TRANSAMÉRICA
Duncan Tucker, Transamerica, EUA, 2005

Transamérica, e o título não poderia ser melhor. O transe, o trânsito, o transgênero – pense num sufixo qualquer para o prefixo “trans” e ele terá sua aplicação validada. Mas de todos os possíveis, justo a América. Fica claro desde muito cedo que Bree é apenas uma mulher ansiosa para que seu corpo se aproxime da idéia que ela sempre teve de si mesma. Transexual mesmo, nesta história, é o país. A primeira cena nos mostra em tela cheia o trecho de um vídeo em que uma fonoaudióloga ensina como falar com voz feminina, dedo sobre a língua, boca bem aberta, até descobrirmos a mulher que existe em nossas cordas vocais, e é como se essa fosse uma lição para todo o universo roxo e rosa do filme. Se haverá alguma diferenciação ao longo desse trajeto, ela nunca se dará por oposição: ainda que o peso do preconceito seja volta e meia alardeado, não há em nenhum momento de Transamérica a ocorrência de uma idéia de normalidade, à qual Bree e toda a galeria de tipos que invadem o filme pudessem ser alternativos ou marginais. Instalada num mundo que é o seu próprio, esta personagem B tornada A pode se dedicar aos sentimentos que realmente lhe interessam, sua aceitação pessoal, o auto-conhecimento, o confronto com as novas possibilidades que a mudança de sexo trará. Isto tudo num road movie aditivado com todos os ingredientes necessários a esse tipo de viagem: seja no modo como leva a relação com seu filho recém descoberto, seja no trajeto íntimo de suas transformações, seja no tratamento que Duncan Tucker dá a tudo isto, há em Transamérica uma imensa vontade de caretice.

Daí a necessidade de envolver Bree nesse mundo maquiado. Era preciso garantir a esta personagem alguma segurança para atravessar esse caminho da masculinidade à feminilidade, já que todo o resto lhe inspira insegurança e rejeição. Fugir do panfleto puro e simples da luta contra a discriminação, ativismo necessário mas perigosamente rasteiro, para cair (conscientemente) em outro, igualmente arriscado, de singularização da experiência. Bree chega com seu filho Toby à casa de uma conhecida, onde passarão a noite antes de seguir viagem. Na casa está acontecendo uma pequena festa em que participam vários transexuais, de todos os tipos. Toby se encanta com os convidados, mas Bree – nesse ponto ainda sem assumir a paternidade, disfarçando ser uma missionária católica – alerta-o que aquelas não passam de pessoas sintéticas, fabricadas, falsas. Algo no tom de Bree diz que esta não é apenas a continuação do jogo de esconde-esconde sobre sua real identidade, mas sim a própria dúvida sobre o que fazer dela. A protagonista se pergunta como partir dessa fabricação, dessa construção artificial, para chegar à naturalização, a um estágio onde a origem sintética se perca em nome de uma verdade adquirida irrefutável, e também o filme se faz estas mesmas perguntas. Entregar-se ao desejo dessa viagem transformadora utilizando as fórmulas fabricadas e usadas há anos para esse mesmo fim, o road movie em que o que está na beira da estrada importa tanto quanto o que está correndo nela, o conhecimento de ambientes externos que ajudam no conhecimento dos ambientes internos e mais toda a lista de exigências do gênero. Não são poucos os momentos em que sentimos o cheiro de plástico em Transamérica, sobretudo nos personagens secundários que mãe e filho vão encontrando pelo caminho, uma estranha trupe de excessos (hippie caroneiro, psicóloga zen, índio romântico, família saída do armário de uma drag queen) que rapidamente se apresentam apenas como contraponto à essa necessidade de legitimação da protagonista enquanto depositário preferencial das verdades do filme.

A narrativa de cores berrantes e sem muita combinação termina justamente num tom de cinza, e há nisso uma espécie de vitória. Depois de toda a maratona pela América transexual, o que Bree deseja mesmo é fazer um lanchinho para seu filho e chamar sua atenção para que não coloque os pés sujos sobre a mesa de centro da sala. Para Transamérica, a mudança de sexo foi sempre um detalhe, pois de sua realização nunca se teve dúvida real. Importava mesmo encaixar Bree nesse outro país, o oficial, onde já não houvesse a possibilidade de cercá-la de cuidados especiais: não bastava apenas querer ser careta, era preciso conquistar este direito, justificar o pedido por um pouco de medianidade nesta vida sempre tão distante de qualquer média. Essa conformação final aparecia anunciada em cada uma das situações que Duncan Tucker forjava, mas em dois rápidos momentos o caminho conservador e limpo para o qual rumávamos pareceu se contaminar de uma pequena sujeira, que escapava da vontade de caretice ou do abraço apaziguador da comédia fácil (basta lembrar da condição estranha do filho, longe da representação clássica, um michê vagabundo e interesseiro cujo maior sonho é fazer carreira no cinema pornô californiano, e em como nenhuma das situações de conflito com esta construção turbulenta é encarada de frente, sendo escondida sempre por trás de uma piada). São os dois momentos em que Bree – mas na verdade Felicity Huffman, e “coragem” ou “talento” estão longe de poder definir a grandeza de sua atuação – expõe seu corpo, e assim, encadeia uma série de considerações a seu respeito que todas as cenas de Transamérica conseguiam atingir apenas parcialmente. Primeiro, o jeito atabalhoado de urinar na beira de uma estrada, a dificuldade em se abaixar com o vestido apertado, e a revelação de seu pênis por debaixo de toda aquela produção feminina. Depois, já operada, Bree deitada na banheira de sua casa, nua, tocando-se e descobrindo seu novo corpo com um discreto e emocionado sorriso nos lábios. Nesses dois pequenos planos Transamérica consegue escapar de seu rumo cinzento e abre-se um mundo de cores e contrastes que não caberiam em nenhuma caixa de hambúrguer feliz nem muito menos num verso meloso da Amazing Grace.


Rodrigo de Oliveira