Ao
transformar a mais eighties das peças do imaginário
televisivo em longa-metragem, Michael Mann definitivamente
não fez um filme para os nostálgicos de plantão. Tampouco
se limitou a atualizar uma matriz ficcional datada usando
os novos protocolos assimilados pelas séries e pelos
filmes de ação recentes. Entre as duas décadas que separam
o filme Miami Vice da série de TV que o originou,
a imagem de cinema atingiu uma nova idade, caracterizada
não pela demarcação de trincheiras entre os regimes
de ficção e as formas de representar o mundo, e sim
pela inclusão do cinema num magma onde ele negocia seu
lugar em meio a todo tipo de objeto visual. Com Miami
Vice, a reinvenção estética do cinema de Michael
Mann se dá sobre a fronteira fluida e contaminante entre
uma determinada arte da mise en scène – a conhecida
fórmula maneirista de retrabalhar motivos clássicos
(perseguição, troca de tiros, diálogos de confronto)
através de um repertório moderno (dilatação temporal,
deslocamento das formas, detalhismo) – e os novos modos
de comportamento das imagens, resultantes não apenas
da revolução dos suportes, mas sobretudo de uma nova
relação com o tempo e a ação neste desencadeada, contexto
em que muitas vezes é menos relevante falar de mise
en scéne do que simplesmente de dispositivo ou de
agenciamento do espaço-tempo. Paralelamente, a principal
tendência do thriller de ação nos últimos três ou quatro
anos – fundada numa certa urgência do registro e na
constante proliferação de focos dramáticos que se interceptam
e se dispersam de maneira imprevisível, sem dúvida um
traço marcante em 24 Horas – veio também da televisão
e tem lá seus ecos em Miami Vice.
É preciso destacar que a razão de ser do evidente apuro
técnico-estético dos últimos filmes de Mann não é o
virtuosismo: nenhum de seus triunfos visuais descamba
para efeitos decorativos. Ele não é exatamente um fetichista,
da mesma forma que não insiste em certas composições
como meros pretextos para assinaturas estilísticas.
Mann é um formalista: ele inventa e desdobra
formas. Miami Vice representa um momento muito
especial em sua carreira, quando as possibilidades de
criação se expandem para muito além do aguardado e especulado,
e isso num projeto destinado ao grande público. Antes
de Colateral, ou mesmo antes de Ali, um
certo consenso se havia estabelecido em torno do estilo
de Michael Mann: brilhante, porém ameaçado pelo ostracismo
que a notoriedade pode acarretar. Ele já era uma referência
obrigatória no campo da invenção formalista e da potência
visual, mas foi com a veia jazzística que Colateral
acrescentou à suprema elegância constatada em filmes
anteriores, alguns mais reconhecidos (Fogo Contra
Fogo, O Informante) que outros (O Último
dos Moicanos, Man Hunter), que ele encantou
até quem receava alguma propensão a um exercício estético
estabilizado em si mesmo. O percurso do cineasta não
indicava um recuo a modelos comportados de ficção.
Mas a verdade é que ninguém esperava que em Miami
Vice ele fosse dar um salto tão vertiginoso. Mann
se entregou a um princípio de desregulação do plano
– instabilidade, movimentação errante, composições desequilibradas,
fugas do estatuto comum da figuração – e de esfacelamento
narrativo. Cortes bruscos transportam o filme de um
personagem a outro, de uma situação a outra, de um continente
a outro. Uma simples montagem em campo-contracampo,
esta antiga e funcional ferramenta de construção dramática
no cinema, pode por sua vez ganhar a forma de sutil
agressão estrutural e ilustrar a dialética de uma trajetória
(com a lancha em movimento, o filme corta de um personagem
para o outro sobre um eixo em 180º, criando um conflito
de direção na passagem entre os planos). Enquanto a
narrativa progride, uma rota sensorial se substitui
à legibilidade absoluta da trama. Jogado direto dentro
do filme, sem apresentação de personagens ou de situação,
o espectador rapidamente se percebe diante de uma desconcertante
mistura de sofisticação e experimentalismo. Mann utiliza
a matéria-prima do filme quase como um pretexto para
repensar sua relação com o cinema de gênero de maneira
abstrata, arrojada, abolindo as leis do espaço e do
tempo com uma selvageria que não víamos desde o John
Woo de The Killer e A Better Tomorrow (curiosamente
filmes da época em que Miami Vice fazia sucesso
na TV), ainda que lá a montagem operasse em outros níveis
de brutalidade e de lirismo incandescente.
A recusa de Mann a fazer um filme retrô não causa espanto
– é até natural. O que surpreende em determinado ponto
de Miami Vice é perceber que seus parentes mais
próximos não estão no cinema policial e de ação, mas
em filmes como O Intruso, de Claire Denis, ou
2046, de Wong Kar-wai. Uma idéia de opacidade
(dos personagens, do enredo) e de imersão preside as
manobras narrativas e libera o filme para se aventurar
plástica e conceitualmente. A seqüência no Haiti é a
mais estranha e reveladora. Distante do exotismo costumeiro,
a seqüência é um mergulho radical na alteridade daquele
espaço. Lá ocorre a citação a Pollock, quando Sonny
(Colin Farrell) discute com o vilão José Yero e ameaça
detonar uma granada que borraria de sangue a parede
atrás dele. Além de ter um encaixe perfeito no andamento
do diálogo, a citação revela o desejo do diretor de
afirmar que a imagem para ele é uma superfície de inscrição,
que ela deve ser menos figurativa e mais abstrata, e
que em última análise trata-se de uma arte cuja violência
está no próprio gesto de jogar o material na tela e
compor formas por vezes aberrantes. O que Mann de fato
guardou da década retrasada e agora ressignificou –
mais até que a famosa iconografia e o universo temático
da série em questão – foi a arquitetura em néon de Miami.
