O CORTE
Costa-Gavras, Le Couperet, França, 2005

A nuance nunca esteve muito presente no cinema de Costa-Gavras, e em O Corte ela desaparece de vez. Há uma diferença evidente em relação a seu filme anterior, Amém, em que o diretor insistia na forma desbotada da ficção de esquerda convencional, empenhada em integrar a controvérsia histórica ao grande espetáculo, em fazer passar o político pelo filtro do jornalismo sensacionalista, em denunciar os abusos do poder através do apelo emocional do thriller. Assim como Z e – de modo menos fastidioso – Estado de Sítio, o filme sublinhava para o espectador a atrocidade de uma determinada máquina político-burocrática à qual ele seria forçosamente contra. Quem aprovava Amém se sentia enriquecido por receber as mais velhas notícias do século passado: a brutalidade nazista, a injustiça da História, as forças malignas que agem escoltadas pelas grandes instituições. O thriller político é assim: extrai prazer da indignação. E o espectador é facilmente inocentado, pois o filme lhe recomenda a identificação com personagens que lutam contra a injustiça, que delatam as práticas de extermínio, que sofrem com a humanidade sofredora.

O cinema de Costa-Gavras sempre foi algo como participar de uma passeata contra a matança dos ursos estando vestido de casaco de pele. Cineastas como ele, que nos anos 70 ficcionalizavam a opressão imperialista, utilizam-se das estratégias de espetáculo do cinema americano de grande estúdio de maneira oportunista, somente para garantir um envolvimento sentimental do público. Mas seus protocolos visam estabelecer um modelo humanista de denúncia da violência, ao contrário da ficção genealógica americana, que representa os códigos como um resultado histórico e se regozija de suas contradições fundadoras (brancos/índios, norte/sul, lei/fora-da-lei). As tomadas de partido desses filmes que abordam escândalos políticos a partir de um certo programa ideológico, contudo, costumam ser menos sutis e mais maniqueístas que a grande maioria dos enredos hollywoodianos. A ficção politizada feita nesses moldes adere aos arquétipos sociais, apenas anexando um “suplemento de alma”, um resíduo universal de humanidade para garantir a proposta nobre do filme. No fundo, nada é discreto nesse cinema – o que exige, em contrapartida, uma certa habilidade para trabalhar num grau perigoso de achatamento político (diluição das práticas sociais específicas nas operações de grande vulto, nas manobras de cúpula, condensando a diversidade de forças em dois ou três blocos homogêneos) e de tipagem dos personagens (vilões repugnantes, heróis idealistas e por aí vai).

Em O Corte, o registro do diretor se desloca um pouco, a começar pelo grotesco de algumas situações com que nos deparamos e pela inusitada presença de um protagonista que não tem nada de nobre, nenhuma elevação moral: personagem cômico à frente de um carnaval de obsessões repleto de humor negro e de clichês. Aquele grave tom de denúncia é substituído por alguns devaneios dentro de uma narrativa com ares novelescos. O exagero sai da encenação polemista do alto escalão político e migra para a comicidade patética de um chefe de família em crise. O palco desta vez é supostamente menor, mas acaba sendo a mesma coisa: lar burguês ameaçado e crise mundial do trabalho se equivalem, por exemplo. Bruno (José Garcia), o herói derrisório do filme, transborda em frustração e ressentimento porque foi demitido de uma fábrica de papel onde ganhava bem. Enquanto fracassa em todas as entrevistas de emprego a que se submete, Bruno decide matar o atual ocupante do seu antigo cargo (Olivier Gourmet), assim como os mais fortes candidatos à sucessão. Perder o trabalho, afinal, pode hoje significar perder a identidade, perder o centro de gravidade, sucumbir à loucura... aquela velha história.

