Contracampus
Na cena inicial de A Hora do Rango, vemos várias
pessoas, muitas delas jovens de vinte e poucos anos,
bebendo e fumando de tudo num clima que lembra muito
as festinhas de república dos filmes que celebram a
parcela hedonista da vida universitária. A câmera passeia
bem à vontade entre os personagens, capturando imagens
granuladas que dão um ar caseiro e espontâneo ao registro,
como se a pessoa responsável pela filmagem também fizesse
parte da festa. Após acordar de ressaca no dia seguinte,
Dean (Justin Long) vai almoçar na casa da mãe. Durante
o almoço, ela fala sobre a formatura de Chett, um amigo
de Dean da época de escola, e ele fica visivelmente
irritado, pois percebe a intenção da mãe de provocá-lo
no seu ponto fraco. Ele vai para o Shenaniganz, a steak
house em que trabalha, com aquela história do Chett
martelando em sua cabeça. Lá, reencontra a namorada
Amy e os amigos Monty (Ryan Reynolds) e Serena (Anna
Faris), que também estavam na festa e que também trabalham
como garçons. O filme acompanhará então a intensa jornada
deles e de outros funcionários do Shenaniganz, resumindo
tudo a partir de um filtro cômico. Quando o gerente
apresenta a Monty um novato na casa, a quem ele deverá
explicar como tudo funciona, começa a ficar claro que
esse simpático filme de Rob McKittrick quer mostrar
o outro lado de uma determinada moeda, ou seja, o que
acontece com um grupo de jovens americanos entre dezoito
e vinte e poucos anos que, em vez de ir para a faculdade,
resolveu trabalhar.
Muitos dos aspectos recorrentes no gênero de comédias
americanas que se passam no ambiente universitário são
encontrados em A Hora do Rango: os trotes no
calouro, as figuras peculiares convivendo com os estereótipos,
os flertes com as ninfetas que nem saíram da high
school, os espertinhos debochando dos losers,
os namoros, as festas. Sem falar na noção geral de um
filme que conduz ritos de passagem, tanto para quem
chega (o novo funcionário) quanto para quem sai (Dean).
Mas a idéia de galera, de turma, não traz aqui os confrontos
entre panelinhas rivais: há um torto porém verdadeiro
sinergismo entre os funcionários do Shenaniganz. O filme
não apresenta somente dois ou três personagens de carisma,
ele nos torna próximos de todo um universo de pessoas.
Assim sendo, a eventual identificação do espectador
não se dá com um personagem em particular, mas com o
ambiente de trabalho mostrado pelo filme – quer se goste
ou não da idéia de trabalhar num restaurante –, o que
não seria possível sem as atuações absolutamente inspiradas
de Ryan Reynolds, Anna Faris, Luis Guzmán (o cozinheiro
recordista em piadas misóginas no filme) e Alanna Ubach
(a irritadiça Naomi, responsável pela cena de pussy
power que reequilibra a balança dos sexos).
É verdade que há uma insistência no drama pessoal de
Dean que às vezes ameaça enfraquecer o filme. As cenas
desse conflito existencial destoam em relação ao esquema
ágil e descontraído do restante, introduzindo uma consciência
atormentada pela hipótese de um outro espaço e de uma
outra rotina. E isso só destoa um pouco porque as cenas
no Shenaniganz provocam um incrível sentimento de presente
puro. Os personagens exercem sua rotina de uma forma
tal que tudo sempre soa inédito, mesmo para eles. A
montagem dinamiza os planos, mistura ações simultâneas,
cria paralelismos inusitados e causa uma imersão do
espectador no ritmo de funcionamento do restaurante,
com seus picos de freqüência e seus intervalos de descanso.
Para os jovens garçons, há volta e meia um clima de
tédio e insatisfação no ar, mas é impressionante como
isso não conspira para uma visão negativista daquela
juventude – a festa ao final do expediente não serve
para abafar as frustrações: ela é vivenciada como a
recompensa por um dia de trabalho árduo, e é filmada
com bastante vitalidade.
Sendo o Shenaniganz um restaurante de rede, é curioso
notar como o filme acena para a ausência de uma hierarquia
nos antigos moldes de patrão-empregado. A figura patética
do gerente não representa qualquer forma efetiva de
comando ou poder sobre o grupo, e a imagem que chega
ao filme da empresa por trás do restaurante, da instância
controladora, é o filminho corporativo a que o novato
assiste incrédulo, e que apenas revela com quem o gerente
aprendeu a falar tanta idiotice. O resultado é um sistema
regido pelo caos, mas que não se ressente da ausência
de uma figura vigilante e ordenadora. Nessa nova geração
de assalariados, não há necessidade de hierarquia nem
de chefe (o simples fato de Dean poder ser promovido
já causa um distúrbio no grupo).
A maneira como McKittrick articula o que se passa nos
bastidores do restaurante e nas mesas dos clientes é
especial em muitos momentos, e atinge seu ápice durante
o rush na hora do jantar. Há a cena, por exemplo,
que começa com a sempre mal-humorada Naomi preparando
um sundae na cozinha, xingando e esbravejando a esmo,
e continua no seu trajeto até a mesa da cliente. O diretor
filma tudo num único plano, o que reforça o aspecto
cômico dos dentes de Naomi trincados de raiva se metamorfoseando
num sorriso artificial à medida que ela se aproxima
da mesa em que vai servir o sundae. A câmera, na verdade,
aproveitará o embalo e fará um plano-seqüência que passa
por todos os personagens do filme e por todas as partes
do restaurante. Entre uma situação e outra, a imagem
se acelera, o plano avança até o ponto seguinte dissolvendo
o virtuosismo do registro na necessidade maior de não
comprometer a agilidade do filme, o que até ali tinha
sido conquistado através da montagem.
Faltando três minutos para dar a hora de fechar, chega
ao restaurante um último cliente. Quando Dean vai servi-lo,
a surpresa: Chett sorri para ele como se soubesse de
suas insatisfações, e ainda por cima desanda a falar
da formatura, do novo emprego e do excelente salário.
É uma cena arriscada, já que o filme dá corpo a um personagem-assombração
que vinha funcionando muito bem fora da tela. Mas o
risco se comprova interessante, porque a conclusão mais
natural a que podemos chegar, a partir dessa cena, é
a de que Dean fez bem em trabalhar no Shenaniganz e
não ir para a faculdade, do contrário poderia acabar
virando um panaca como o Chett. Isso redimensiona o
filme, que aparentemente encaminhava Dean para a inevitável
decisão de levar a sério uma faculdade e construir uma
carreira profissional “de respeito”, como os jovens
bem educados costumam fazer. Depois que ele recusa o
cargo de gerente assistente no restaurante e se demite,
seu destino não pode mais ser associado unicamente à
possibilidade de se formar e ter um diploma. Será que
ele vai mesmo para a universidade? Quem sabe o filme
não está dando a entender que há muito mais opções para
um jovem do que escolher entre um ou outro caminho convencionais?
O que McKittrick faz, no fim das contas, é libertar
seu personagem de uma dicotomia que até ali pautava
e limitava sua vida – e devolver sua mente à tranqüilidade
necessária para voltar ao clima inicial de festa. Como
o título original diz, esses personagens estão esperando...
Enquanto esperam, festejam. Se há motivo ou não para
festejar, isso parece ser o de menos.
Luiz Carlos Oliveira Jr.
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