Cavação Brasil 2000
O problema todo diante de Trair e coçar é só começar
é que nem podemos chamá-lo de enganação. Nessa estratégia
de se produzir cinema industrialmente no Brasil, da
qual Diler Trindade é o maior promotor, já pudemos ter
uma idéia muito precisa do arco de possibilidades desses
novos produtos, que, da simplificação religiosa caduca
de Maria – A Mãe do Filho de Deus e Irmãos
de Fé ao arremedo pop de filme-de-autor de A
Máquina, trazem sempre um mesmo traço de barroquismo,
ali perto da linha do que é apenas amador, puro e simples.
Isso em toda parte da linha de produção: do primarismo
dos roteiros, onde a eficiência em se transmitir uma
informação a respeito da história e dos personagens
importa muito mais do que qualquer idéia de construção
dramatúrgica que não seja guiada pela exigência quase
jornalística do relato, o que eventualmente engessa
qualquer possibilidade criativa dos atores, também contaminados
pela direção por essa urgência da informação, atores
como âncoras de tevê, ligados à um tele-prompter, adornados
pelo cenário virtual, com uma bancada na frente, ou
aquilo que os créditos iniciais dos filmes costumam
chamar de “direção de arte”, um clima inegável de mostruário
de loja de decoração. Isso tudo, no entanto, ainda poderia
ter alguma relação maior entre si, talvez até de forma
metalingüística (é o que tenta João Falcão em seu filme,
ainda que sem sucesso), ou pelo menos se assumir como
a fabricação da impossibilidade de se organizar uma
encenação que reproduza na realidade aquilo que um dia
fora pensado como o clima, o conceito, a cara do filme
(estamos, pelo menos nessa fatia do cinema brasileiro,
eternamente presos à cena de Carnaval Atlântida
em que Renato Restier pede Helena de Tróia e Grande
Otelo atesta que só podemos oferecer mesmo um carnaval
com pessoas fantasiadas de gregos, pobre mas feliz).
Para isso era preciso direção, alguém que pensasse todas
essas fraquezas e tentasse articulá-las minimamente
antes de gritar o “ação” no megafone. O que surpreende
em Trair e coçar é só começar, mesmo àqueles
que irão ao cinema com um cartaz de “eu já sabia” nas
mãos, é que o grau de indigência artística não está
escaldado no equívoco das escolhas feitas, das decisões
tomadas, das simplificações assumidas. Nem preguiça,
nem mesmo piloto automático. Trair e coçar é só começar
é a mais completa expressão da ausência, do nada.
Que modo bizarro de descobrirmos um cinema brasileiro
espontâneo: é como se a simples coincidência de câmeras,
negativo, atores e cenário estarem no mesmo lugar tenha
gerado, naturalmente, um filme. Máquinas operando por
si só, sem nenhuma mente humana por trás.
De novo o bordão pauloemiliano, mas em Trair e coçar
passamos longe de sequer tentar copiar alguma coisa.
A idéia de um cinema industrial, pelo menos a nascida
em Hollywood, pensava na flexibilização de toda cadeia
produtiva, maleável ao ponto do absurdo em certos casos,
mas sempre mantendo algum cuidado com o modo como o
produto daquele processo iria se apresentar, num padrão
mínimo de qualidade (nada “artístico”, diga-se, qualidade
plástica mesmo, cuidado com uma embalagem bonita e atraente
ao consumidor de supermercado-cinema). Nossa Hollywood,
Diler-style, mandou às favas essa preocupação. A referência
de produção em série parece ser outra. Como os cineastas
cavadores do cinema mudo brasileiro, mascates que iam
de cidade em cidade vendendo filme como banana, e que
muitas vezes registravam o casamento da filha do fazendeiro,
recebiam o pagamento e fugiam, sem entregar registro
nenhum ao comprador, porque nem havia negativo na câmera,
era tudo farsa, tudo pelo dinheiro, esses cavadores
do novo milênio não poderiam ligar menos para o fato
de que, nesse negócio de fazer cinema, é preciso entregar
ao público algo para assistir. O negativo está lá, agora
transformado em cópia, rodando no projetor e jogando
imagens na tela, mas é como se tudo tivesse sido rodado
com a câmera vazia. Moacyr Góes se abstém de qualquer
tipo de atuação, e nos poucos momentos em que saímos
do arroz-com-feijão da dinâmica do campo e contracampo,
os movimentos de câmera e a marcação dos atores parecem
apenas uma exigência do fotógrafo, entediado pela posição
sempre fixa. Nesses momentos, Trair e coçar chega
a ser grotesco – um plano em que Adriana Esteves e Bianca
Byington ensaiam alguma movimentação dentro do quadro
parece improviso das atrizes, porque a mexida atabalhoada
da câmera denuncia a surpresa com que diretor e fotógrafo
foram pegos, e a tentativa de responder ao caco acaba
cortando cabeças e corpos pela metade. A estética alva
do filme dá a impressão de que só foram utilizadas lâmpadas
fluorescentes na iluminação das cenas, luz total, sem
sombra, sem contraste, como se consultórios médicos,
e não apartamentos de classe média alta, estivessem
sendo filmados. Mas se esses elementos técnicos, coisa
que qualquer estudante de cinema com seis meses de escola
poderia fazer melhor, são desse modo negligenciados,
não é preciso dizer que o teor do roteiro de Marcos
Caruso tomou o mesmo banho de água sanitária. Na sociedade
de Trair e coçar cada classe tem seu próprio
sotaque – não um modo de falar correspondente à escolaridade,
origem, meio em que vive, nada disso, mas propriamente
um sotaque, como se ser patrão ou empregado implicasse
naturalmente na regionalização do modo de falar, e mesmo
uma pessoa nascida no Rio de Janeiro, quando trabalhando
no serviço doméstico, assumisse naturalmente o sotaque
nordestino. O riso, a comédia de erros, as confusões
de trocas de identidade, tudo isso está lá como estavam
nas chanchadas dos anos 50, como está no Chaves
e Chapolim ainda hoje exibidos, só que totalmente
esvaziados de emoção. Estão lá porque tinham que estar,
porque isso aqui se trata – mesmo que nenhum sorriso
seja esboçado durante toda a duração do filme – de uma
comédia, oras bolas.
Se era essa idéia de indústria que se pretendia, Trair
e começar é só começar pode se orgulhar, e gritar
(sob o olhar assustado de quem ainda se preocupa com
essa besteira de fazer cinema neste país): nós conseguimos!
Rodrigo de Oliveira
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