Existem
duas seqüências-chaves no filme Zuzu Angel: a
primeira delas se passa no julgamento de Stuart Angel
Jones (Daniel de Oliveira), filho de Zuzu. Não podendo
comparecer à ocasião por estar morto, é sua família
(em especial sua mãe) e seu advogado que responderão
ao processo. Mesmo sendo Stuart absolvido por falta
de provas, Zuzu Angel (Patrícia Pillar), indignada pela
situação absurda, se levanta e, aos gritos, em pleno
tribunal, protesta acusando “os assassinos do filho
de estarem disfarçados de juízes”. Seguindo a mesma
linha de tensão dramática, a segunda seqüência referida
diz respeito a um outro protesto engajado por Zuzu.
Agora de maneira racional e cínica, ela propõe em um
de seus desfiles de moda em Nova York uma coleção toda
baseada em questões políticas. Ao contrário das comuns
estampas chamativas e cortes elaborados, esta coleção
vem simples, com um visual apagado e as roupas marcadas
por desenhos de pássaros enjaulados e garotos militares.
No fim, a “santa” Zuzu, toda vestida de negro e com
um véu na cabeça, desfila com a foto de Stuart. Descritas
as duas seqüências, se coloca a pergunta: Por que essas
seqüências podem ser consideradas como seqüências-chave?
E a resposta está no fato delas habitarem os principais
indicativos da mudança ideológica pela qual a personagem-título
passa. Mais do que a afirmação no final do filme – o
famoso “eu mudei”, que o diretor Sergio Rezende não
hesitou em colocar –, estas seqüências marcam a figura
emblemática e militante que foi Zuzu Angel. Isto, pois,
como se imagina, a trajetória política da estilista
só despertou a partir do desaparecimento do filho. Mas
não são especificamente as seqüências referidas que
nos interessam (até pela baixíssima qualidade de ambas),
e sim seus desdobramentos imediatos existentes no filme.
Em contíguo às respectivas seqüências, vemos Zuzu Angel
comentando as repercussões de seus protestos. Na primeira,
com seu advogado (Alexandre Borges) e na segunda com
sua colega e modelo-fetiche Elke (Luana Piovani). E
se as duas seqüências antecedentes eram representativas
da construção e mutação de Zuzu Angel-personagem, as
seqüências seguintes são representativas da visão e
direcionamento de Zuzu Angel-filme. Em ambas
a personagem aparece comentando os referidos acontecimentos
com um sorrisinho no rosto. Um sorrisinho que tenta
passar um sabor de vitória. Um sorrisinho que sai meio
sem querer. Um sorrisinho que inventa um ícone mais
interessado em se auto-promover, ao invés de pensar,
de fato, nas questões políticas ou pessoais, sentimentais,
afetivas. A Zuzu Angel de Sergio Rezende é uma farsa.
O filme mexe com questões ainda não naturalizadas pela
cultura brasileira. A temática do período militar no
Brasil, marcado por perseguições, desaparecimentos,
torturas e mortes, e suas conseqüências imediatas e
futuras são ainda feridas não cicatrizadas que carecem
de um tratamento especial e cuidadoso. A relação distanciamento-aproximação
do fato histórico tem no cinema peculiaridades que devem
ser levadas em conta. O distanciamento – temporal e
crítico – é possível, pois já se vão cerca de 40 anos.
A idéia de aproximação é facilmente viabilizada por
figuras particulares que passam por um tratamento romântico.
E se existem as duas possibilidades, elas (ainda) não
podem ser desvinculadas. Seja na política ou na economia,
mas sobretudo na cultura e tradição, o país ainda carrega
as mazelas do período militar. E um sorrisinho não pode
aparecer gratuitamente. Irônico. Sem propósito.
Pensando na relação traumática com a ditadura militar
existente no Brasil, podemos nos reportar a outro evento,
agora em esfera mundial, que de certo modo dialoga com
o primeiro devido às marcas deixadas e à não absorção
completa do evento: a 2ª Guerra Mundial. Se no Brasil
o cinema contemporâneo, com alguma freqüência, aborda
o período militar, seja como pano de fundo, seja como
tentativa de compreensão, ou meramente ilustração, tal
fenômeno é também recorrente quando pensamos na 2ª Guerra
Mundial e o cinema contemporâneo no mundo (EUA, Europa,
Japão). E podemos observar, entre a extensa produção
da temática referida, que grande parte se depara com
a questão da tortura, dos tratamentos de choques, das
mortes inumanas. E introduzo isso para chegarmos a um
artigo publicado pelos Cahiers du Cinéma
(ed. 120), escrito pelo então crítico (e já cineasta)
Jacques Rivette, intitulado “Da abjeção”. O artigo é
focado em um dos filmes que justamente toca na questão
da Segunda Guerra, em especial nos campos de concentração:
Kapò, de Gillo Pontecorvo.
