O CINEASTA DA SUPERAÇÃO
Elogio de Luís Felipe Scolari, o Felipão

O cineasta da superação

Como alguém já lembrou nessa mesma revista, se a última copa do mundo fosse um festival de cinema, haveria muitos prêmios. O futebol é um esporte coletivo, mas que sempre busca o destaque individual. E se fosse preciso escolher uma figura que marcou presença na Alemanha, eu não teria a menor dúvida em apontar: Luis Felipe Scolari, ou Felipão, ou Big Phill... Sim, aquele mesmo que ganhou, recentemente, um certo prêmio imaginário – e não-oficial, vale lembrar – de "canastrão mais chato". Ele dirigiu a seleção mais empolgante de se acompanhar, Portugal (segundo votação dos internautas num concurso promovido pela FIFA). Felipão não só ajudou seu time a participar dos melhores jogos da competição, como também protagonizou cenas inesquecíveis (o trenzinho do treinador após a vitória contra a Holanda foi a imagem mais bonita e pitoresca da copa – e virou até capa de uma revista de cinema – assim como a imagem dele agradecendo cheio de lágrimas a torcida portuguesa, com as bandeiras de Portugal e Brasil nas duas mãos continua sendo a lembrança mais terna da Euro 2004). Mas minha escolha parte principalmente de uma convicção – compartilhadas por poucos, ou nenhum colega contracampista – de que nunca um treinador de futebol foi tão importante em uma competição de futebol. Por tudo que fez antes, durante e depois das partidas, por sua capacidade de atrair as câmeras e influenciar a alma de um espetáculo, nenhuma outra figura mostrou-se, ao mesmo tempo, tão protagonista e realizador, personagem e autor.

De qualquer maneira, não cabe aqui analisar a competência de Scolari como técnico (não é um artigo para Placar). Também deve-se lembrar que embora eu o considere uma figura humana, sincera e emotiva (muito longe da canastrice a qual o condenaram), não o conheço pessoalmente, e o que me interessa é o personagem "Felipão", o folclórico. O que realmente interessa, aliás, não é exatamente sua personalidade, mas sua capacidade em transpo-la para dentro do campo, moldando os jogos à sua imagem. Imagem que transformou o futebol num espetáculo épico, com contornos dramáticos nunca antes vistos.

Na maioria das vezes a análise do espetáculo futebolístico fica restrito à questões técnicas, até mesmo pirotécnicas (firulas, malabarismos, jogadas de efeito...), ou táticas. Em muitos casos, a intensidade de um jogo é calculada pelo número de gols, como se um 4x4 fosse emocionante por si só, e um 0x0 aborrecido por si só. Por outro lado, são esquecidos outros aspectos essenciais, como a valentia, a entrega em campo, a capacidade de superar os limites, etc. (em geral, o brasileiro ainda está preso à idéia de que sempre o time mais técnico precisa vencer). Além, é claro, da atividade da torcida, que a televisão nunca consegue captar em sua real amplitude. A importância de um treinador, como personagem de um grande espetáculo de futebol (e também como realizador deste espetáculo, funções que Felipão assume com genialidade), está inevitavelmente ligada a estas questões.

Quando se analisa um espetáculo de futebol, não é somente a técnica que conta, não o virtuosismo puro de seus protagonistas, mas a emoção em todos os seus aspectos. Nessa visão, um jogo com cotação bola preta para muitos, como por exemplo o Holanda e Portugal desta última copa, pode ganhar uma avaliação 4 estrelas. Tudo é uma questão de expandir o olhar, encontrar novos personagens/autores. Ver jogadores se matando em campo, correndo atrás da bola como se fosse um prato de comida, ou uma mulher com belas pernas, ver a superação em seu último grau, seres humanos entregando sua última gota de suor, no limite da exaustão humana, é uma emoção tão forte e bonita quanto ver um chute preciso ou um drible circense. E, aos puristas do futebol-arte, que pensam (com certa razão) que um espetáculo de futebol não pode se resumir apenas a grandes emoções épicas, vale a lembrança da copa retrasada, saudosa época em que nosso scratch ainda jogava com alma. Puristas, lembrem de um jogo como Brasil e Inglaterra (incluído por este redator na lista da Contracampo como uma das principais obras do ano de 2002), do qual Felipão foi o principal personagem e realizador. Que incrível fusão entre vibração e técnica, organização e raça, superação e consciência! Foi um jogo com a cara de Felipe, onde todos elementos dramáticos se juntaram de uma vez só.

Já no primeiro tempo, houve duas grandes emoções. Primeira emoção, a falha infeliz de Lúcio – justamente ele, o mal-amado pela crítica por nunca ter jogado no centro do país e justamente no momento em que o Brasil se apresentava bem, com tudo aparentemente sob o controle; segunda emoção, uma jogada sensacional, inacreditável entre Ronaldinho e Rivaldo. Era a técnica aparecendo, mas uma técnica que resultou de um carrinho certeiro, ou seja, de uma atitude vibrante e corajosa. No segundo tempo, novamente a técnica, mas chegando de forma inusitada, num lance absolutamente curioso: o gol de cobertura de Ronaldinho, e a humilhação do goleiro adversário. E assim se encaminhava a história do jogo, como o justo final feliz do embate dramático entre mocinho e vilão: o mocinho inicia bem a luta, depois perde o rumo e começa a apanhar. O mocinho continua apanhando, apanha demais até, o vilão resolve se gabar (a pose nojentinha de Beckham antes de levar o carrinho que resultou no gol, a arrogância do goleiro antes de se ver surpreendido pela genialidade adversária). Até, que, enfim, quando já não parece haver mais chance para o mocinho, este reage, recupera forças não se sabe de onde, e distribui socos e patadas triunfais, voltando a subjugar seu adversário com brio e autoridade... O segundo gol de Ronaldinho até parecia nosso Deus ex machina. Parecia...

