Existe
uma vontade quase sobrenatural de brincar com a expectativa
do público em Assombração. Desde o começo percebemos
estar num território lúdico, quando se encontram criadores
e jornalistas em meio a jogos de lentes e primeiros
planos trêmulos. Vemos uma escritora que teve um de
seus sucessos adaptados para o cinema sendo sabatinada
por repórteres. Ela revela que está escrevendo um novo
livro, com o título de Assombração. Passamos,
em seguida, a acompanhar seu processo criativo, ela
sozinha em seu loft, a tela do computador e o
teclado à sua frente.
Não demora muito para que as sombras barulhentas e cabeludas
que marcam os maiores sucessos do novo terror comecem
a aparecer. O que essas sombras querem da protagonista?
O que fazem com ela? O grande trunfo deste novo filme
dos irmãos Pang é confundir as respostas a essas duas
perguntas. Porque o número de explicações pode parecer
até excessivo, mas sugere também algumas pistas erradas,
confirmadas muitas vezes por alguns flashbacks didáticos
demais para que sejam levados a sério. São mais indícios
de que essas explicações procuram conduzir o espectador
a um lugar em que ele apenas pareça confortável. Suas
certezas são construídas em terreno frágil, que parece
prestes a desmoronar. Ao final, não só desmoronam, como
se revelam muito menos didáticas do que pareciam.
Entramos no bastante explorado filão dos planos paralelos,
onde mundo imaginado se confunde com o mundo real e
intenções se materializam, aprisionando a criadora em
seu próprio universo criativo. No desenvolvimento da
trama, até certo momento o filme dos irmãos Pang não
vai muito longe da tradicional progressão aflitiva,
e a confusão passa a ser substituída pela suspensão
total de qualquer segurança. Começamos a esperar como
a protagonista sairá dos torvelinhos que a envolvem.
A todo momento ela parece estar em perigo, e o que encontra
pela frente são passagens e obstáculos dignos de um
RPG elaborado por adolescentes. Mas entre uma passagem
e outra existe a invenção, seja nos cenários apocalípticos,
seja nos efeitos que transformam a tela em quadros impressionistas.
Há, portanto, uma conjunção satisfatória entre delírio
existencial e sua tradução em imagens, com boas idéias
visuais, umas até ousadas, por parecerem toscas, outras
dignas da parafernália tecnológica que os irmãos tiveram
ao alcance.
A criadora se aprisiona num mundo dominado por criações
rejeitadas, como uma revolta de intenções deletadas.
Mas em certo momento as coisas parecem se confundir
ainda mais, e suas não-escolhas da vida também ressurgem
nesse espaço labiríntico. O filme prossegue confundindo,
pois ora pensamos estar diante de uma obra realmente
inovadora no visual, mas pobre na narrativa e na dramaturgia,
ora pensamos justamente o contrário: uma trama elaborada,
com simplicidade apenas aparente, e coragem para admitir
uma concepção visual que faz Amor Além da Vida
(aquele filme estranho de Vincent Ward) parecer um colírio
para os olhos. Mas, claro, há vários momentos em que
acreditamos estar na perfeita comunhão entre forma e
conteúdo, uma conjunção em que não se detecta um ou
outro.
Nasce dessa esquizofrenia o maior interesse do filme.
É como se os dois irmãos se revezassem nas filmagens
e na montagem, e tivessem uma idéia bem diferente do
que deveriam fazer. No entanto, os irmãos pensam como
um só, e essa esquizofrenia é proposital, como fica
claro no final que fecha algumas pontas soltas, mas
abre um tanto de incertezas para quem achava que pisava
em solo seguro. Danny e Oxide Pang finalmente encontram
a melhor tradução fílmica para suas próprias confusões
existenciais.
Sérgio Alpendre
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