Para
começar, é bacana lembrar que Bryan Singer, com seu
X-Men (2000), revitalizou o subgênero de super-heróis,
mas, mais do que isso, injetou uma nova carga de estilo
e narrativa neles. Ele conseguiu escapar da esterilidade
que os esporádicos filmes tinham – por exemplo, Tank
Girl (1995). Filmes estes em que se acreditava muito
na força dos próprios quadrinhos, alguns resquícios
inocentes do bom Dick Tracy (1990), mas que não
aprenderam direito a lição. E que por não apresentarem
elo algum com o mundo, tampouco apresentavam contato
algum conosco. Para isso, X-Men inicia a humanização
(em seus termos) do super-herói. Nada tão avançado,
mas o suficiente dentro do esquema de verossimilhança
clássico de Hollywood. Esta humanização norteou sua
força narrativa. E, sendo o motivo do conflito a inserção
dos mutantes no corpo social, humanizá-los foi mais
do que o reconhecimento do diretor desta luta, foi a
sua premissa. A transmutação do personagem gráfico ao
personagem cinematográfico. A transcendência da arte
gráfica por aquilo em que o cinema supera todos os outros
meios: a identificação.
Mas em Superman: o Retorno esta questão se aprofunda
e se torna mais complexa. Não se trata mais de uma parcela
da população que se pretende ser reconhecida como humana,
e sim de um personagem alien que nunca será.
A partir disto, Bryan Singer tem em suas mãos uma fita
de super-herói extremamente melancólica. Um filme que
não se pretende uma seqüência da série iniciada em 1978,
e tampouco se contenta com o status de refilmagem. É
a abertura de uma nova linha narrativa, mas inteiramente
consciente do que já foi previamente feito. Um filme
que se volta aos anteriores, mesmo que sua abordagem
siga o peso das graphic-novels mais contemporâneas.
Um constante diálogo com os 70 anos do personagem, porém
sem nunca deixar de lado a sua inserção factual nesta
nova realidade fílmica. Isto permite inclusive uma visão
irônica sobre a história, a partir de seus pontos de
distanciamento com a realidade. Como ainda ver Perry
White, a poucos segundos de ser esmagado pela bola icônica
do Daily Planet, perder toda a credibilidade humana
que mantinha e soltar o velho bordão: "Great Caesar's
Ghost!"? Ou então trabalhar a desgastada tríade
"É um pássaro? Um avião?..." em cima de uma
foto borrada? Pois não se pode esquecer que Superman
é o mais iconográfico dos super-heróis. Um personagem
que já está imerso, em maior ou menor grau, na coletividade.
E enquanto isto permite algumas vantagens – como uma
apresentação dos personagens quase casual –, também
carrega ao filme obrigações e expectativas.
Talvez por isso que o filme mantém tantos pontos de
contato com os quatro feitos anteriormente, apesar de
ser uma fita independente. Há, evidentemente, uma vontade
de homenagear o filme de Richard Donner, citando falas
e situações – mantendo o núcleo de Luthor como alívio
cômico. Mas isto é feito com tal sutileza e com tamanha
discrição que para o desavisado nunca soa como artificial
ou implantado. É sim a criação em cima do mito, e a
recorrência e legitimidade dessas situações são sempre
justificadas pelos próprios personagens. Mas comparado
aos filmes de 1970, deixa-se de lado a estética de ficção
cientifica, os raios multi-coloridos, a caricatura e
a utilização primária de cores num modelo conto-de-fadas.
Superman: o Retorno prefere continuar na linha
de X-Men, tentando trabalhar a partir de uma
base real, mas sem pudor algum com a fantasia. A idéia
não é recuar diante do real, mas extrapolá-lo. Criar
dentro dele os elos com os quadrinhos. E enquanto X-Men
aliava ao naturalismo um certo futurismo, aqui o
quadrinho invadirá o real através do tom nostálgico.
Sem confronto algum com o real, a construção pictórica
dos planos resguarda a composição das graphic-novels,
da iconografia construída ao longo dos anos, e aproxima
a montagem dos meios.
A história não é de Superman salvando o mundo, é simplesmente
de Superman. Jogar pro espaço o novo "continente"
é sobretudo uma questão de superação pessoal – que atinge
o plano simbólico. Temos a troca dos planos conjuntos,
dos filmes anteriores, do estabanado Clark Kent pelos
planos fechados de sua aflição. Temos a centralidade
da sua falta de lugar enquanto assume o invisível papel
humano. Seus poderes não são jogados indiscriminadamente
na diegese. Pelo contrário, eles estão lá para auxiliá-lo,
seja para salvar o mundo, seja para ver a bem-amada
bucolicamente subindo no elevador. E não serão eles
que interromperão o paralelismo entre ele e Richard
na cena da casa quando ambos procuram saber se
Lois ainda ama o Homen de Aço. Não serão eles, enfim,
que o tornarão menos humano.
O filme inicia com a volta de Superman de Kripton. Imerso
em uma crise existencialista, busca se conhecer através
da volta às origens. Inevitavelmente fracassa, lá é
um cemitério, apenas um complexo de minerais, sem vida
alguma. E mesmo se não fosse, pouco acrescentaria. Seus
poderes vêm do sol terrestre, em Kripton seria apenas
normal. O auto-conhecimento tem então a carga de uma
fuga, a fuga do peso de seus poderes. Do impacto da
responsabilidade de quem pode mudar destinos, mas que
não sabe se deve. Como se, no melhor espírito simbólico
da Kriptonita, conseguiu-se descobrir o maior ponto-fraco
do mais poderoso e invulnerável super-herói de todos
os tempos: ele mesmo. É a crise existencial, o questionamento
de sua função no mundo, autenticamente humana, que se
extrapola. Que não ignora os poderes pelo caráter humano,
mas lida com eles dentro deste universo.
Ao zapear pela televisão ele apreende o caos do mundo.
Em sua ausência os seres humanos encabeçam a autofagia.
A aniquilação parece ser o destino dos homens, que não
compreendem o impacto de suas ações. Em que medida sua
interferência é valida, em que medida eles, os próprios
culpados, precisam de um salvador? Esta dúvida permeia
o filme, e os indícios da resposta aparece em seu primeiro
trabalho como Superman: um estádio o aplaude enfaticamente.
Por isso que a conseqüência de seus atos nunca se centra
sobre ele mesmo. Sempre somos levados ao espectador.
Sua mãe que observa sua volta a Terra, as testemunhas
de seus feitos heróicos aplaudindo-o, a cobertura maciça
da mídia. Superman incessantemente busca, na recepção
daqueles que podem o legitimar, o porquê e a validade
de suas ações.
Mas isto é pouco, é simplesmente um tratamento sintomático
do mundo. São vitórias rasas, que em sua ausência são
esquecidas e voltamos ao caos. E então descobrimos que
o verdadeiro poder do Superman não é sua superforça
ou a capacidade de voar, é sua capacidade de inspirar
os outros. Inspirar nós que não temos seus poderes,
mas que também podemos mudar o destino. Seu filho (que
sabemos ser seu no primeiro fotograma – Lubitsch Touch,
dito e feito) representa isto, representa a continuidade
dos ideais e a sobrevivência das idéias. Mas é também
Kitty que joga os cristais fora, ou Lois e Richard que
se arriscam por Superman. Todos salvam o mundo, todos
são essenciais.
Apesar dessas questões estarem presentes nos outros
filmes, elas nunca foram o filme. Temos aqui
um perfeito tratamento de Singer perante um personagem
mitificado, que busca, na força do próprio mito, ultrapassá-lo.
Lucas Barbi
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