A HORA DO RANGO
Rob McKittrick, Waiting..., EUA, 2005

Contracampus

Na cena inicial de A Hora do Rango, vemos várias pessoas, muitas delas jovens de vinte e poucos anos, bebendo e fumando de tudo num clima que lembra muito as festinhas de república dos filmes que celebram a parcela hedonista da vida universitária. A câmera passeia bem à vontade entre os personagens, capturando imagens granuladas que dão um ar caseiro e espontâneo ao registro, como se a pessoa responsável pela filmagem também fizesse parte da festa. Após acordar de ressaca no dia seguinte, Dean (Justin Long) vai almoçar na casa da mãe. Durante o almoço, ela fala sobre a formatura de Chett, um amigo de Dean da época de escola, e ele fica visivelmente irritado, pois percebe a intenção da mãe de provocá-lo no seu ponto fraco. Ele vai para o Shenaniganz, a steak house em que trabalha, com aquela história do Chett martelando em sua cabeça. Lá, reencontra a namorada Amy e os amigos Monty (Ryan Reynolds) e Serena (Anna Faris), que também estavam na festa e que também trabalham como garçons. O filme acompanhará então a intensa jornada deles e de outros funcionários do Shenaniganz, resumindo tudo a partir de um filtro cômico. Quando o gerente apresenta a Monty um novato na casa, a quem ele deverá explicar como tudo funciona, começa a ficar claro que esse simpático filme de Rob McKittrick quer mostrar o outro lado de uma determinada moeda, ou seja, o que acontece com um grupo de jovens americanos entre dezoito e vinte e poucos anos que, em vez de ir para a faculdade, resolveu trabalhar.

Muitos dos aspectos recorrentes no gênero de comédias americanas que se passam no ambiente universitário são encontrados em A Hora do Rango: os trotes no calouro, as figuras peculiares convivendo com os estereótipos, os flertes com as ninfetas que nem saíram da high school, os espertinhos debochando dos losers, os namoros, as festas. Sem falar na noção geral de um filme que conduz ritos de passagem, tanto para quem chega (o novo funcionário) quanto para quem sai (Dean). Mas a idéia de galera, de turma, não traz aqui os confrontos entre panelinhas rivais: há um torto porém verdadeiro sinergismo entre os funcionários do Shenaniganz. O filme não apresenta somente dois ou três personagens de carisma, ele nos torna próximos de todo um universo de pessoas. Assim sendo, a eventual identificação do espectador não se dá com um personagem em particular, mas com o ambiente de trabalho mostrado pelo filme – quer se goste ou não da idéia de trabalhar num restaurante –, o que não seria possível sem as atuações absolutamente inspiradas de Ryan Reynolds, Anna Faris, Luis Guzmán (o cozinheiro recordista em piadas misóginas no filme) e Alanna Ubach (a irritadiça Naomi, responsável pela cena de pussy power que reequilibra a balança dos sexos).

É verdade que há uma insistência no drama pessoal de Dean que às vezes ameaça enfraquecer o filme. As cenas desse conflito existencial destoam em relação ao esquema ágil e descontraído do restante, introduzindo uma consciência atormentada pela hipótese de um outro espaço e de uma outra rotina. E isso só destoa um pouco porque as cenas no Shenaniganz provocam um incrível sentimento de presente puro. Os personagens exercem sua rotina de uma forma tal que tudo sempre soa inédito, mesmo para eles. A montagem dinamiza os planos, mistura ações simultâneas, cria paralelismos inusitados e causa uma imersão do espectador no ritmo de funcionamento do restaurante, com seus picos de freqüência e seus intervalos de descanso. Para os jovens garçons, há volta e meia um clima de tédio e insatisfação no ar, mas é impressionante como isso não conspira para uma visão negativista daquela juventude – a festa ao final do expediente não serve para abafar as frustrações: ela é vivenciada como a recompensa por um dia de trabalho árduo, e é filmada com bastante vitalidade.

Sendo o Shenaniganz um restaurante de rede, é curioso notar como o filme acena para a ausência de uma hierarquia nos antigos moldes de patrão-empregado. A figura patética do gerente não representa qualquer forma efetiva de comando ou poder sobre o grupo, e a imagem que chega ao filme da empresa por trás do restaurante, da instância controladora, é o filminho corporativo a que o novato assiste incrédulo, e que apenas revela com quem o gerente aprendeu a falar tanta idiotice. O resultado é um sistema regido pelo caos, mas que não se ressente da ausência de uma figura vigilante e ordenadora. Nessa nova geração de assalariados, não há necessidade de hierarquia nem de chefe (o simples fato de Dean poder ser promovido já causa um distúrbio no grupo).

A maneira como McKittrick articula o que se passa nos bastidores do restaurante e nas mesas dos clientes é especial em muitos momentos, e atinge seu ápice durante o rush na hora do jantar. Há a cena, por exemplo, que começa com a sempre mal-humorada Naomi preparando um sundae na cozinha, xingando e esbravejando a esmo, e continua no seu trajeto até a mesa da cliente. O diretor filma tudo num único plano, o que reforça o aspecto cômico dos dentes de Naomi trincados de raiva se metamorfoseando num sorriso artificial à medida que ela se aproxima da mesa em que vai servir o sundae. A câmera, na verdade, aproveitará o embalo e fará um plano-seqüência que passa por todos os personagens do filme e por todas as partes do restaurante. Entre uma situação e outra, a imagem se acelera, o plano avança até o ponto seguinte dissolvendo o virtuosismo do registro na necessidade maior de não comprometer a agilidade do filme, o que até ali tinha sido conquistado através da montagem.

Faltando três minutos para dar a hora de fechar, chega ao restaurante um último cliente. Quando Dean vai servi-lo, a surpresa: Chett sorri para ele como se soubesse de suas insatisfações, e ainda por cima desanda a falar da formatura, do novo emprego e do excelente salário. É uma cena arriscada, já que o filme dá corpo a um personagem-assombração que vinha funcionando muito bem fora da tela. Mas o risco se comprova interessante, porque a conclusão mais natural a que podemos chegar, a partir dessa cena, é a de que Dean fez bem em trabalhar no Shenaniganz e não ir para a faculdade, do contrário poderia acabar virando um panaca como o Chett. Isso redimensiona o filme, que aparentemente encaminhava Dean para a inevitável decisão de levar a sério uma faculdade e construir uma carreira profissional “de respeito”, como os jovens bem educados costumam fazer. Depois que ele recusa o cargo de gerente assistente no restaurante e se demite, seu destino não pode mais ser associado unicamente à possibilidade de se formar e ter um diploma. Será que ele vai mesmo para a universidade? Quem sabe o filme não está dando a entender que há muito mais opções para um jovem do que escolher entre um ou outro caminho convencionais? O que McKittrick faz, no fim das contas, é libertar seu personagem de uma dicotomia que até ali pautava e limitava sua vida – e devolver sua mente à tranqüilidade necessária para voltar ao clima inicial de festa. Como o título original diz, esses personagens estão esperando... Enquanto esperam, festejam. Se há motivo ou não para festejar, isso parece ser o de menos.


Luiz Carlos Oliveira Jr.

 

 






Naomi prepara um sundae com todo "carinho"