Acontece que este não era um filme clássico. Era um filme de Felipão. A film by Luis Felipe Scolari. Não bastam as emoções tradicionais, é preciso mais, mais drama, mais sofrimento, mais superação... E por isso Ronaldinho, a encarnação brasileira da técnica, o principal homem da virada, é subitamente expulso. Perdemos nosso mocinho! – grita o espectador. Agora acabou-se, não iremos ganhar! – é a ilusão que todo cineasta minimamente capaz tenta passar ao seu público. Ele o engana, para disfarçar uma vitória sem emoções: está difícil, talvez não vai dar, pessoal, mas esperem um pouco, acreditem sempre... (Quem viu a obra-prima Portugal x Holanda nesta copa certamente lembra da cara de Felipão quando Costinha foi expulso, sua expressão desolada, que a câmera captou na hora certa: pois foi como se o técnico dissesse exatamente isto ao torcedor, como se ele tentasse despistar do público o previsível happy end). E é aí que o cineasta da superação, no alto da sua maestria, valoriza sua vitória, arranca nossos sentimentos mais profundos: o Brasil/mocinho fecha-se atrás, num final aterrorizante, agüenta todos os golpes/cruzamentos do adversário, que parte para cima, chuveirando incessamente nossa área, uma pressão insuportável, mas nós lá, corajosos, corajosos como Lúcio, o patinho feio, que depois do seu erro torna-se o melhor homem em campo, um herói colossal, insuperável nas jogadas aéreas, agüentando firme as investidas inimigas...

Mais emoção do que isso, impossível! Mais emoção estraga!

E que fazia o maestro Felipão? O maestro estava omnipresente, não em corpo, claro, mas em espírito, agitando seus atores, distribuindo-os no espaço, como um diretor maluco, como um Coppola enfurecido, atento a cada detalhe, cada mínimo e invisível detalhe, cobrando, xingando, gesticulando... A câmera o mostra o tempo todo à beira do gramado, ele pedindo para o jogo acabar, levantando a torcida com gestos (que costuma gritar ensandecida seu nome), berrando com o juiz, ofendendo o técnico adversário (nessa copa seus embates com o apático Van Basten e o aborrecido Dommenech foram antológicos), quase invadindo o campo... Felipão é o cineasta da participação absoluta. Nada lhe escapa desse espetáculo glorioso! Seus atores se entregam por completo, eles morreriam em cena se fosse preciso, preenchendo o campo cênico com precisão (os coletivos táticos são ensaios) ou improvisação (orientações do diretor à beira do campo), mas nunca sem emoção. Todo ator de Scolari é um Benjamin Willard lançado na selva. É um Martin Sheen sem ataque cardíaco.

O "director Scolari" instituiu, dentro e fora das quatro linhas, os princípios que todo artista deve carregar: técnica e coração. Quando a técnica já não resolve mais, fica o coração. É melhor uma obra determinada e honesta do que um virtuosismo vazio.

Claro, muita gente com má vontade irá dizer: mas ele é apenas o técnico! Ele apenas fica na beira do campo! Ele não é o único responsável pelo espetáculo!... Bom, é um ponto de vista. Mas, agora, eu pergunto: se sua influência não é assim tão decisiva, por que então, diabos, todas equipes que ele dirige se apresentam dessa maneira? Por que todas suas equipes terminam em confrontos como estes, batalhas épicas, onde só se falta ver o sangue respingar na torcida? Por que todo jogador em sua mão se transforma num guerreiro enfurecido? Quando ele estava numa equipe chamada Criciúma, seu trabalho foi emocionante. Quando estava numa equipe chamada Grêmio, foi ainda mais emocionante, até para a torcida rival (o redator que vos escreve é colorado). Idem com Seleção Brasileira. Idem com Portugal. Não interessa a cidade, não interessa o time, não interessa o continente ou a competição, pode ser Campeonato Gaúcho com neblina e lama ou Copa do Mundo com 1 bilhão de espectadores – um espetáculo com Felipão sempre será feito a sua imagem, com lágrimas e suor, viradas e surpresas. Em uma palavra: drama. Não há dúvida de que Felipão é um técnico-autor, talvez a maior encarnação viva do técnico-autor, que dá não só á sua equipe, mas ao espetáculo como um todo (é impressionante sua capacidade de mobilizar torcida e opinião pública, fazer a sociedade inteira se integrar ao jogo e sentir-se parte do espetáculo) um estilo próprio.

É a cara de Felipão. Quem não gosta, que distribua prêmios imaginários.


Bolívar Torres