Hsiao-kang era vendedor ambulante
de relógios. Ajudava a marcar o tempo da capital Taipei.
Mas a passarela onde ele se instalava foi demolida e
agora ele é ator pornô. Ele é também o “modelo” de Tsai
Ming-liang. Modelo meio-clown, meio-fantoche,
sem personalidade, sem psique. Que executa ações quase
simbólicas de um estado de coisas, ações exemplares
de um comportamento humano disseminado, para muito além
de sua existência diária. E o mundo bem parece ter se
extrapolado em algumas problemáticas, desde quando Hsiao-kang
conheceu Shiang-chyi.
O Sabor da Melancia, ao mesmo tempo que dá continuidade
ao trabalho truffautiano de Tsai, de “fazer sempre o
mesmo filme” (e seguimento às histórias de Que horas
são aí? e A passarela se foi), por outro,
radicaliza as situações icônicas de um mal-estar do
mundo. O contato físico e o calor que faltavam, nas
distâncias enormes e vazias entre os corpos, aqui são
abundantes. O sexo, forma de prazer privilegiada, ensaiado
à exaustão, faz Hsiao-kang suar, grunhir, gozar. Preenche
suas horas de árduo trabalho de sobrevivência. Mas seu
coração agora parece estar encolhido, ainda mais escondido
no fundo do peito, como que atrofiado de tantas relações
frias. Os números musicais, expressão destes sentimentos
sem espaço, tornam-se mais exuberantes do que em O
Buraco. Animados e frenéticos, eles pintam uma paisagem
sentimental acolhedora, um refúgio embalado por doces
canções que narram histórias de amor, afetos possíveis,
ainda que por vezes tristes. Hsiao-kang tornou-se também
mais expressivo – canta em alto e bom tom, empenha-se
em expressões faciais, move o corpo enérgica e freneticamente
–, sem que, no entanto, pareçam maiores as chances de
estabelecer contato com as outras pessoas. O mundo parece
ter ficado mais cruel; e as alegorias de Tsai, amplificadas,
maximizadas, exacerbadas.
A água, elemento que liga os homens à terra de forma
física e vital, que era uma esperança para as almas
secas, está em falta – deve-se estocar, roubar, poupar
cada gota. Ela é encontrada praticamente apenas num
estado sólido – o da melancia (watermelon). Vermelha,
como a paixão, ela preenche a vida cotidiana de Taipei
das mais diversas formas: concurso de comilança, de
arremesso de sementes, prenda amorosa. Melancia-metáfora
do sexo no filme pornô. Melancia-suco que Shang-chyi
oferece a Hsiao-kang como gentileza. Melancia-feto que
ela carrega pelas escadas, como o produto não-existente
do amor que ela nutre. Pois Hsiao-kang se furta a um
relacionamento físico com ela, como se sua capacidade
de amar fosse inversamente proporcional à sua capacidade
de transar. “Nuvem inconstante”, ele não sabe mais fazer
chover e só vaga perdido...
Há uma angústia brutal na relação tensionada ao extremo
dos dois personagens e que explode no final. Uma angústia
que nem o contato físico mais íntimo pode aplacar. Porque
este contato mesmo já foi excessivamente mapeado, feito
e refeito, percorrido de todas as formas e ângulos pelas
imagens e gestos que circulam no mundo, mostrando-se
capaz até de aumentá-la. O grande impacto de O Sabor da Melancia é a agressividade que reveste a antes
plácida melancolia instaurada por dinâmicas frias de
circulação (passagem, perambulação), derivadas
da circulação incessante do capital e das relações sociais
estabelecidas por este dentro do espaço das metrópoles
– aqui uma Taipei esvaziada, onde as pessoas faltam.
O humor também aumenta de proporção neste mundo em que
a hostilidade e o desconforto se ampliam. E, neste estágio,
os personagens parecem não ter mais pra onde ir.
A violação da atriz japonesa desmaiada – porque tudo
deve continuar, porque tempo é dinheiro – é o auge desta
lógica nefasta. Porque para Tsai, o mundo é antes de
mais nada um espaço físico, os corpos são a existência
dos homens e tudo se manifesta através deles. Os soluços
de Shiang-chyi, que dublam cada gesto de Hsiao-kang,
acompanham com perplexidade triste a desumanização em
curso ali, a banalização do contato, o esvaziamento
do corpo, a ausência de qualquer lastro de afeto. Hsiao-kang
segue em sua submissão impotente aos fluxos que o cercam,
perdido num limbo entre este “sub-mundo” em que ele
vive e o outro mundo que ele pode vir a habitar. Mas
esta “impotência” também encontra seu ponto máximo;
ele precisa, sim, de algo mais do que aquele corpo frio.
E, num gesto que mescla violência e afeto, ele abandona
a atriz japonesa para gozar na boca de Shang-chyi. Ele
dá a ela o que ela queria, como uma última cartada possível
– mas somente após a exasperação absoluta da cena precedente.
O desconforto se agrava ao limite, para clamar por um
“basta!”. É necessário que se tome uma atitude. O contato
precisa encontrar outra forma de se dar. E ele chega
a se esboçar, antes de atingir o paroxismo desta última
seqüência do filme, no reencontro casual de Hsiao-kang
e Shang-chyi – que, apesar de freqüentarem diariamente
o mesmo prédio, se esbarram numa praça. Rumo ao apartamento
dela, onde vão compartilhar a companhia um do outro
por alguns bons momentos, Hsiao-kang desencrava do asfalto
fresco a chave que ela perdera no dia anterior. E água
brota do chão negro.
Tatiana Monassa
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