MIAMI VICE
Michael Mann, EUA, 2006

Ao transformar a mais eighties das peças do imaginário televisivo em longa-metragem, Michael Mann definitivamente não fez um filme para os nostálgicos de plantão. Tampouco se limitou a atualizar uma matriz ficcional datada usando os novos protocolos assimilados pelas séries e pelos filmes de ação recentes. Entre as duas décadas que separam o filme Miami Vice da série de TV que o originou, a imagem de cinema atingiu uma nova idade, caracterizada não pela demarcação de trincheiras entre os regimes de ficção e as formas de representar o mundo, e sim pela inclusão do cinema num magma onde ele negocia seu lugar em meio a todo tipo de objeto visual. Com Miami Vice, a reinvenção estética do cinema de Michael Mann se dá sobre a fronteira fluida e contaminante entre uma determinada arte da mise en scène – a conhecida fórmula maneirista de retrabalhar motivos clássicos (perseguição, troca de tiros, diálogos de confronto) através de um repertório moderno (dilatação temporal, deslocamento das formas, detalhismo) – e os novos modos de comportamento das imagens, resultantes não apenas da revolução dos suportes, mas sobretudo de uma nova relação com o tempo e a ação neste desencadeada, contexto em que muitas vezes é menos relevante falar de mise en scéne do que simplesmente de dispositivo ou de agenciamento do espaço-tempo. Paralelamente, a principal tendência do thriller de ação nos últimos três ou quatro anos – fundada numa certa urgência do registro e na constante proliferação de focos dramáticos que se interceptam e se dispersam de maneira imprevisível, sem dúvida um traço marcante em 24 Horas – veio também da televisão e tem lá seus ecos em Miami Vice.

É preciso destacar que a razão de ser do evidente apuro técnico-estético dos últimos filmes de Mann não é o virtuosismo: nenhum de seus triunfos visuais descamba para efeitos decorativos. Ele não é exatamente um fetichista, da mesma forma que não insiste em certas composições como meros pretextos para assinaturas estilísticas. Mann é um formalista: ele inventa e desdobra formas. Miami Vice representa um momento muito especial em sua carreira, quando as possibilidades de criação se expandem para muito além do aguardado e especulado, e isso num projeto destinado ao grande público. Antes de Colateral, ou mesmo antes de Ali, um certo consenso se havia estabelecido em torno do estilo de Michael Mann: brilhante, porém ameaçado pelo ostracismo que a notoriedade pode acarretar. Ele já era uma referência obrigatória no campo da invenção formalista e da potência visual, mas foi com a veia jazzística que Colateral acrescentou à suprema elegância constatada em filmes anteriores, alguns mais reconhecidos (Fogo Contra Fogo, O Informante) que outros (O Último dos Moicanos, Man Hunter), que ele encantou até quem receava alguma propensão a um exercício estético estabilizado em si mesmo. O percurso do cineasta não indicava um recuo a modelos comportados de ficção.

Mas a verdade é que ninguém esperava que em Miami Vice ele fosse dar um salto tão vertiginoso. Mann se entregou a um princípio de desregulação do plano – instabilidade, movimentação errante, composições desequilibradas, fugas do estatuto comum da figuração – e de esfacelamento narrativo. Cortes bruscos transportam o filme de um personagem a outro, de uma situação a outra, de um continente a outro. Uma simples montagem em campo-contracampo, esta antiga e funcional ferramenta de construção dramática no cinema, pode por sua vez ganhar a forma de sutil agressão estrutural e ilustrar a dialética de uma trajetória (com a lancha em movimento, o filme corta de um personagem para o outro sobre um eixo em 180º, criando um conflito de direção na passagem entre os planos). Enquanto a narrativa progride, uma rota sensorial se substitui à legibilidade absoluta da trama. Jogado direto dentro do filme, sem apresentação de personagens ou de situação, o espectador rapidamente se percebe diante de uma desconcertante mistura de sofisticação e experimentalismo. Mann utiliza a matéria-prima do filme quase como um pretexto para repensar sua relação com o cinema de gênero de maneira abstrata, arrojada, abolindo as leis do espaço e do tempo com uma selvageria que não víamos desde o John Woo de The Killer e A Better Tomorrow (curiosamente filmes da época em que Miami Vice fazia sucesso na TV), ainda que lá a montagem operasse em outros níveis de brutalidade e de lirismo incandescente.

