OBRIGADO POR FUMAR
Jason Reitman, Thank you for smoking, EUA, 2005

Dos três mercadores da morte que se reúnem toda semana num bar para trocar experiências e conversar fiado sobre suas carreiras – Bobby Jay Bliss, representante da indústria de armas, Nick Naylor, do tabaco, e Polly Bailey da indústria do álcool – os dois primeiros já mereceram um filme. O Yuri Orlov de O Senhor das Armas era uma espécie de Bobby Jay depois de um banho de loja, agindo nas sombras e sendo protegido por aqueles que, como esse último, defendiam seu negócio sob as luzes. Agora temos esse Obrigado por Fumar, Naylor já devidamente repaginado, charme irresistível de um porta-voz cuja filiação empresarial não engana nem mesmo os coleguinhas de classe de seu filho pré-adolescente: seu trabalho é do mal, e ponto. Curioso que tanto Andrew Niccol anteriormente quanto Jason Reitman agora partam do mesmo princípio ético (com desdobramento estético imediato), princípio segundo o qual aquele que defenda uma idéia tão claramente equivocada, que trabalhe numa trincheira que é sabidamente inimiga, não só tem sérios problemas morais como também está investido de uma cretinice fundamental, tão importante na constituição desse personagem quanto sua disposição para a maleabilidade de caráter. Alguém que vá a um programa popular de tevê e consiga vender a idéia de que o menino canceroso ao lado é mais vítima das associações anti-tabaco, que desejam sua morte para provar um ponto-de-vista, do que da indústria que fabricou e disponibilizou os cigarros que o levaram àquele estado de saúde, à esse alguém não basta talento ou cara-de-pau, é preciso também essa capacidade de rir diante da desgraça, não um riso de índole demoníaca, mas quase por ignorância, o riso da estupidez. Nosso Nick Naylor aparece, desde sempre, como um estúpido e um cretino.

A lição que Jason Reitman parece ter aprendido com O Senhor das Armas é que não é possível atribuir à um personagem dessa natureza a pecha de anti-herói num mundo cuja devastação moral é muito mais profunda que sua pequena contribuição de calhordice – uma disposição que, no limite, levaria o filme ao panteão do que de mais interessante tem sido feito no cinema contemporâneo, quando a misé-en-scène se devota ao personagem de tal maneira que acaba assumindo as verdades deste como suas próprias, o que impeliria o diretor, diante de um Orlov ou de um Naylor, a produzir um filme igualmente estúpido e cretino (mas isso fica na cota da cretinice que o próprio crítico se permite no curso de um texto). Mais que proteger seu protagonista numa redoma de significações que existam desligadas e quase à revelia do que acontece fora dela, Reitman perceberá na postura de Nick Naylor um sintoma generalizado, uma safadeza endêmica que não é percebida apenas pelos círculos sociais específicos pelos quais Obrigado por Fumar transita (os escritórios de um senador e de um produtor de cinema, a casa de um ex-cowboy do Malboro, uma redação de jornal, as casernas da indústria do tabaco, todos eles lugares potenciais para a ocorrência desse traço), mas como a própria razão de ser de todo o sistema jurídico e moral da América, safadeza com artigo na Constituição, bancada forte no Congresso e representante supremo na Casa Branca.

É esse sistema, resumido na idéia de “democracia” que se tem por lá, que faz com que Naylor seja não o anti-herói culpado, mas um verdadeiro herói deste universo da deturpação. Seu superpoder é a retórica, a capacidade de fantasiar qualquer absurdo de argumento plausível, e na disputa pela palavra, conseguir tirar delas o necessário para provar que o oponente está errado (provar-se certo não é necessário). Quando se encanta com o poder de atração de Naylor, Obrigado por Fumar encontra seus melhores momentos. A narração em off deixa de ser um recurso de compensação moral do diretor em relação àquilo que sua história aponta de maneira perigosa e passa a ser o próprio gozo da possibilidade de se dispor de um personagem tão bem articulado. Eventualmente não serão mais os fabricantes de cigarro e suas artimanhas a maior preocupação – há aqui um cacoete inegável de filme-denúncia, socialmente consciente e responsável, especialmente no modo como desfia aqui e ali alguma estatística de mortes por fumo, dinheiro envolvido na indústria do tabaco ou negociatas na esfera do poder público. O apelo desse ambiente alucinado (por nicotina, crack, Red Bull ou só mesmo a adrenalina de um debate televisivo, tanto faz) acaba dominando qualquer outra disposição narrativa que Obrigado por Fumar pudesse ter. O deslumbre com cada tirada genial de Naylor diminui todas as outras possibilidades em nome do filme-de-roteiro. Reitman toma partido nenhum com o direito de significar com a câmera, e qualquer comentário que faça sobre aquilo que está encenando aparece sempre apenas sublinhando com recursos visuais fáceis o que acabara de ser dito pelo protagonista.

Essa fragilidade fundamental de Obrigado por Fumar parece ser conhecida pelo diretor, mas não o bastante para ser contornada. Conversando com o produtor de cinema afetado interpretado por Rob Lowe sobre a possibilidade de financiar um filme onde as estrelas fumem, retornando ao lugar primeiro da publicidade tabagista, o cinema, o personagem de Aaron Eckhart descobre que um estúdio está produzindo um blockbuster espacial, e que ali poderiam introduzir os cigarros de sua companhia. “Mas num ambiente de oxigênio total, eles não explodiriam ao acender o cigarro?”, pergunta Naylor, para ouvir do produtor que isso se resolve rápido, com um truque de roteiro, “ah, graças à Deus que nós inventamos o aparelho qualquer-coisa”. Exatamente. Tudo em Obrigado por Fumar acaba se valendo dessa regra do easy fix, onde qualquer escorregão sente que pode ser corrigido com mais uma das enroladas do protagonista. Não sobram alternativas para o senador anti-tabaco a não ser o papel de imbecil que tem sempre que aparece em cena, e o mesmo vale para qualquer outro dos personagens secundários. Em cada um o traço da caneta de alguém que os escreveu, com todos os truques que já sabemos de cor. No duelo das retóricas, Nick Naylor leva a melhor sobre Jason Reitman justamente por nos convencer que aquilo que diz, diferente de seu diretor, carrega algum traço de criatividade e, vá lá, até mesmo de uma cretinice do bem.


Rodrigo de Oliveira