ASSOMBRAÇÃO
Danny e Oxide Pang, Gwai Wik, Tailândia/China, 2006

Existe uma vontade quase sobrenatural de brincar com a expectativa do público em Assombração. Desde o começo percebemos estar num território lúdico, quando se encontram criadores e jornalistas em meio a jogos de lentes e primeiros planos trêmulos. Vemos uma escritora que teve um de seus sucessos adaptados para o cinema sendo sabatinada por repórteres. Ela revela que está escrevendo um novo livro, com o título de Assombração. Passamos, em seguida, a acompanhar seu processo criativo, ela sozinha em seu loft, a tela do computador e o teclado à sua frente.

Não demora muito para que as sombras barulhentas e cabeludas que marcam os maiores sucessos do novo terror comecem a aparecer. O que essas sombras querem da protagonista? O que fazem com ela? O grande trunfo deste novo filme dos irmãos Pang é confundir as respostas a essas duas perguntas. Porque o número de explicações pode parecer até excessivo, mas sugere também algumas pistas erradas, confirmadas muitas vezes por alguns flashbacks didáticos demais para que sejam levados a sério. São mais indícios de que essas explicações procuram conduzir o espectador a um lugar em que ele apenas pareça confortável. Suas certezas são construídas em terreno frágil, que parece prestes a desmoronar. Ao final, não só desmoronam, como se revelam muito menos didáticas do que pareciam.

Entramos no bastante explorado filão dos planos paralelos, onde mundo imaginado se confunde com o mundo real e intenções se materializam, aprisionando a criadora em seu próprio universo criativo. No desenvolvimento da trama, até certo momento o filme dos irmãos Pang não vai muito longe da tradicional progressão aflitiva, e a confusão passa a ser substituída pela suspensão total de qualquer segurança. Começamos a esperar como a protagonista sairá dos torvelinhos que a envolvem. A todo momento ela parece estar em perigo, e o que encontra pela frente são passagens e obstáculos dignos de um RPG elaborado por adolescentes. Mas entre uma passagem e outra existe a invenção, seja nos cenários apocalípticos, seja nos efeitos que transformam a tela em quadros impressionistas. Há, portanto, uma conjunção satisfatória entre delírio existencial e sua tradução em imagens, com boas idéias visuais, umas até ousadas, por parecerem toscas, outras dignas da parafernália tecnológica que os irmãos tiveram ao alcance.

A criadora se aprisiona num mundo dominado por criações rejeitadas, como uma revolta de intenções deletadas. Mas em certo momento as coisas parecem se confundir ainda mais, e suas não-escolhas da vida também ressurgem nesse espaço labiríntico. O filme prossegue confundindo, pois ora pensamos estar diante de uma obra realmente inovadora no visual, mas pobre na narrativa e na dramaturgia, ora pensamos justamente o contrário: uma trama elaborada, com simplicidade apenas aparente, e coragem para admitir uma concepção visual que faz Amor Além da Vida (aquele filme estranho de Vincent Ward) parecer um colírio para os olhos. Mas, claro, há vários momentos em que acreditamos estar na perfeita comunhão entre forma e conteúdo, uma conjunção em que não se detecta um ou outro.

Nasce dessa esquizofrenia o maior interesse do filme. É como se os dois irmãos se revezassem nas filmagens e na montagem, e tivessem uma idéia bem diferente do que deveriam fazer. No entanto, os irmãos pensam como um só, e essa esquizofrenia é proposital, como fica claro no final que fecha algumas pontas soltas, mas abre um tanto de incertezas para quem achava que pisava em solo seguro. Danny e Oxide Pang finalmente encontram a melhor tradução fílmica para suas próprias confusões existenciais.


Sérgio Alpendre