O caminho se abre para todo tipo de metáforas paquidérmicas sobre a competitividade e o desvirtuamento do social no capitalismo contemporâneo. Bruno elimina seus concorrentes fisicamente, sempre se deparando, no percurso, com os signos da publicidade e do bem-estar financeiro, como se a própria estrutura do mundo capitalista, com sua fachada reluzente, estivesse pensando as ações de Bruno por ele. A ficção paranóica percorrendo uma grande reflexão sobre a publicidade já rendeu uma das maiores obras-primas do cinema, que é Intriga Internacional do Hitchcock (a publicidade como a pílula efervescente adicionada à existência do homem), mas é claro que de Costa-Gavras não poderíamos esperar o mesmo. Ao refletir sobre o mundo engendrado pela grande mídia e pelas batalhas corporativas, O Corte se limita a pouco mais que piadinhas datadas com os filmes institucionais, os cartazes publicitários e a transmissão televisiva. E à afirmação de que a atual hiperatividade econômica desumaniza. O filme todo se torna estéril pela repetição de argumentos e pela falta de resoluções estéticas que redimensionariam esses argumentos. Um formato acadêmico sem brilho nem estilo marcante, quase todo pautado pela legibilidade e pela banalidade plástica das imagens, rege a maior parte das cenas, vez ou outra abrindo espaço para uma busca de agilidade que parece tributária de uma linguagem genérica de seriado de TV. As mortes se sucedendo em tom cada vez mais bufão acabam por nos convencer, paradoxalmente, de que o verdadeiro problema incrustado nessas mortes é de ordem moral, é problema de má consciência, algo que o filme recalcava ao ilustrar uma estrutura que determinaria a lógica de eliminação mútua como parte de um programa, de uma medida protocolar. O Corte e Ponto Final (Woody Allen) têm um aspecto em comum: o patético do herói, que mata sem demonstrar a mínima competência no crime, alia-se às artimanhas do destino, que curiosamente conspira a seu favor. A primeira visita dos policiais à casa de Bruno é puro vaudeville, o espectador sabe que a arma está no sobretudo e que basta os investigadores esbarrarem nele para tudo se desvendar, mas um pequeno teatro de ações desastradas impede a deflagração do criminoso.

O desejo de crítica não está menos presente neste filme do que nos outros de Costa-Gavras. Em certa medida, O Corte é até um filme-tese. Uma tese boba e sem nenhuma contribuição nova, é verdade, mas toda amarrada textualmente, sustentada por coesão interna, ênfase discursiva etc. Se a genealogia caricatural de um serial killer se desdobra em ficção conjugal e vice-versa, é porque, embora passe um bom tempo apenas tangenciando a trama, a família de Bruno desempenha o papel mais decisivo no filme. Ele só faz da sua rota de assassinatos uma missão de fato quando desperta para a necessidade de preservar a família, o que não ocorre exatamente nas sessões de terapia de casal, e sim no episódio em que seu filho vai preso por roubar softwares de uma loja de informática. Nessa hora Bruno percebe um poder obscuro de transmissão entre seus gestos e os do filho, e se sente novamente conectado à família. Um estranho pacto se configura entre os membros da casa, como fica demonstrado na cena em que a filha mais nova tira a camisola antes de abrir a porta e se mostrar de calcinha aos policiais, distraindo-os enquanto seus pais se livram dos últimos resquícios da contravenção do irmão. Num momento posterior, a família conversa durante o almoço, e o filho fala que os fins justificam os meios caso se esteja numa guerra. Lembramos então de uma cena do início do filme, quando Bruno treina sua pontaria na floresta e começa a ouvir outros tiros, que vêm de um grupo de soldados disparando a esmo: o mundo está sim em guerra, desde o começo. E se é guerra, vale tudo. A premissa de O Corte fica às claras: seu protagonista apenas responde ao estado das coisas; aquela violência insana termina por se naturalizar num mundo já tornado insano em si mesmo. Tudo pode ser visto como alegoria, o ponto de partida sendo a posição central que a publicidade e a selvageria do mundo dos negócios desempenham hoje. A formação familiar se concilia com esse modelo workaholic, instável e agressivo. É esse o acordo tácito a que chegam os membros da família. A violência a que os adolescentes assistem na TV e no videogame, a mídia sensacionalista, os conglomerados que empregam e desempregam quando bem entendem, as crises conjugais que levam ao adultério, as crises de valores que banalizam o crime: tudo isso participa de uma mesma economia – a ponto de Bruno poder trocar a palavra “matar” por “zapear” a concorrência.

Mas a grande “mensagem” do filme está em como a competição capitalista se revela suicida. Não precisamos da cena em que Bruno ameaça se matar num quarto de motel para perceber esse esquema autodestrutivo, pois todas as suas vítimas moram em bairros parecidos com o dele, em casas parecidas com a dele, têm currículos parecidos com o dele, têm idéias parecidas com as dele etc. As estratégias visuais ratificam que o confronto é dele com ele mesmo: quando encontra o concorrente que se tornou barman, um par de espelhos duplica sua imagem na tela; depois, na cena em que ele encontra o concorrente que trabalha numa loja de ternos, os espelhos da cabine onde prova um paletó reverberam sua imagem ao infinito. Eliminar o outro, portanto, é eliminar a si mesmo. No limite, é a própria sociedade que alimenta um ciclo de autodestruição permanente. A cena final completa essa idéia: agora é Bruno, de volta ao cargo, quem será perseguido. Ameaça real ou mera paranóia, o que importa é que o medo da concorrência já está subjetivado nele. Mais um lugar-comum.


Luiz Carlos Oliveira Jr.