ZUZU ANGEL
Sérgio Rezende, Brasil, 2006

Existem duas seqüências-chaves no filme Zuzu Angel: a primeira delas se passa no julgamento de Stuart Angel Jones (Daniel de Oliveira), filho de Zuzu. Não podendo comparecer à ocasião por estar morto, é sua família (em especial sua mãe) e seu advogado que responderão ao processo. Mesmo sendo Stuart absolvido por falta de provas, Zuzu Angel (Patrícia Pillar), indignada pela situação absurda, se levanta e, aos gritos, em pleno tribunal, protesta acusando “os assassinos do filho de estarem disfarçados de juízes”. Seguindo a mesma linha de tensão dramática, a segunda seqüência referida diz respeito a um outro protesto engajado por Zuzu. Agora de maneira racional e cínica, ela propõe em um de seus desfiles de moda em Nova York uma coleção toda baseada em questões políticas. Ao contrário das comuns estampas chamativas e cortes elaborados, esta coleção vem simples, com um visual apagado e as roupas marcadas por desenhos de pássaros enjaulados e garotos militares. No fim, a “santa” Zuzu, toda vestida de negro e com um véu na cabeça, desfila com a foto de Stuart. Descritas as duas seqüências, se coloca a pergunta: Por que essas seqüências podem ser consideradas como seqüências-chave? E a resposta está no fato delas habitarem os principais indicativos da mudança ideológica pela qual a personagem-título passa. Mais do que a afirmação no final do filme – o famoso “eu mudei”, que o diretor Sergio Rezende não hesitou em colocar –, estas seqüências marcam a figura emblemática e militante que foi Zuzu Angel. Isto, pois, como se imagina, a trajetória política da estilista só despertou a partir do desaparecimento do filho. Mas não são especificamente as seqüências referidas que nos interessam (até pela baixíssima qualidade de ambas), e sim seus desdobramentos imediatos existentes no filme.

Em contíguo às respectivas seqüências, vemos Zuzu Angel comentando as repercussões de seus protestos. Na primeira, com seu advogado (Alexandre Borges) e na segunda com sua colega e modelo-fetiche Elke (Luana Piovani). E se as duas seqüências antecedentes eram representativas da construção e mutação de Zuzu Angel-personagem, as seqüências seguintes são representativas da visão e direcionamento de Zuzu Angel-filme. Em ambas a personagem aparece comentando os referidos acontecimentos com um sorrisinho no rosto. Um sorrisinho que tenta passar um sabor de vitória. Um sorrisinho que sai meio sem querer. Um sorrisinho que inventa um ícone mais interessado em se auto-promover, ao invés de pensar, de fato, nas questões políticas ou pessoais, sentimentais, afetivas. A Zuzu Angel de Sergio Rezende é uma farsa.

O filme mexe com questões ainda não naturalizadas pela cultura brasileira. A temática do período militar no Brasil, marcado por perseguições, desaparecimentos, torturas e mortes, e suas conseqüências imediatas e futuras são ainda feridas não cicatrizadas que carecem de um tratamento especial e cuidadoso. A relação distanciamento-aproximação do fato histórico tem no cinema peculiaridades que devem ser levadas em conta. O distanciamento – temporal e crítico – é possível, pois já se vão cerca de 40 anos. A idéia de aproximação é facilmente viabilizada por figuras particulares que passam por um tratamento romântico. E se existem as duas possibilidades, elas (ainda) não podem ser desvinculadas. Seja na política ou na economia, mas sobretudo na cultura e tradição, o país ainda carrega as mazelas do período militar. E um sorrisinho não pode aparecer gratuitamente. Irônico. Sem propósito.

Pensando na relação traumática com a ditadura militar existente no Brasil, podemos nos reportar a outro evento, agora em esfera mundial, que de certo modo dialoga com o primeiro devido às marcas deixadas e à não absorção completa do evento: a 2ª Guerra Mundial. Se no Brasil o cinema contemporâneo, com alguma freqüência, aborda o período militar, seja como pano de fundo, seja como tentativa de compreensão, ou meramente ilustração, tal fenômeno é também recorrente quando pensamos na 2ª Guerra Mundial e o cinema contemporâneo no mundo (EUA, Europa, Japão). E podemos observar, entre a extensa produção da temática referida, que grande parte se depara com a questão da tortura, dos tratamentos de choques, das mortes inumanas. E introduzo isso para chegarmos a um artigo publicado pelos Cahiers du Cinéma (ed. 120), escrito pelo então crítico (e já cineasta) Jacques Rivette, intitulado “Da abjeção”. O artigo é focado em um dos filmes que justamente toca na questão da Segunda Guerra, em especial nos campos de concentração: Kapò, de Gillo Pontecorvo.

