É
natural, e até saudável, um sentimento de confusão em
alguns momentos de Piratas do Caribe 2. Isso
ocorre porque o filme se liberta consideravelmente das
constrições narrativas, pormenorizando a função causa-conseqüência
da montagem e afrouxando os nós explicativos. A ação,
acompanhada da gag, é o que verdadeiramente importa:
os planos se juntam para integrar menos uma cadeia de
eventos do que um longo frenesi de efeitos cinéticos
que parecem inesgotáveis. É a idéia de fantasia-total
que toma as rédeas de vez neste segundo filme. A duração
do entretenimento se esgarça ainda mais (agora são 154
minutos) e encontra sua tradução sensível na suspeita,
a certa altura despertada no espectador, de que a aventura
não terá fim. Uma cena chega para desafiar a capacidade
de movimento e velocidade da cena anterior; há momentos
em que o filme parece desejar um moto-perpétuo de ação
(a cena do duelo na grande roda desenfreada é sintomática).
A trama se recusa a se fechar, e o espectador é convidado
– ou amaldiçoado, para fazer jus ao enredo do filme
– a embarcar numa aventura projetada em looping.
Gore Verbinski busca potencializar a fantasia na abstração
do espaço e no uso meramente pretextual da trama. Esse
é um lado curioso da estratégia empregada pelo filme
para se diferenciar da atração original da Disney. Se
o parque temático consiste, basicamente, na construção
de um espaço que é ele mesmo a ficção – a fantasia em
escala 1:1 –, Verbinski, ao trocar mise-en-espace
por mise-en-scène, elimina o termo estruturante,
ou seja, dissolve o espaço e faz a narrativa pipocar
pelas páginas de um catálogo com todos os cenários icônicos
das aventuras de piratas. A ação pula de um pano de
fundo a outro, facilitada pela fluidez da montagem,
que encurta os trajetos para fazer o filme chegar mais
rápido aos locais de agitação, mostrando um certo desprezo
pelos entreatos. O diretor arrisca pouco, prefere o
“fazer bem” ao “fazer além”, mas o burlesco somado à
ação, em paralelo ao sopro de farsa que atravessa todas
as aparições posadas dos personagens, dá a graça característica
de Piratas do Caribe 2. Folheando o álbum de
figurinhas que o filme compõe, o espectador reconhece
os códigos e as convenções em jogo como se usasse uma
lente de aumento que destaca ao mesmo tempo o lúdico
e o grotesco do projeto.
Quando três personagens lutam pela posse de um objeto
ou pelo coração de uma mulher, não há exatamente para
quem torcer. Todos são vilões ou heróis em potencial:
resta simpatizar não com as causas, mas com as “habilidades”
de um ou de outro. Escolher o personagem predileto em
Piratas do Caribe 2 é escolher com quem jogar
(como se faz no videogame). Na narrativa em montanha
russa, quem está em cima por um momento estará embaixo
logo depois, por pura lei da física. E uma vez que os
números são desiguais (três homens querendo uma mesma
mulher, vários piratas atrás de um mesmo baú), alguém
deve sobrar, inevitavelmente.
Esse alguém não é qualquer um, mas sim Jack Sparrow,
o grande atrativo do filme, o personagem de Johnny Depp
que se apodera da imagem tão-logo aparece. Ele não pára
de gesticular com as mãos, com os dedos, com os olhos,
com os lábios, cada elemento agindo de forma independente
mas ainda assim fazendo parte de uma orquestra de cacoetes.
Ápice da pirâmide cômica do filme, Jack transforma todo
e qualquer outro personagem em papel secundário ou,
quem sabe, dispensável. Ele não fica com a mocinha no
final pelo mesmo motivo que o leva a ser engolido pelo
Kraken (o polvo gigante, o monstro mitológico): uma
questão de compensar, de uma só vez, os pequenos triunfos
acumulados por Jack/Depp ao longo do filme – roubando
as cenas, subjugando os demais personagens por intermédio
de olhares atravessados, plenos de ambigüidade (nunca
se sabe ao certo o que se passa na cabeça de Jack).
Mas o filme precisa dele como de nenhum outro personagem,
e por isso todos irão à sua procura no próximo “capítulo”.
Jack agora mergulhou de vez no universo sobrenatural
– ele de certo modo já representava uma interseção entre
o mundo dos homens e o das almas penadas. No próximo
Piratas do Caribe, podem ter certeza: aplaudiremos
o retorno de um fantasma.
Luiz Carlos Oliveira Jr.
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