A recusa de Mann a fazer um filme retrô não causa espanto – é até natural. O que surpreende em determinado ponto de Miami Vice é perceber que seus parentes mais próximos não estão no cinema policial e de ação, mas em filmes como O Intruso, de Claire Denis, ou 2046, de Wong Kar-wai. Uma idéia de opacidade (dos personagens, do enredo) e de imersão preside as manobras narrativas e libera o filme para se aventurar plástica e conceitualmente. A seqüência no Haiti é a mais estranha e reveladora. Distante do exotismo costumeiro, a seqüência é um mergulho radical na alteridade daquele espaço. Lá ocorre a citação a Pollock, quando Sonny (Colin Farrell) discute com o vilão José Yero e ameaça detonar uma granada que borraria de sangue a parede atrás dele. Além de ter um encaixe perfeito no andamento do diálogo, a citação revela o desejo do diretor de afirmar que a imagem para ele é uma superfície de inscrição, que ela deve ser menos figurativa e mais abstrata, e que em última análise trata-se de uma arte cuja violência está no próprio gesto de jogar o material na tela e compor formas por vezes aberrantes. O que Mann de fato guardou da década retrasada e agora ressignificou – mais até que a famosa iconografia e o universo temático da série em questão – foi a arquitetura em néon de Miami. O clima ensolarado recebe pouca atenção no filme, e com razão, pois já em Thief havia ficado claro que o reinado de Mann começa de verdade é quando cai a noite.

É então que ele filma a grande cidade como uma selva luminosa. Se o homem aparece sempre em primeiro plano em relação à vegetação de fundo – feita de luzes, monitores, imagens sobrepostas, signos difusos –, não é por privilégio figurativo, e sim porque sua existência de alguma forma está alimentada e determinada pelo que acontece sobre aquele tabuleiro de pontinhos brilhosos. As luzes formam a rede que ao mesmo tempo aprisiona e dá combustível à vida do herói. O homem e seu espaço, seu métier, seu destino: em Mann, os planos mais embriagados de prazer visual são também os que mais significam. Já na primeira seqüência de Miami Vice, vemos um plano composto da forma mais típica possível em se tratando do diretor de Fogo Contra Fogo: Sonny no terraço de um prédio, com o oceano de luzes da parte baixa da cidade atrás dele e ao lado a opulência das fachadas iluminadas dos edifícios vizinhos. Sonny cairá na armadilha das luzes, se apaixonará por Isabella (Gong Li), a namorada do líder da organização criminosa em que ele e seu parceiro Tubbs (Jamie Foxx) se infiltram. O romance começa fraturado desde a raiz, condenado ao presente e à efemeridade, ao “bom enquanto durar” – uma história de amor impossível que traz o mais forte ponto de contato de Miami Vice com os filmes de Wong e rende o plano mais bonito do ano até agora: Gong Li indo embora de barco no final, olhar entristecido, a casa vazia onde ela havia se despedido de Sonny ficando para trás, ao fundo. Nesse plano ela está mais linda do que em qualquer outra parte do filme, uma beleza diretamente relacionada ao fato de que ela não será mais vista por ele – as pessoas amadas ficam ainda mais atraentes quando dizem adeus.

Mann filmou duas magníficas cenas de intimidade em Miami Vice, duas cenas que representam situações inteiramente distintas nas histórias de dois casais. A primeira é ainda no começo do filme, com Tubbs e sua mulher: o simples comportamento dos corpos, e as breves falas, mostram um casal que se conhece perfeitamente, que vive junto, que se protege e se ama há muito tempo. Só um imprevisto pode separar esse casal – como a explosão do trailer que põe a vida dela em risco, um pouco antes do tiroteio épico. A segunda cena de intimidade é durante o idílio amoroso de Sonny e Isabella em Havana: o sentimento é inteiramente outro, os corpos se estudam, há a tensão do novo e do desconhecido. Nasce uma paixão que é puro risco e inconseqüência, com uma melancolia já incrustada – a lágrima de Isabella prenuncia a forma como aquilo deve terminar. O que também chama a atenção nessas duas cenas é a proximidade da câmera em relação à pele e à carne dos personagens (o uso que Mann faz da HD, por sinal, vem se tornando uma arte cada vez mais investigativa e difícil de classificar). Mann já havia demonstrado facilidade em extrair uma experiência física do espaço, em realizar um denso trabalho com as ambiências. Mas agora esse aspecto físico se impregnou também nos corpos, e o filme só teve a ganhar. Mais uma vez, a atitude é inusitada: no filme em que mais do que nunca tinha tudo para se concentrar na iconicidade e no estreitamento psicológico, ele sublinhou o corpo e o estado mental confuso dos personagens.

As cenas mais movimentadas de Miami Vice se passam na madrugada, horário transitório e indefinido, tradução do comportamento insone e delirante dos heróis que agem sem pausa, sem descanso, com o coração encurralado pelo dever. No último plano do filme, que mostra Sonny entrando no hospital, enquadrado de longe e de costas, a solidão do herói se confirma mais uma vez: o principal personagem de Mann é o indivíduo que fica à deriva enquanto diversos grupos (no caso: polícia, FBI, traficantes internacionais, bandidos locais, neonazistas...) batalham entre si. E é no momento em que toma parte na batalha, paradoxalmente, que o herói sela seu destino solitário – um tema que Mann repete desde Thief, mas que agora recebe dimensão e tratamento diferentes. Miami Vice chega como uma obra-prima singular, efervescente, ao mesmo tempo brutal e sentimental, com uma ponta de desencanto e outra de esperança, e com um grau de sideração dos mais impressionantes do cinema contemporâneo.


Luiz Carlos Oliveira Jr.

 

 







Os heróis de Miami Vice, a madrugada e as luzes