SUPERMAN - O RETORNO
Bryan Singer, Superman Returns, EUA, 2006

Para começar, é bacana lembrar que Bryan Singer, com seu X-Men (2000), revitalizou o subgênero de super-heróis, mas, mais do que isso, injetou uma nova carga de estilo e narrativa neles. Ele conseguiu escapar da esterilidade que os esporádicos filmes tinham – por exemplo, Tank Girl (1995). Filmes estes em que se acreditava muito na força dos próprios quadrinhos, alguns resquícios inocentes do bom Dick Tracy (1990), mas que não aprenderam direito a lição. E que por não apresentarem elo algum com o mundo, tampouco apresentavam contato algum conosco. Para isso, X-Men inicia a humanização (em seus termos) do super-herói. Nada tão avançado, mas o suficiente dentro do esquema de verossimilhança clássico de Hollywood. Esta humanização norteou sua força narrativa. E, sendo o motivo do conflito a inserção dos mutantes no corpo social, humanizá-los foi mais do que o reconhecimento do diretor desta luta, foi a sua premissa. A transmutação do personagem gráfico ao personagem cinematográfico. A transcendência da arte gráfica por aquilo em que o cinema supera todos os outros meios: a identificação.

Mas em Superman: o Retorno esta questão se aprofunda e se torna mais complexa. Não se trata mais de uma parcela da população que se pretende ser reconhecida como humana, e sim de um personagem alien que nunca será. A partir disto, Bryan Singer tem em suas mãos uma fita de super-herói extremamente melancólica. Um filme que não se pretende uma seqüência da série iniciada em 1978, e tampouco se contenta com o status de refilmagem. É a abertura de uma nova linha narrativa, mas inteiramente consciente do que já foi previamente feito. Um filme que se volta aos anteriores, mesmo que sua abordagem siga o peso das graphic-novels mais contemporâneas. Um constante diálogo com os 70 anos do personagem, porém sem nunca deixar de lado a sua inserção factual nesta nova realidade fílmica. Isto permite inclusive uma visão irônica sobre a história, a partir de seus pontos de distanciamento com a realidade. Como ainda ver Perry White, a poucos segundos de ser esmagado pela bola icônica do Daily Planet, perder toda a credibilidade humana que mantinha e soltar o velho bordão: "Great Caesar's Ghost!"? Ou então trabalhar a desgastada tríade "É um pássaro? Um avião?..." em cima de uma foto borrada? Pois não se pode esquecer que Superman é o mais iconográfico dos super-heróis. Um personagem que já está imerso, em maior ou menor grau, na coletividade. E enquanto isto permite algumas vantagens – como uma apresentação dos personagens quase casual –, também carrega ao filme obrigações e expectativas.

Talvez por isso que o filme mantém tantos pontos de contato com os quatro feitos anteriormente, apesar de ser uma fita independente. Há, evidentemente, uma vontade de homenagear o filme de Richard Donner, citando falas e situações – mantendo o núcleo de Luthor como alívio cômico. Mas isto é feito com tal sutileza e com tamanha discrição que para o desavisado nunca soa como artificial ou implantado. É sim a criação em cima do mito, e a recorrência e legitimidade dessas situações são sempre justificadas pelos próprios personagens. Mas comparado aos filmes de 1970, deixa-se de lado a estética de ficção cientifica, os raios multi-coloridos, a caricatura e a utilização primária de cores num modelo conto-de-fadas. Superman: o Retorno prefere continuar na linha de X-Men, tentando trabalhar a partir de uma base real, mas sem pudor algum com a fantasia. A idéia não é recuar diante do real, mas extrapolá-lo. Criar dentro dele os elos com os quadrinhos. E enquanto X-Men aliava ao naturalismo um certo futurismo, aqui o quadrinho invadirá o real através do tom nostálgico. Sem confronto algum com o real, a construção pictórica dos planos resguarda a composição das graphic-novels, da iconografia construída ao longo dos anos, e aproxima a montagem dos meios.

A história não é de Superman salvando o mundo, é simplesmente de Superman. Jogar pro espaço o novo "continente" é sobretudo uma questão de superação pessoal – que atinge o plano simbólico. Temos a troca dos planos conjuntos, dos filmes anteriores, do estabanado Clark Kent pelos planos fechados de sua aflição. Temos a centralidade da sua falta de lugar enquanto assume o invisível papel humano. Seus poderes não são jogados indiscriminadamente na diegese. Pelo contrário, eles estão lá para auxiliá-lo, seja para salvar o mundo, seja para ver a bem-amada bucolicamente subindo no elevador. E não serão eles que interromperão o paralelismo entre ele e Richard na cena da casa quando ambos procuram saber se Lois ainda ama o Homen de Aço. Não serão eles, enfim, que o tornarão menos humano.

O filme inicia com a volta de Superman de Kripton. Imerso em uma crise existencialista, busca se conhecer através da volta às origens. Inevitavelmente fracassa, lá é um cemitério, apenas um complexo de minerais, sem vida alguma. E mesmo se não fosse, pouco acrescentaria. Seus poderes vêm do sol terrestre, em Kripton seria apenas normal. O auto-conhecimento tem então a carga de uma fuga, a fuga do peso de seus poderes. Do impacto da responsabilidade de quem pode mudar destinos, mas que não sabe se deve. Como se, no melhor espírito simbólico da Kriptonita, conseguiu-se descobrir o maior ponto-fraco do mais poderoso e invulnerável super-herói de todos os tempos: ele mesmo. É a crise existencial, o questionamento de sua função no mundo, autenticamente humana, que se extrapola. Que não ignora os poderes pelo caráter humano, mas lida com eles dentro deste universo.

Ao zapear pela televisão ele apreende o caos do mundo. Em sua ausência os seres humanos encabeçam a autofagia. A aniquilação parece ser o destino dos homens, que não compreendem o impacto de suas ações. Em que medida sua interferência é valida, em que medida eles, os próprios culpados, precisam de um salvador? Esta dúvida permeia o filme, e os indícios da resposta aparece em seu primeiro trabalho como Superman: um estádio o aplaude enfaticamente. Por isso que a conseqüência de seus atos nunca se centra sobre ele mesmo. Sempre somos levados ao espectador. Sua mãe que observa sua volta a Terra, as testemunhas de seus feitos heróicos aplaudindo-o, a cobertura maciça da mídia. Superman incessantemente busca, na recepção daqueles que podem o legitimar, o porquê e a validade de suas ações.

Mas isto é pouco, é simplesmente um tratamento sintomático do mundo. São vitórias rasas, que em sua ausência são esquecidas e voltamos ao caos. E então descobrimos que o verdadeiro poder do Superman não é sua superforça ou a capacidade de voar, é sua capacidade de inspirar os outros. Inspirar nós que não temos seus poderes, mas que também podemos mudar o destino. Seu filho (que sabemos ser seu no primeiro fotograma – Lubitsch Touch, dito e feito) representa isto, representa a continuidade dos ideais e a sobrevivência das idéias. Mas é também Kitty que joga os cristais fora, ou Lois e Richard que se arriscam por Superman. Todos salvam o mundo, todos são essenciais.

Apesar dessas questões estarem presentes nos outros filmes, elas nunca foram o filme. Temos aqui um perfeito tratamento de Singer perante um personagem mitificado, que busca, na força do próprio mito, ultrapassá-lo.


Lucas Barbi