A
nuance nunca esteve muito presente no cinema de Costa-Gavras,
e em O Corte ela desaparece de vez. Há uma diferença
evidente em relação a seu filme anterior, Amém,
em que o diretor insistia na forma desbotada da ficção
de esquerda convencional, empenhada em integrar a controvérsia
histórica ao grande espetáculo, em fazer passar o político
pelo filtro do jornalismo sensacionalista, em denunciar
os abusos do poder através do apelo emocional do thriller.
Assim como Z e – de modo menos fastidioso – Estado
de Sítio, o filme sublinhava para o espectador a
atrocidade de uma determinada máquina político-burocrática
à qual ele seria forçosamente contra. Quem aprovava
Amém se sentia enriquecido por receber as mais
velhas notícias do século passado: a brutalidade nazista,
a injustiça da História, as forças malignas que agem
escoltadas pelas grandes instituições. O thriller político
é assim: extrai prazer da indignação. E o espectador
é facilmente inocentado, pois o filme lhe recomenda
a identificação com personagens que lutam contra a injustiça,
que delatam as práticas de extermínio, que sofrem com
a humanidade sofredora.
O cinema de Costa-Gavras sempre foi algo como participar
de uma passeata contra a matança dos ursos estando vestido
de casaco de pele. Cineastas como ele, que nos anos
70 ficcionalizavam a opressão imperialista, utilizam-se
das estratégias de espetáculo do cinema americano de
grande estúdio de maneira oportunista, somente para
garantir um envolvimento sentimental do público. Mas
seus protocolos visam estabelecer um modelo humanista
de denúncia da violência, ao contrário da ficção genealógica
americana, que representa os códigos como um resultado
histórico e se regozija de suas contradições fundadoras
(brancos/índios, norte/sul, lei/fora-da-lei). As tomadas
de partido desses filmes que abordam escândalos políticos
a partir de um certo programa ideológico, contudo, costumam
ser menos sutis e mais maniqueístas que a grande maioria
dos enredos hollywoodianos. A ficção politizada feita
nesses moldes adere aos arquétipos sociais, apenas anexando
um “suplemento de alma”, um resíduo universal de humanidade
para garantir a proposta nobre do filme. No fundo, nada
é discreto nesse cinema – o que exige, em contrapartida,
uma certa habilidade para trabalhar num grau perigoso
de achatamento político (diluição das práticas sociais
específicas nas operações de grande vulto, nas manobras
de cúpula, condensando a diversidade de forças em dois
ou três blocos homogêneos) e de tipagem dos personagens
(vilões repugnantes, heróis idealistas e por aí vai).
Em O Corte, o registro do diretor se desloca
um pouco, a começar pelo grotesco de algumas situações
com que nos deparamos e pela inusitada presença de um
protagonista que não tem nada de nobre, nenhuma elevação
moral: personagem cômico à frente de um carnaval de
obsessões repleto de humor negro e de clichês. Aquele
grave tom de denúncia é substituído por alguns devaneios
dentro de uma narrativa com ares novelescos. O exagero
sai da encenação polemista do alto escalão político
e migra para a comicidade patética de um chefe de família
em crise. O palco desta vez é supostamente menor, mas
acaba sendo a mesma coisa: lar burguês ameaçado e crise
mundial do trabalho se equivalem, por exemplo. Bruno
(José Garcia), o herói derrisório do filme, transborda
em frustração e ressentimento porque foi demitido de
uma fábrica de papel onde ganhava bem. Enquanto fracassa
em todas as entrevistas de emprego a que se submete,
Bruno decide matar o atual ocupante do seu antigo cargo
(Olivier Gourmet), assim como os mais fortes candidatos
à sucessão. Perder o trabalho, afinal, pode hoje significar
perder a identidade, perder o centro de gravidade, sucumbir
à loucura... aquela velha história.
O caminho se abre para todo tipo de metáforas paquidérmicas
sobre a competitividade e o desvirtuamento do social
no capitalismo contemporâneo. Bruno elimina seus concorrentes
fisicamente, sempre se deparando, no percurso, com os
signos da publicidade e do bem-estar financeiro, como
se a própria estrutura do mundo capitalista, com sua
fachada reluzente, estivesse pensando as ações de Bruno
por ele. A ficção paranóica percorrendo uma grande reflexão
sobre a publicidade já rendeu uma das maiores obras-primas
do cinema, que é Intriga Internacional do Hitchcock
(a publicidade como a pílula efervescente adicionada
à existência do homem), mas é claro que de Costa-Gavras
não poderíamos esperar o mesmo. Ao refletir sobre o
mundo engendrado pela grande mídia e pelas batalhas
corporativas, O Corte se limita a pouco mais
que piadinhas datadas com os filmes institucionais,
os cartazes publicitários e a transmissão televisiva.
