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MICHAEL DUDOK DE WIT
O holandês voador |
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Michael Dudok
de Wit, nascido na Holanda em 1952, alterna trabalhos
pessoais com outros feitos sob encomenda. Em catorze anos,
realizou apenas quatro curtas-metragens, além de propagandas
comerciais – como a recente A Life, para a United
Airlines. Embora não tenha produzido sequer trinta minutos
de imagens, elas são suficientes para colocar o autor
bissexto no rol dos maiores gênios da animação – com Winsor
McCay, Norman McLaren, Jan Svankmajer, Ub Iwerks, Tex
Avery, Chuck Jones –, como prova o extraordinário, belo
e ousado The Aroma of Tea, exibido na última edição
do Anima Mundi.
Os curtas-metragens do diretor se resumem a Tom Sweep
(1992), O Monge e o Peixe (1994), Pai e Filha
(2000) e The Aroma of Tea (2006). No aspecto temático,
eles se caracterizam por explorar a ligação que existe
entre o humano e o divino (a procura do homem por Deus),
a passagem inexorável do tempo, o efêmero e o eterno,
o processo de vida-morte-renascimento, as memórias que
perduram mesmo quando o corpo físico desaparece. Quanto
à forma, Michael Dudok de Wit desenha com traços simples,
despojados, limpos e concisos, abusa de elipses espaço-temporais,
sujeita os movimentos dos elementos em cena à música onipresente
e que preenche e conduz toda a narrativa – a predileção
do cineasta recai sobre o compositor barroco Archangelo
Corelli –, a história tênue e quase desprovida de ação
como suporte para reflexões metafísicas, abstratas e filosóficas.
O Monge e o Peixe, Pai e Filha, A Life
e The Aroma of Tea se articulam ao redor da transformação
simbólica e metafórica de único objeto (ou forma) concreto:
o peixe, a roda de bicicleta, o avião e a esfera, respectivamente.
A obsessão do simpático e rechonchudo monge em capturar
o peixe, assim, transcende as – aparentemente – simples
trapalhadas e o humor ingênuo (porém encantador) de uma
pescaria mal-resolvida. O Monge e o Peixe, ao contrário,
remete à busca incessante pelo sagrado, o desejo humano
pela comunhão espiritual com Deus e com o universo: Ichtys,
palavra grega que significa “peixe”, é acrônima da frase
Iesus Christus Theou Yicus Soter, ou seja, “Jesus
Cristo Filho do Deus Salvador”. Símbolo do cristianismo
primitivo, utilizado para que os fiéis da nova religião,
perseguidos por Roma, se identificassem, foi substituído
pelo crucifixo e pelo sinal da cruz em 400 d.C., com o
intuito de estabelecer e de reforçar o martírio, a morte
e a ressurreição de Jesus como pilares fundamentais da
doutrina que se institucionalizava com o aval dos imperadores
Constantino e Teodósio, sobretudo a partir do Concílio
de Nicéia, em 325 d.C.
Se a cruz representa a morte e sofrimento, o peixe aponta
para a vida, para a dimensão puramente espiritual e transcendente
de Jesus. Dessa forma, o monge, na verdade, procura o
Cristo anterior à ortodoxia católica, que não lavou os
pecados do mundo com o próprio sangue, mas que trouxe
esperança, fraternidade e amor para todos os injustiçados
e oprimidos. Jesus que, em sua fragilidade humana, funde-se
aos demais seres vivos através da compaixão.
Em Pai e Filha, a roda de bicicleta é o objeto
que, transmutado, indica o ciclo da vida – nascer, crescer,
reproduzir-se, envelhecer, morrer e, por fim (ou por início),
renascer.
Em apenas oito minutos, Michael Dudok de Wit conta a saga
da personagem que, ainda criança, vê o pai pela última
vez. Ano após ano, e sempre de bicicleta, retorna ao lugar
da despedida, esperando que ele volte. Assim como a música
ao longo da narrativa – repetição incessante da mesma
melodia, que varia, tal qual o Bolero de Ravel,
rítmica e harmonicamente –, Pai e Filha se estrutura
a partir de seqüências a princípios idênticas entre si,
que, entretanto, se diferenciam na medida em que são preenchidas
pelo Tempo (o devir heraclitiano). Desse modo, enquanto
a roda gira, os anos passam, cada corte introduzindo nova
elipse temporal. Sobre a bicicleta, a filha envelhece:
nós a acompanhamos estudante, com o primeiro namorado,
já casada e com filhos, idosa. Trajetória que mostra não
somente a degradação física, como também, e principalmente,
os sentimentos e a memória e as lembranças cristalizam,
ponte entre o passado, o presente e o futuro, visível
na sucessão emotiva das estações do ano e das paisagens
holandesas que ambientam o filme.
