o câncer (que inevitavelmente pode ser
lido como uma série de metáforas), cai em si e depara-se
com um processo de descobrimento.
Ainda que Anjos do Sol cresça quando colocado
ao lado de O Maior Amor do Mundo, ainda ficamos
no aguardo de um cinema que se entregue à realidade
brasileira, sem medo das conseqüências, operando seu
papel social, mas com talento. Proporcionando um choque
espectatorial a partir do material fílmico e não apenas
despertando nossa atenção (e tensão) pelo conteúdo.
Raphael Mesquita
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