CAFUNÉ
Bruno Vianna, Brasil, 2005

A paisagem não deixa dúvida: Cafuné é um filme ambientado no que o Rio de Janeiro tem de mais icônico, da favela aos cartões postais. Mas da mesma forma que o céu está encoberto, e assim permanecerá na maior parte do filme, a maneira de enxergar esse espaço não corresponderá à opção turística (tampouco jornalística). Após o começo ensolarado, na praia, Bruno Vianna carrega seus personagens para uma cidade inusitadamente cinzenta, o que a estrutura narrativa reflete ao transitar de um conhecido conflito de comédia romântica (o amor transpondo barreiras sociais e econômicas) para uma matéria social mais ambiciosa e complexa, com diversos personagens – que antes gravitavam em torno do casal-pivô e depois passam a adquirir maior relevo narrativo – e muitas situações carregadas de uma micropolítica que se infiltra nos diálogos, nos gestos, nas roupas.

Um filme de classe-média que se preocupa com sua atual posição na sociedade, mas sem a matemática moralizante de Cama de Gato e Contra Todos – em que tudo é uma questão de estabelecer, por pura (e pueril) artimanha de roteiro, relações de degradação entre os personagens – e sem o quebra-cabeça sociológico que a tudo atribui um tom acusatório e a cuja causalidade ninguém escapa (os últimos filmes de Sérgio Bianchi, principalmente). Vianna se coloca em outra chave, não impondo um único sentimento em relação à cidade ou um único ponto de vista sobre seus problemas. Não há tese a se provar, nem ódio a se partilhar. O rumo do filme se torna progressivamente difícil de se prever – e simplesmente por fazer do minuto seguinte uma incógnita, dentro de um cinema brasileiro (esse em que a temática social é apenas um fetiche entre outros) que usa “previsibilidade” como palavra de ordem, Cafuné já interessa bastante.

A neblina que encobre a cidade, e que de vez em quando aparece se insinuando sobre os morros, indica uma vontade do diretor/roteirista de não pôr a nu a cidade, não se colocar na posição de quem, ao olhar de cima, enxerga tudo com clareza. Pelo contrário: a única forma de perceber alguma coisa, em Cafuné, é se colocando na altura dos personagens. Não estamos certamente na constelação das intrigas orquestradas por um mastermind que observa de longe suas marionetes em putrefação, apesar da administração das “obras do acaso” que o filme resolve exercer na segunda metade. A ligação entre os personagens se dá pelo tipo de afeto que trocam, e é justamente nesse ponto que o filme se distancia da radiografia crítica da cidade e ganha uma leveza indecisa, uma sensação de simplicidade diante das diferenças.

Essa leveza e essa simplicidade, contudo, precisam se embrenhar por entre a violência e os desvios de foco narrativo para ter seu espaço no filme. O romance entre o jovem do morro e a menina do Leblon, no começo, parece mais importante que todo o resto, e mesmo a violência – que o primeiro plano do filme, com o sofá manchado de sangue, já havia antecipado – não é o que sufoca os personagens (a dura do policial no início do filme acaba até aproximando o casal). Em alguns momentos, a violência se torna uma questão que o filme deixa para o extra-campo: se ouvimos os sons de um ato violento sendo cometido próximo a um sinal de trânsito, a câmera finge não ouvir e continua fixa no rosto tenso da moça que dirige o carro em que estamos. A faixa de “Basta!” – um apelo de indignação que ficou famoso no Rio – na janela do apartamento chega a ser uma histeria sem lugar nem propósito, um verdadeiro “mico”, como diz um personagem (com toda razão, convenhamos).

Mas a opção por buscar menos um painel definido do que um conjunto de pessoas que não necessariamente representa toda a cidade, se é o que aproxima o filme dos personagens e o afasta da tipologia mais comum, é também o que torna seu projeto um tanto confuso. Pois há um momento em que a violência chega ao primeiro plano, os conflitos sociais se fazem mais transparentes, migram para o diálogo e para a confrontação dramática, e toda aquela naturalidade com que são encaradas as circunstâncias da vida (a paixão entre duas pessoas de classes distantes, a gravidez da menina, as reuniões entre amigos) some sob o peso da tragédia e da hesitação do filme em relação ao material e ao sentimento que ele quer extrair daquele espaço. A cena em que o personagem de Lúcio Andrey é espancado pelo próprio cunhado, que, cego pelo ódio em relação ao “outro” (ou em relação a si mesmo? ou é a mesma coisa?), nem consegue ver que violenta uma pessoa que agora faz parte da sua família, mostra o ápice dessa manobra arriscada do filme. Cafuné traz a violência entre partes que sempre parecem tão distantes, tão antagônicas, para dentro da família.

Riscos, ainda mais num primeiro longa-metragem, devem realmente ser corridos, mas o fato é que o filme perde força quando sai da relação amorosa e tenta, mesmo que num diálogo entre mãe e filha, abarcar uma situação mais ampla. A cena final é a prova de que Vianna fica muito mais à vontade fazendo um elogio do afeto do que prospectando um certo estado das coisas na sociedade carioca como um todo. Uma cena tenra para fechar um filme bastante acidentado e desigual. E às vezes é com acidentes que se começa a construir uma obra.


Luiz Carlos Oliveira Jr.