Igualmente afetivo é a propaganda feita para a United
Airlines, A Life. Michael Dudok de Wit, de maneira
explícita, aproveita a imagética de Pai e Filha e brinca
com seus próprios clichês: por meio de elipses temporais,
da infância à velhice, surgem na tela as diversas fases
da vida que o personagem atravessa. A bicicleta reaparece,
contudo o anúncio se centra no símbolo da companhia aérea:
com o mote de que a United Airlines apenas realiza o desejo
de seus consumidores, o diretor não trata o avião enquanto
objeto concreto para satisfazer a necessidade dos espectadores
a que se dirige, e sim como metáfora para os sonhos que
os movem a alcançar objetivos (os acontecimentos que o
protagonista vive no comercial, na prática, independem
da presença do avião).
O conceito simbólico da esfera fundamenta a mais recente
obra-prima de Michael Dudok de Wit, The Aroma of Tea
(melhor filme da 14a edição do Anima Mundi),
com a qual o diretor rompe com figuração e a narrativa
ainda presentes nos curtas-metragens anteriores e parte
rumo ao abstracionismo, utilizando-se, para tanto, do
movimento, do corte e da composição do quadro.
Até Copérnico lançar a Terra ao espaço, Galileu observar
os astros com sua luneta, Kepler formular as leis dos
movimentos orbitais e Newton criar a arcabouço físico-matemático
que explica e rege o universo, predominou a cosmogonia
de Ptolomeu e de Aristóteles, segundo a qual o sistema
celeste se organiza em noves esferas concêntricas, imutáveis
e pré-determinadas, obras de um Criador.
Aristóteles - para quem a Terra se encontra no centro
do universo, com planetas e estrelas girando ao seu redor
presos a sólidos círculos de cristal -, por sua vez, baseia-se
em Empédocles, filósofo pré-socrático, que tenta unir
o Ser, de Parmênides (representado pela Esfera, o Todo
indivisível, monístico), com o devir, de Heráclito (o
rio cujas águas jamais são as mesmas). Para Empédocles, o universo se apresenta como
esfera, mas contendo os quatro elementos indestrutíveis
que a formam: terra, água, fogo e ar. Uno, e ao mesmo
tempo múltiplo, com as forças do Amor e do Ódio que promovem
o movimento entre as substâncias primordiais.
De Ptolomeu, Aristóteles, Empédocles, Parmênides, voltamos
a Xenófanes de Colofão, primeiro a propor a esfera como
símbolo para Deus, uma vez que ela representa a perfeição
formal: além de ser a metáfora geométrica do infinito,
concretiza uma curva sem princípio nem fim.
Em The Aroma of Tea, a esfera está no pequeno ponto
errante que vaga pela imensidão do branco, vez por outra
cortadas por formas aleatórias e por outros pontos, que
se movimentam mecanicamente ao som do Concerto Grosso
opus 6, no. 2 e no. 12, de Corelli, assim como no
misterioso círculo que serve de destino final para o aroma
do chá. Retomando o cristianismo de O Monge e o Peixe,
as esferas de The Aroma of Tea são o alfa e o ômega,
o início e o fim, o nascimento e a morte. Elas aludem
ao sagrado, a Deus, e ao mesmo tempo remetem ao homem,
visto que a forma esférica não existe na natureza: trata-se
de criação eminentemente humana, que sinaliza para a capacidade
de pensamento abstrato exclusiva à espécie.
Desse modo, a viagem do aroma do chá em direção à esfera
branca remete ao desejo humano de comunhão espiritual
com seu Criador ou, talvez, ao aspecto divino que existe
em cada homem. Despojado, conciso e rigoroso, construído
sobre o ritmo musical (a música celeste de Leibniz, com
a qual Deus rege e organiza o universo?), The Aroma
of Tea dispensa artifícios narrativos e se vale apenas
da mais pura linguagem cinematográfica para estruturar
o material imagético.
O pequeno ponto errante jamais sai de quadro: de um plano
a outro, Michael Dudok de Wit usa o corte em movimento
para descrever a trajetória da esfera através do espaço,
de sorte que não há continuidade (que existiria caso o
ponto saísse e entrasse pelas bordas da tela, por exemplo),
e sim elipses que não permitem identificar o tempo decorrido
entre os cortes e os locais exatos onde as imagens se
fixam. A explicação filosófica para o cálculo diferencial
inventado por Leibniz – concomitantemente a Newton – sugere
que 0 representa o homem, enquanto 1 simboliza Deus, com
os números infinitesimais dispostos entre ambos em respeito
à evolução espiritual que o primeiro deve percorrer para
se encontrar com o segundo. The Aroma of Tea, ao
mostrar o começo e o final da jornada, porém fragmentando
a duração e os caminhos da mesma (sem referências com
as quais se guiar), abre-se também para o ilimitado, para
a dimensão microscópica, contínua e eterna do devir.
O título deste artigo cita e homenageia a ópera homônima
de Richard Wagner, também conhecida como O Navio Fantasma.
Nada menos wagneriano, todavia, que o cinema de Michael
Dudok de Wit. Pela economia de recursos, aliada à potência
expressiva, seus curtas-metragens estão mais próximos
de Mozart, Satie ou Webern. Cabe então a pergunta: Divino
Dudok?
Paulo Ricardo de Almeida |
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O Monge e o Peixe
Pai e Filha
Pai e Filha
The aroma of tea
The aroma of tea
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