TRAIR E COÇAR É SÓ COMEÇAR
Moacyr Góes, Brasil, 2006

Cavação Brasil 2000

O problema todo diante de Trair e coçar é só começar é que nem podemos chamá-lo de enganação. Nessa estratégia de se produzir cinema industrialmente no Brasil, da qual Diler Trindade é o maior promotor, já pudemos ter uma idéia muito precisa do arco de possibilidades desses novos produtos, que, da simplificação religiosa caduca de Maria – A Mãe do Filho de Deus e Irmãos de Fé ao arremedo pop de filme-de-autor de A Máquina, trazem sempre um mesmo traço de barroquismo, ali perto da linha do que é apenas amador, puro e simples. Isso em toda parte da linha de produção: do primarismo dos roteiros, onde a eficiência em se transmitir uma informação a respeito da história e dos personagens importa muito mais do que qualquer idéia de construção dramatúrgica que não seja guiada pela exigência quase jornalística do relato, o que eventualmente engessa qualquer possibilidade criativa dos atores, também contaminados pela direção por essa urgência da informação, atores como âncoras de tevê, ligados à um tele-prompter, adornados pelo cenário virtual, com uma bancada na frente, ou aquilo que os créditos iniciais dos filmes costumam chamar de “direção de arte”, um clima inegável de mostruário de loja de decoração. Isso tudo, no entanto, ainda poderia ter alguma relação maior entre si, talvez até de forma metalingüística (é o que tenta João Falcão em seu filme, ainda que sem sucesso), ou pelo menos se assumir como a fabricação da impossibilidade de se organizar uma encenação que reproduza na realidade aquilo que um dia fora pensado como o clima, o conceito, a cara do filme (estamos, pelo menos nessa fatia do cinema brasileiro, eternamente presos à cena de Carnaval Atlântida em que Renato Restier pede Helena de Tróia e Grande Otelo atesta que só podemos oferecer mesmo um carnaval com pessoas fantasiadas de gregos, pobre mas feliz). Para isso era preciso direção, alguém que pensasse todas essas fraquezas e tentasse articulá-las minimamente antes de gritar o “ação” no megafone. O que surpreende em Trair e coçar é só começar, mesmo àqueles que irão ao cinema com um cartaz de “eu já sabia” nas mãos, é que o grau de indigência artística não está escaldado no equívoco das escolhas feitas, das decisões tomadas, das simplificações assumidas. Nem preguiça, nem mesmo piloto automático. Trair e coçar é só começar é a mais completa expressão da ausência, do nada. Que modo bizarro de descobrirmos um cinema brasileiro espontâneo: é como se a simples coincidência de câmeras, negativo, atores e cenário estarem no mesmo lugar tenha gerado, naturalmente, um filme. Máquinas operando por si só, sem nenhuma mente humana por trás.

De novo o bordão pauloemiliano, mas em Trair e coçar passamos longe de sequer tentar copiar alguma coisa. A idéia de um cinema industrial, pelo menos a nascida em Hollywood, pensava na flexibilização de toda cadeia produtiva, maleável ao ponto do absurdo em certos casos, mas sempre mantendo algum cuidado com o modo como o produto daquele processo iria se apresentar, num padrão mínimo de qualidade (nada “artístico”, diga-se, qualidade plástica mesmo, cuidado com uma embalagem bonita e atraente ao consumidor de supermercado-cinema). Nossa Hollywood, Diler-style, mandou às favas essa preocupação. A referência de produção em série parece ser outra. Como os cineastas cavadores do cinema mudo brasileiro, mascates que iam de cidade em cidade vendendo filme como banana, e que muitas vezes registravam o casamento da filha do fazendeiro, recebiam o pagamento e fugiam, sem entregar registro nenhum ao comprador, porque nem havia negativo na câmera, era tudo farsa, tudo pelo dinheiro, esses cavadores do novo milênio não poderiam ligar menos para o fato de que, nesse negócio de fazer cinema, é preciso entregar ao público algo para assistir. O negativo está lá, agora transformado em cópia, rodando no projetor e jogando imagens na tela, mas é como se tudo tivesse sido rodado com a câmera vazia. Moacyr Góes se abstém de qualquer tipo de atuação, e nos poucos momentos em que saímos do arroz-com-feijão da dinâmica do campo e contracampo, os movimentos de câmera e a marcação dos atores parecem apenas uma exigência do fotógrafo, entediado pela posição sempre fixa. Nesses momentos, Trair e coçar chega a ser grotesco – um plano em que Adriana Esteves e Bianca Byington ensaiam alguma movimentação dentro do quadro parece improviso das atrizes, porque a mexida atabalhoada da câmera denuncia a surpresa com que diretor e fotógrafo foram pegos, e a tentativa de responder ao caco acaba cortando cabeças e corpos pela metade. A estética alva do filme dá a impressão de que só foram utilizadas lâmpadas fluorescentes na iluminação das cenas, luz total, sem sombra, sem contraste, como se consultórios médicos, e não apartamentos de classe média alta, estivessem sendo filmados. Mas se esses elementos técnicos, coisa que qualquer estudante de cinema com seis meses de escola poderia fazer melhor, são desse modo negligenciados, não é preciso dizer que o teor do roteiro de Marcos Caruso tomou o mesmo banho de água sanitária. Na sociedade de Trair e coçar cada classe tem seu próprio sotaque – não um modo de falar correspondente à escolaridade, origem, meio em que vive, nada disso, mas propriamente um sotaque, como se ser patrão ou empregado implicasse naturalmente na regionalização do modo de falar, e mesmo uma pessoa nascida no Rio de Janeiro, quando trabalhando no serviço doméstico, assumisse naturalmente o sotaque nordestino. O riso, a comédia de erros, as confusões de trocas de identidade, tudo isso está lá como estavam nas chanchadas dos anos 50, como está no Chaves e Chapolim ainda hoje exibidos, só que totalmente esvaziados de emoção. Estão lá porque tinham que estar, porque isso aqui se trata – mesmo que nenhum sorriso seja esboçado durante toda a duração do filme – de uma comédia, oras bolas.

Se era essa idéia de indústria que se pretendia, Trair e começar é só começar pode se orgulhar, e gritar (sob o olhar assustado de quem ainda se preocupa com essa besteira de fazer cinema neste país): nós conseguimos!

Rodrigo de Oliveira