O clima ensolarado recebe pouca atenção no filme, e
com razão, pois já em Thief havia ficado claro
que o reinado de Mann começa de verdade é quando cai
a noite.
É então que ele filma a grande cidade como uma selva
luminosa. Se o homem aparece sempre em primeiro plano
em relação à vegetação de fundo – feita de luzes, monitores,
imagens sobrepostas, signos difusos –, não é por privilégio
figurativo, e sim porque sua existência de alguma forma
está alimentada e determinada pelo que acontece sobre
aquele tabuleiro de pontinhos brilhosos. As luzes formam
a rede que ao mesmo tempo aprisiona e dá combustível
à vida do herói. O homem e seu espaço, seu métier,
seu destino: em Mann, os planos mais embriagados de
prazer visual são também os que mais significam.
Já na primeira seqüência de Miami Vice, vemos
um plano composto da forma mais típica possível em se
tratando do diretor de Fogo Contra Fogo: Sonny
no terraço de um prédio, com o oceano de luzes da parte
baixa da cidade atrás dele e ao lado a opulência das
fachadas iluminadas dos edifícios vizinhos. Sonny cairá
na armadilha das luzes, se apaixonará por Isabella (Gong
Li), a namorada do líder da organização criminosa em
que ele e seu parceiro Tubbs (Jamie Foxx) se infiltram.
O romance começa fraturado desde a raiz, condenado ao
presente e à efemeridade, ao “bom enquanto durar” –
uma história de amor impossível que traz o mais forte
ponto de contato de Miami Vice com os filmes
de Wong e rende o plano mais bonito do ano até agora:
Gong Li indo embora de barco no final, olhar entristecido,
a casa vazia onde ela havia se despedido de Sonny ficando
para trás, ao fundo. Nesse plano ela está mais linda
do que em qualquer outra parte do filme, uma beleza
diretamente relacionada ao fato de que ela não será
mais vista por ele – as pessoas amadas ficam ainda mais
atraentes quando dizem adeus.
Mann filmou duas magníficas cenas de intimidade em Miami
Vice, duas cenas que representam situações inteiramente
distintas nas histórias de dois casais. A primeira é
ainda no começo do filme, com Tubbs e sua mulher: o
simples comportamento dos corpos, e as breves falas,
mostram um casal que se conhece perfeitamente, que vive
junto, que se protege e se ama há muito tempo. Só um
imprevisto pode separar esse casal – como a explosão
do trailer que põe a vida dela em risco, um pouco antes
do tiroteio épico. A segunda cena de intimidade é durante
o idílio amoroso de Sonny e Isabella em Havana: o sentimento
é inteiramente outro, os corpos se estudam, há a tensão
do novo e do desconhecido. Nasce uma paixão que é puro
risco e inconseqüência, com uma melancolia já incrustada
– a lágrima de Isabella prenuncia a forma como aquilo
deve terminar. O que também chama a atenção nessas duas
cenas é a proximidade da câmera em relação à pele e
à carne dos personagens (o uso que Mann faz da HD, por
sinal, vem se tornando uma arte cada vez mais investigativa
e difícil de classificar). Mann já havia demonstrado
facilidade em extrair uma experiência física do espaço,
em realizar um denso trabalho com as ambiências. Mas
agora esse aspecto físico se impregnou também nos corpos,
e o filme só teve a ganhar. Mais uma vez, a atitude
é inusitada: no filme em que mais do que nunca tinha
tudo para se concentrar na iconicidade e no estreitamento
psicológico, ele sublinhou o corpo e o estado mental
confuso dos personagens.
As cenas mais movimentadas de Miami Vice se passam
na madrugada, horário transitório e indefinido, tradução
do comportamento insone e delirante dos heróis que agem
sem pausa, sem descanso, com o coração encurralado pelo
dever. No último plano do filme, que mostra Sonny entrando
no hospital, enquadrado de longe e de costas, a solidão
do herói se confirma mais uma vez: o principal personagem
de Mann é o indivíduo que fica à deriva enquanto diversos
grupos (no caso: polícia, FBI, traficantes internacionais,
bandidos locais, neonazistas...) batalham entre si.
E é no momento em que toma parte na batalha, paradoxalmente,
que o herói sela seu destino solitário – um tema que
Mann repete desde Thief, mas que agora recebe
dimensão e tratamento diferentes. Miami Vice chega
como uma obra-prima singular, efervescente, ao mesmo
tempo brutal e sentimental, com uma ponta de desencanto
e outra de esperança, e com um grau de sideração dos
mais impressionantes do cinema contemporâneo.
Luiz Carlos Oliveira Jr.
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