Dos
três mercadores da morte que se reúnem toda semana num
bar para trocar experiências e conversar fiado sobre
suas carreiras – Bobby Jay Bliss, representante da indústria
de armas, Nick Naylor, do tabaco, e Polly Bailey da
indústria do álcool – os dois primeiros já mereceram
um filme. O Yuri Orlov de O Senhor das Armas
era uma espécie de Bobby Jay depois de um banho de loja,
agindo nas sombras e sendo protegido por aqueles que,
como esse último, defendiam seu negócio sob as luzes.
Agora temos esse Obrigado por Fumar, Naylor já
devidamente repaginado, charme irresistível de um porta-voz
cuja filiação empresarial não engana nem mesmo os coleguinhas
de classe de seu filho pré-adolescente: seu trabalho
é do mal, e ponto. Curioso que tanto Andrew Niccol anteriormente
quanto Jason Reitman agora partam do mesmo princípio
ético (com desdobramento estético imediato), princípio
segundo o qual aquele que defenda uma idéia tão claramente
equivocada, que trabalhe numa trincheira que é sabidamente
inimiga, não só tem sérios problemas morais como também
está investido de uma cretinice fundamental, tão importante
na constituição desse personagem quanto sua disposição
para a maleabilidade de caráter. Alguém que vá a um
programa popular de tevê e consiga vender a idéia de
que o menino canceroso ao lado é mais vítima das associações
anti-tabaco, que desejam sua morte para provar um ponto-de-vista,
do que da indústria que fabricou e disponibilizou os
cigarros que o levaram àquele estado de saúde, à esse
alguém não basta talento ou cara-de-pau, é preciso também
essa capacidade de rir diante da desgraça, não um riso
de índole demoníaca, mas quase por ignorância, o riso
da estupidez. Nosso Nick Naylor aparece, desde sempre,
como um estúpido e um cretino.
A lição que Jason Reitman parece ter aprendido com O
Senhor das Armas é que não é possível atribuir à
um personagem dessa natureza a pecha de anti-herói num
mundo cuja devastação moral é muito mais profunda que
sua pequena contribuição de calhordice – uma disposição
que, no limite, levaria o filme ao panteão do que de
mais interessante tem sido feito no cinema contemporâneo,
quando a misé-en-scène se devota ao personagem de tal
maneira que acaba assumindo as verdades deste como suas
próprias, o que impeliria o diretor, diante de um Orlov
ou de um Naylor, a produzir um filme igualmente estúpido
e cretino (mas isso fica na cota da cretinice que o
próprio crítico se permite no curso de um texto). Mais
que proteger seu protagonista numa redoma de significações
que existam desligadas e quase à revelia do que acontece
fora dela, Reitman perceberá na postura de Nick Naylor
um sintoma generalizado, uma safadeza endêmica que não
é percebida apenas pelos círculos sociais específicos
pelos quais Obrigado por Fumar transita (os escritórios
de um senador e de um produtor de cinema, a casa de
um ex-cowboy do Malboro, uma redação de jornal, as casernas
da indústria do tabaco, todos eles lugares potenciais
para a ocorrência desse traço), mas como a própria razão
de ser de todo o sistema jurídico e moral da América,
safadeza com artigo na Constituição, bancada forte no
Congresso e representante supremo na Casa Branca.
É esse sistema, resumido na idéia de “democracia” que
se tem por lá, que faz com que Naylor seja não o anti-herói
culpado, mas um verdadeiro herói deste universo da deturpação.
Seu superpoder é a retórica, a capacidade de fantasiar
qualquer absurdo de argumento plausível, e na disputa
pela palavra, conseguir tirar delas o necessário para
provar que o oponente está errado (provar-se certo não
é necessário). Quando se encanta com o poder de atração
de Naylor, Obrigado por Fumar encontra seus melhores
momentos. A narração em off deixa de ser um recurso
de compensação moral do diretor em relação àquilo que
sua história aponta de maneira perigosa e passa a ser
o próprio gozo da possibilidade de se dispor de um personagem
tão bem articulado. Eventualmente não serão mais os
fabricantes de cigarro e suas artimanhas a maior preocupação
– há aqui um cacoete inegável de filme-denúncia, socialmente
consciente e responsável, especialmente no modo como
desfia aqui e ali alguma estatística de mortes por fumo,
dinheiro envolvido na indústria do tabaco ou negociatas
na esfera do poder público. O apelo desse ambiente alucinado
(por nicotina, crack, Red Bull ou só mesmo a adrenalina
de um debate televisivo, tanto faz) acaba dominando
qualquer outra disposição narrativa que Obrigado
por Fumar pudesse ter. O deslumbre com cada tirada
genial de Naylor diminui todas as outras possibilidades
em nome do filme-de-roteiro. Reitman toma partido nenhum
com o direito de significar com a câmera, e qualquer
comentário que faça sobre aquilo que está encenando
aparece sempre apenas sublinhando com recursos visuais
fáceis o que acabara de ser dito pelo protagonista.
Essa fragilidade fundamental de Obrigado por Fumar
parece ser conhecida pelo diretor, mas não o bastante
para ser contornada. Conversando com o produtor de cinema
afetado interpretado por Rob Lowe sobre a possibilidade
de financiar um filme onde as estrelas fumem, retornando
ao lugar primeiro da publicidade tabagista, o cinema,
o personagem de Aaron Eckhart descobre que um estúdio
está produzindo um blockbuster espacial, e que ali poderiam
introduzir os cigarros de sua companhia. “Mas num ambiente
de oxigênio total, eles não explodiriam ao acender o
cigarro?”, pergunta Naylor, para ouvir do produtor que
isso se resolve rápido, com um truque de roteiro, “ah,
graças à Deus que nós inventamos o aparelho qualquer-coisa”.
Exatamente. Tudo em Obrigado por Fumar acaba
se valendo dessa regra do easy fix, onde qualquer
escorregão sente que pode ser corrigido com mais uma
das enroladas do protagonista. Não sobram alternativas
para o senador anti-tabaco a não ser o papel de imbecil
que tem sempre que aparece em cena, e o mesmo vale para
qualquer outro dos personagens secundários. Em cada
um o traço da caneta de alguém que os escreveu, com
todos os truques que já sabemos de cor. No duelo das
retóricas, Nick Naylor leva a melhor sobre Jason Reitman
justamente por nos convencer que aquilo que diz, diferente
de seu diretor, carrega algum traço de criatividade
e, vá lá, até mesmo de uma cretinice do bem.
Rodrigo de Oliveira
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