A
paisagem não deixa dúvida: Cafuné é um filme
ambientado no que o Rio de Janeiro tem de mais icônico,
da favela aos cartões postais. Mas da mesma forma que
o céu está encoberto, e assim permanecerá na maior parte
do filme, a maneira de enxergar esse espaço não corresponderá
à opção turística (tampouco jornalística). Após o começo
ensolarado, na praia, Bruno Vianna carrega seus personagens
para uma cidade inusitadamente cinzenta, o que a estrutura
narrativa reflete ao transitar de um conhecido conflito
de comédia romântica (o amor transpondo barreiras sociais
e econômicas) para uma matéria social mais ambiciosa
e complexa, com diversos personagens – que antes gravitavam
em torno do casal-pivô e depois passam a adquirir maior
relevo narrativo – e muitas situações carregadas de
uma micropolítica que se infiltra nos diálogos, nos
gestos, nas roupas.
Um filme de classe-média que se preocupa com sua atual
posição na sociedade, mas sem a matemática moralizante
de Cama de Gato e Contra Todos – em que
tudo é uma questão de estabelecer, por pura (e pueril)
artimanha de roteiro, relações de degradação entre os
personagens – e sem o quebra-cabeça sociológico que
a tudo atribui um tom acusatório e a cuja causalidade
ninguém escapa (os últimos filmes de Sérgio Bianchi,
principalmente). Vianna se coloca em outra chave, não
impondo um único sentimento em relação à cidade ou um
único ponto de vista sobre seus problemas. Não há tese
a se provar, nem ódio a se partilhar. O rumo do filme
se torna progressivamente difícil de se prever – e simplesmente
por fazer do minuto seguinte uma incógnita, dentro de
um cinema brasileiro (esse em que a temática social
é apenas um fetiche entre outros) que usa “previsibilidade”
como palavra de ordem, Cafuné já interessa bastante.
A neblina que encobre a cidade, e que de vez em quando
aparece se insinuando sobre os morros, indica uma vontade
do diretor/roteirista de não pôr a nu a cidade, não
se colocar na posição de quem, ao olhar de cima, enxerga
tudo com clareza. Pelo contrário: a única forma de perceber
alguma coisa, em Cafuné, é se colocando na altura
dos personagens. Não estamos certamente na constelação
das intrigas orquestradas por um mastermind que
observa de longe suas marionetes em putrefação, apesar
da administração das “obras do acaso” que o filme resolve
exercer na segunda metade. A ligação entre os personagens
se dá pelo tipo de afeto que trocam, e é justamente
nesse ponto que o filme se distancia da radiografia
crítica da cidade e ganha uma leveza indecisa, uma sensação
de simplicidade diante das diferenças.
Essa leveza e essa simplicidade, contudo, precisam se
embrenhar por entre a violência e os desvios de foco
narrativo para ter seu espaço no filme. O romance entre
o jovem do morro e a menina do Leblon, no começo, parece
mais importante que todo o resto, e mesmo a violência
– que o primeiro plano do filme, com o sofá manchado
de sangue, já havia antecipado – não é o que sufoca
os personagens (a dura do policial no início do filme
acaba até aproximando o casal). Em alguns momentos,
a violência se torna uma questão que o filme deixa para
o extra-campo: se ouvimos os sons de um ato violento
sendo cometido próximo a um sinal de trânsito, a câmera
finge não ouvir e continua fixa no rosto tenso da moça
que dirige o carro em que estamos. A faixa de “Basta!”
– um apelo de indignação que ficou famoso no Rio – na
janela do apartamento chega a ser uma histeria sem lugar
nem propósito, um verdadeiro “mico”, como diz um personagem
(com toda razão, convenhamos).
Mas a opção por buscar menos um painel definido do que
um conjunto de pessoas que não necessariamente representa
toda a cidade, se é o que aproxima o filme dos personagens
e o afasta da tipologia mais comum, é também o que torna
seu projeto um tanto confuso. Pois há um momento em
que a violência chega ao primeiro plano, os conflitos
sociais se fazem mais transparentes, migram para o diálogo
e para a confrontação dramática, e toda aquela naturalidade
com que são encaradas as circunstâncias da vida (a paixão
entre duas pessoas de classes distantes, a gravidez
da menina, as reuniões entre amigos) some sob o peso
da tragédia e da hesitação do filme em relação ao material
e ao sentimento que ele quer extrair daquele espaço.
A cena em que o personagem de Lúcio Andrey é espancado
pelo próprio cunhado, que, cego pelo ódio em relação
ao “outro” (ou em relação a si mesmo? ou é a mesma coisa?),
nem consegue ver que violenta uma pessoa que agora faz
parte da sua família, mostra o ápice dessa manobra arriscada
do filme. Cafuné traz a violência entre partes
que sempre parecem tão distantes, tão antagônicas, para
dentro da família.
Riscos, ainda mais num primeiro longa-metragem, devem
realmente ser corridos, mas o fato é que o filme perde
força quando sai da relação amorosa e tenta, mesmo que
num diálogo entre mãe e filha, abarcar uma situação
mais ampla. A cena final é a prova de que Vianna fica
muito mais à vontade fazendo um elogio do afeto do que
prospectando um certo estado das coisas na sociedade
carioca como um todo. Uma cena tenra para fechar um
filme bastante acidentado e desigual. E às vezes é com
acidentes que se começa a construir uma obra.
Luiz Carlos Oliveira Jr.
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