Tomando como ponto de partida a adaptação de uma frase
de Luc Moullet feita por Godard, que dizia que “os travellings
são uma questão de moral”, Rivette analisa esse movimento
de câmera com precisão e crítica. Acusando Pontecorvo
de não se interrogar sobre o tema retratado, Rivette
condena o cineasta “ao mais profundo desprezo” por terminar
o enquadramento de seu travelling em um cadáver
da personagem que se suicidou atirando-se em um arame
farpado eletrificado. E quando pensamos em Zuzu Angel,
o texto de Rivette estabelece diálogo e reverberações
em alguns momentos. Inicialmente pois, como Pontecorvo,
Sergio Rezende parece ter negligenciado se questionar
sobre as implicações de seu filme. Se houve uma pesquisa
árdua de investigação da vida de Zuzu, ou um trabalho
consistente na reconstrução de épocas e fatos, quando
se trata da questão cinematográfica, ou das imbricações
inerentes a todo filme – uma vez que inevitavelmente
se coloca em diálogo com o espectador, valendo-se de
um aparato de transmissão conteudística – Zuzu Angel
parece isento. E lavar as mãos nessa hora resulta
em sorrisinhos indesejados. Mas não é somente a irresponsabilidade
que liga Sergio Rezende ao assunto do texto de Rivette.
Quando este acusa o filmar-além, questionando aquilo
que se filma, mais uma vez notamos ecos no filme de
Rezende. Promovendo um espetáculo de horror, o cineasta
não nos priva das imagens de tortura. Alberto (Caio
Junqueira), na posição do homem vitruviano de Da Vinci,
nu, é espancado. Após passar por uma sessão de choques
elétricos, é atirado na cela, que não contém uma gota
d´água para matar a sede comum após os choques (como
o filme nos avisa). Stuart tem sal grosso atirado aos
olhos. É amarrado e arrastado por um carro. Os dois,
encapuzados, são torturados juntos. E a referência a
Magritte – o quadro Os Amantes (Les Amants,
1928) – mostra um diretor isento de qualquer posicionamento
crítico. Como em Pontecorvo, Rezende parece estar desprovido
da dúvida. Dúvida que, como já falara Rivette, provoca
o questionamento do quê e do como filmar. Magritte,
pintor da sugestão, não pode ser ressignificado em tais
circunstâncias.
Mas se por um lado Sérgio Rezende extrapola os limites
do filmar, não podemos dizer que Zuzu Angel é um filme
que se mostra. Pelo contrário, é um filme medroso. Que,
se ora promove a espetacularização do evento – e estamos
falando das torturas –, ora se esconde atrás de planos
fora de foco, como na seqüência em que Stuart e Sônia
(Leandra Leal) transam, antes da partida dela para o
exterior. Se a cena deveria estar presente, e inocências
à parte, sabemos que num filme como esse a presença
da “cena de amor” é inevitável, o diretor se enche de
escrúpulos poupando a nudez dos atores. O corpo de Caio
Junqueira nu contrasta com o corpo (nu?) fora de foco
de Leandra Leal. Se não bastasse, o “amor” que chega
ao espectador é interditado por barreiras físicas, como
as grades da cama que distanciam e escondem o filme.
Diante desse espetáculo publicitário, Sergio Rezende
tropeça até mesmo num dos erros que, através do filme,
condena. Aproveitando-se da polarização maniqueísta,
que separa militares e civis, uma das seqüências que
marcam o (mau) caráter dos militares é quando o Brigadeiro
(Othon Bastos) lança um comentário ácido pra cima de
Zuzu Angel, sugerindo que o alarde criado pela estilista
em cima do desaparecimento do filho tinha um interesse
muito mais pessoal (de vender roupas) do que político
ou ideológico. E, ironicamente, a impressão que fica
é a de que Sergio Rezende se apropria de uma temática
polêmica e delicada pensando também em questões pessoais
(de vender filmes). Afinal, mais do que uma reflexão
ou simplesmente uma ilustração de um momento importante,
o que nos fica é um espetáculo promocional de cinema.
Raphael Mesquita
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