Tomando como ponto de partida a adaptação de uma frase de Luc Moullet feita por Godard, que dizia que “os travellings são uma questão de moral”, Rivette analisa esse movimento de câmera com precisão e crítica. Acusando Pontecorvo de não se interrogar sobre o tema retratado, Rivette condena o cineasta “ao mais profundo desprezo” por terminar o enquadramento de seu travelling em um cadáver da personagem que se suicidou atirando-se em um arame farpado eletrificado. E quando pensamos em Zuzu Angel, o texto de Rivette estabelece diálogo e reverberações em alguns momentos. Inicialmente pois, como Pontecorvo, Sergio Rezende parece ter negligenciado se questionar sobre as implicações de seu filme. Se houve uma pesquisa árdua de investigação da vida de Zuzu, ou um trabalho consistente na reconstrução de épocas e fatos, quando se trata da questão cinematográfica, ou das imbricações inerentes a todo filme – uma vez que inevitavelmente se coloca em diálogo com o espectador, valendo-se de um aparato de transmissão conteudística – Zuzu Angel parece isento. E lavar as mãos nessa hora resulta em sorrisinhos indesejados. Mas não é somente a irresponsabilidade que liga Sergio Rezende ao assunto do texto de Rivette. Quando este acusa o filmar-além, questionando aquilo que se filma, mais uma vez notamos ecos no filme de Rezende. Promovendo um espetáculo de horror, o cineasta não nos priva das imagens de tortura. Alberto (Caio Junqueira), na posição do homem vitruviano de Da Vinci, nu, é espancado. Após passar por uma sessão de choques elétricos, é atirado na cela, que não contém uma gota d´água para matar a sede comum após os choques (como o filme nos avisa). Stuart tem sal grosso atirado aos olhos. É amarrado e arrastado por um carro. Os dois, encapuzados, são torturados juntos. E a referência a Magritte – o quadro Os Amantes (Les Amants, 1928) – mostra um diretor isento de qualquer posicionamento crítico. Como em Pontecorvo, Rezende parece estar desprovido da dúvida. Dúvida que, como já falara Rivette, provoca o questionamento do quê e do como filmar. Magritte, pintor da sugestão, não pode ser ressignificado em tais circunstâncias.

Mas se por um lado Sérgio Rezende extrapola os limites do filmar, não podemos dizer que Zuzu Angel é um filme que se mostra. Pelo contrário, é um filme medroso. Que, se ora promove a espetacularização do evento – e estamos falando das torturas –, ora se esconde atrás de planos fora de foco, como na seqüência em que Stuart e Sônia (Leandra Leal) transam, antes da partida dela para o exterior. Se a cena deveria estar presente, e inocências à parte, sabemos que num filme como esse a presença da “cena de amor” é inevitável, o diretor se enche de escrúpulos poupando a nudez dos atores. O corpo de Caio Junqueira nu contrasta com o corpo (nu?) fora de foco de Leandra Leal. Se não bastasse, o “amor” que chega ao espectador é interditado por barreiras físicas, como as grades da cama que distanciam e escondem o filme.

Diante desse espetáculo publicitário, Sergio Rezende tropeça até mesmo num dos erros que, através do filme, condena. Aproveitando-se da polarização maniqueísta, que separa militares e civis, uma das seqüências que marcam o (mau) caráter dos militares é quando o Brigadeiro (Othon Bastos) lança um comentário ácido pra cima de Zuzu Angel, sugerindo que o alarde criado pela estilista em cima do desaparecimento do filho tinha um interesse muito mais pessoal (de vender roupas) do que político ou ideológico. E, ironicamente, a impressão que fica é a de que Sergio Rezende se apropria de uma temática polêmica e delicada pensando também em questões pessoais (de vender filmes). Afinal, mais do que uma reflexão ou simplesmente uma ilustração de um momento importante, o que nos fica é um espetáculo promocional de cinema.


Raphael Mesquita

 

 






Patrícia Pillar e Daniel de Oliveira em Zuzu Angel