E à afirmação de que a atual hiperatividade econômica
desumaniza. O filme todo se torna estéril pela repetição
de argumentos e pela falta de resoluções estéticas que
redimensionariam esses argumentos. Um formato acadêmico
sem brilho nem estilo marcante, quase todo pautado pela
legibilidade e pela banalidade plástica das imagens,
rege a maior parte das cenas, vez ou outra abrindo espaço
para uma busca de agilidade que parece tributária de
uma linguagem genérica de seriado de TV. As mortes se
sucedendo em tom cada vez mais bufão acabam por nos
convencer, paradoxalmente, de que o verdadeiro problema
incrustado nessas mortes é de ordem moral, é problema
de má consciência, algo que o filme recalcava ao ilustrar
uma estrutura que determinaria a lógica de eliminação
mútua como parte de um programa, de uma medida protocolar.
O Corte e Ponto Final (Woody Allen) têm
um aspecto em comum: o patético do herói, que mata sem
demonstrar a mínima competência no crime, alia-se às
artimanhas do destino, que curiosamente conspira a seu
favor. A primeira visita dos policiais à casa de Bruno
é puro vaudeville, o espectador sabe que a arma está
no sobretudo e que basta os investigadores esbarrarem
nele para tudo se desvendar, mas um pequeno teatro de
ações desastradas impede a deflagração do criminoso.
O desejo de crítica não está menos presente neste filme
do que nos outros de Costa-Gavras. Em certa medida,
O Corte é até um filme-tese. Uma tese boba e
sem nenhuma contribuição nova, é verdade, mas toda amarrada
textualmente, sustentada por coesão interna, ênfase
discursiva etc. Se a genealogia caricatural de um serial
killer se desdobra em ficção conjugal e vice-versa,
é porque, embora passe um bom tempo apenas tangenciando
a trama, a família de Bruno desempenha o papel mais
decisivo no filme. Ele só faz da sua rota de assassinatos
uma missão de fato quando desperta para a necessidade
de preservar a família, o que não ocorre exatamente
nas sessões de terapia de casal, e sim no episódio em
que seu filho vai preso por roubar softwares de uma
loja de informática. Nessa hora Bruno percebe um poder
obscuro de transmissão entre seus gestos e os do filho,
e se sente novamente conectado à família. Um estranho
pacto se configura entre os membros da casa, como fica
demonstrado na cena em que a filha mais nova tira a
camisola antes de abrir a porta e se mostrar de calcinha
aos policiais, distraindo-os enquanto seus pais se livram
dos últimos resquícios da contravenção do irmão. Num
momento posterior, a família conversa durante o almoço,
e o filho fala que os fins justificam os meios caso
se esteja numa guerra. Lembramos então de uma cena do
início do filme, quando Bruno treina sua pontaria na
floresta e começa a ouvir outros tiros, que vêm de um
grupo de soldados disparando a esmo: o mundo está sim
em guerra, desde o começo. E se é guerra, vale tudo.
A premissa de O Corte fica às claras: seu protagonista
apenas responde ao estado das coisas; aquela violência
insana termina por se naturalizar num mundo já tornado
insano em si mesmo. Tudo pode ser visto como alegoria,
o ponto de partida sendo a posição central que a publicidade
e a selvageria do mundo dos negócios desempenham hoje.
A formação familiar se concilia com esse modelo workaholic,
instável e agressivo. É esse o acordo tácito a que chegam
os membros da família. A violência a que os adolescentes
assistem na TV e no videogame, a mídia sensacionalista,
os conglomerados que empregam e desempregam quando bem
entendem, as crises conjugais que levam ao adultério,
as crises de valores que banalizam o crime: tudo isso
participa de uma mesma economia – a ponto de Bruno poder
trocar a palavra “matar” por “zapear” a concorrência.
Mas a grande “mensagem” do filme está em como a competição
capitalista se revela suicida. Não precisamos da cena
em que Bruno ameaça se matar num quarto de motel para
perceber esse esquema autodestrutivo, pois todas as
suas vítimas moram em bairros parecidos com o dele,
em casas parecidas com a dele, têm currículos parecidos
com o dele, têm idéias parecidas com as dele etc. As
estratégias visuais ratificam que o confronto é dele
com ele mesmo: quando encontra o concorrente que se
tornou barman, um par de espelhos duplica sua imagem
na tela; depois, na cena em que ele encontra o concorrente
que trabalha numa loja de ternos, os espelhos da cabine
onde prova um paletó reverberam sua imagem ao infinito.
Eliminar o outro, portanto, é eliminar a si mesmo. No
limite, é a própria sociedade que alimenta um ciclo
de autodestruição permanente. A cena final completa
essa idéia: agora é Bruno, de volta ao cargo, quem será
perseguido. Ameaça real ou mera paranóia, o que importa
é que o medo da concorrência já está subjetivado nele.
Mais um lugar-comum.
Luiz Carlos Oliveira Jr.
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