Transamérica,
e o título não poderia ser melhor. O transe, o trânsito,
o transgênero – pense num sufixo qualquer para o prefixo
“trans” e ele terá sua aplicação validada. Mas de todos
os possíveis, justo a América. Fica claro desde muito
cedo que Bree é apenas uma mulher ansiosa para que seu
corpo se aproxime da idéia que ela sempre teve de si
mesma. Transexual mesmo, nesta história, é o país. A
primeira cena nos mostra em tela cheia o trecho de um
vídeo em que uma fonoaudióloga ensina como falar com
voz feminina, dedo sobre a língua, boca bem aberta,
até descobrirmos a mulher que existe em nossas cordas
vocais, e é como se essa fosse uma lição para todo o
universo roxo e rosa do filme. Se haverá alguma diferenciação
ao longo desse trajeto, ela nunca se dará por oposição:
ainda que o peso do preconceito seja volta e meia alardeado,
não há em nenhum momento de Transamérica a ocorrência
de uma idéia de normalidade, à qual Bree e toda a galeria
de tipos que invadem o filme pudessem ser alternativos
ou marginais. Instalada num mundo que é o seu próprio,
esta personagem B tornada A pode se dedicar aos sentimentos
que realmente lhe interessam, sua aceitação pessoal,
o auto-conhecimento, o confronto com as novas possibilidades
que a mudança de sexo trará. Isto tudo num road movie
aditivado com todos os ingredientes necessários a esse
tipo de viagem: seja no modo como leva a relação com
seu filho recém descoberto, seja no trajeto íntimo de
suas transformações, seja no tratamento que Duncan Tucker
dá a tudo isto, há em Transamérica uma imensa
vontade de caretice.
Daí a necessidade de envolver Bree nesse mundo maquiado.
Era preciso garantir a esta personagem alguma segurança
para atravessar esse caminho da masculinidade à feminilidade,
já que todo o resto lhe inspira insegurança e rejeição.
Fugir do panfleto puro e simples da luta contra a discriminação,
ativismo necessário mas perigosamente rasteiro, para
cair (conscientemente) em outro, igualmente arriscado,
de singularização da experiência. Bree chega com seu
filho Toby à casa de uma conhecida, onde passarão a
noite antes de seguir viagem. Na casa está acontecendo
uma pequena festa em que participam vários transexuais,
de todos os tipos. Toby se encanta com os convidados,
mas Bree – nesse ponto ainda sem assumir a paternidade,
disfarçando ser uma missionária católica – alerta-o
que aquelas não passam de pessoas sintéticas, fabricadas,
falsas. Algo no tom de Bree diz que esta não é apenas
a continuação do jogo de esconde-esconde sobre sua real
identidade, mas sim a própria dúvida sobre o que fazer
dela. A protagonista se pergunta como partir dessa fabricação,
dessa construção artificial, para chegar à naturalização,
a um estágio onde a origem sintética se perca em nome
de uma verdade adquirida irrefutável, e também o filme
se faz estas mesmas perguntas. Entregar-se ao desejo
dessa viagem transformadora utilizando as fórmulas fabricadas
e usadas há anos para esse mesmo fim, o road movie em
que o que está na beira da estrada importa tanto quanto
o que está correndo nela, o conhecimento de ambientes
externos que ajudam no conhecimento dos ambientes internos
e mais toda a lista de exigências do gênero. Não são
poucos os momentos em que sentimos o cheiro de plástico
em Transamérica, sobretudo nos personagens secundários
que mãe e filho vão encontrando pelo caminho, uma estranha
trupe de excessos (hippie caroneiro, psicóloga zen,
índio romântico, família saída do armário de uma drag
queen) que rapidamente se apresentam apenas como contraponto
à essa necessidade de legitimação da protagonista enquanto
depositário preferencial das verdades do filme.
A narrativa de cores berrantes e sem muita combinação
termina justamente num tom de cinza, e há nisso uma
espécie de vitória. Depois de toda a maratona pela América
transexual, o que Bree deseja mesmo é fazer um lanchinho
para seu filho e chamar sua atenção para que não coloque
os pés sujos sobre a mesa de centro da sala. Para Transamérica,
a mudança de sexo foi sempre um detalhe, pois de sua
realização nunca se teve dúvida real. Importava mesmo
encaixar Bree nesse outro país, o oficial, onde já não
houvesse a possibilidade de cercá-la de cuidados especiais:
não bastava apenas querer ser careta, era preciso conquistar
este direito, justificar o pedido por um pouco de medianidade
nesta vida sempre tão distante de qualquer média. Essa
conformação final aparecia anunciada em cada uma das
situações que Duncan Tucker forjava, mas em dois rápidos
momentos o caminho conservador e limpo para o qual rumávamos
pareceu se contaminar de uma pequena sujeira, que escapava
da vontade de caretice ou do abraço apaziguador da comédia
fácil (basta lembrar da condição estranha do filho,
longe da representação clássica, um michê vagabundo
e interesseiro cujo maior sonho é fazer carreira no
cinema pornô californiano, e em como nenhuma das situações
de conflito com esta construção turbulenta é encarada
de frente, sendo escondida sempre por trás de uma piada).
São os dois momentos em que Bree – mas na verdade Felicity
Huffman, e “coragem” ou “talento” estão longe de poder
definir a grandeza de sua atuação – expõe seu corpo,
e assim, encadeia uma série de considerações a seu respeito
que todas as cenas de Transamérica conseguiam
atingir apenas parcialmente. Primeiro, o jeito atabalhoado
de urinar na beira de uma estrada, a dificuldade em
se abaixar com o vestido apertado, e a revelação de
seu pênis por debaixo de toda aquela produção feminina.
Depois, já operada, Bree deitada na banheira de sua
casa, nua, tocando-se e descobrindo seu novo corpo com
um discreto e emocionado sorriso nos lábios. Nesses
dois pequenos planos Transamérica consegue escapar
de seu rumo cinzento e abre-se um mundo de cores e contrastes
que não caberiam em nenhuma caixa de hambúrguer feliz
nem muito menos num verso meloso da Amazing Grace.
Rodrigo de Oliveira
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