Vivenciar
cinema em um festival costuma ser sempre uma experiência
gratificante. No caso de Festival Brasileiro de Cinema
Universitário, essa vivência mostra-se
decididamente muito mais ampla do que o estar "exposto
ao filme" em si, alargando-se em debates, discussões,
intensa troca de idéias informalmente, mesas
de bar e festas. Se boa parte deste clima reflete a
própria experiência da universidade, em
que muito é construído e compartilhado
às margens dos cursos propriamente ditos, na
convivência entre as pessoas e em tudo que surge
daí, é bastante satisfatório que
se possa abrir uma janela desta natureza no relacionamento
crítico com o cinema.
Pela observação de acertos e erros, recorrentes
ou não, de filmes saídos de um imenso
caldeirão, no qual todo e qualquer ingrediente
é lícito a princípio, é
possível traçar tendências, identificar
vontades, perceber problemáticas e sentir-se
livre para pensar a partir disso, em qualquer direção
que se queira, sobre o que se viu ou sobre qualquer
outra imagem do cinema mundial. O desafio crítico
de buscar conceitualizações através
trabalhos de naturezas tão díspares, ou
mesmo tentar avaliá-los, vê-se sempre confrontado
pela configuração disforme de muitas dessas
produções. O Festival Universitário
é uma eterna caixinha de surpresas. Se, por um
lado, ano após ano, somos capazes de identificar
linhas muito precisas, que, na maior parte das vezes,
se confundem com nomes de escolas – o que demonstraria
o papel exercido pela formação acadêmica
na constituição de um cineasta –, por
outro, somos sempre pegos desprevenidos por uma ou outra
proposição, seja por ela ser insólita
ou inusitada, seja por ser contundente ou supreendente.
Como resposta, somos constantemente tomados por uma
grande curiosidade investigativa, seja a avaliação
pessoal para o filme positiva ou não, por um
impulso de diálogo, de questionamentos, de interrogações,
uma vez aberta uma clara porta de acesso aos realizadores
e aos meandros de seus pensamentos, suas abstenções,
seus segredos de produção e tudo mais
o que possa enriquecer o conhecimento de um filme. Desta
forma, uma vasta possibilidade de descobertas nos é
franqueada, ainda que nem sempre estas aconteçam
a contento.
Todo este quadro muito particular permite, ao mesmo
tempo em que afasta, a possibilidade de uma avaliação
do cenário cinematográfico brasileiro
de forma ampla. O tom acalorado de alguns debates, animados
por defesas (ou ataques) de determinadas políticas
ou estéticas, não raro era incitado por
paralelos com a nossa produção "profissional",
de mercado. No entanto, não se pode deixar de
notar que, por contar com condições próprias
de produção, o cinema universitário
acaba por constituir um meio diferenciado. E, nesse
sentido, o Festival se firma como o veículo de
"distribuição" que valida esta cinematografia,
por criar condições de exibição
também próprias (debate e intercâmbio
sistemáticos), definindo, inclusive, um universo
específico – o que influi na configuração
da avaliação crítica perante os
filmes. A ausência de curadoria para a Mostra
Competitiva de Curtas disponibiliza aos nossos olhos
a totalidade dos filmes em película produzidos
dentro das universidades brasileiras, colocando lado-a-lado
exercícios feitos por alunos sem uma carreira
cinematográfica em vista e primeiros trabalhos
de futuros diretores-autores.
Este ano, pelo nivelamento apresentado (nos pontos altos
e baixos), o inevitável paralelo entre os filmes
das mostras nacional e internacional, que em anos anteriores
denunciava uma superioridade de meios técnicos
e, por vezes, mesmo de domínio da linguagem,
dos estrangeiros, me propiciou uma reflexão menos
baseada na constatação de uma "hierarquia
de valor" e mais relacionada a essa observância
de panorama. Assistir a filmes de diversos países
em contraste com o conjunto completo da produção
universitária brasileira me suscitou a clara
percepção da relação direta
destes filmes com a cinematografia dos seus países
de origem – algo muitas vezes bastante complicado de
apontar quando se trata do nosso próprio cinema
–, trazendo uma perspectiva interessante para a análise
das competitivas nacionais, que costumam aparentar alguma
esquizofrenia (ainda que os filmes sejam agrupados nas
sessões por eventuais afinidades temáticas).
Seguindo este prisma e com algum distanciamento das
discussões filme-a-filme e dos discursos dos
realizadores, foi possível vislumbrar certos
pontos de inflexão entre os filmes universitários
como um todo e a cinematografia brasileira, em termos
de estratégia, de desenvolvimento temático
e escolhas estéticas, mesmo que estes permaneçam
razoavelmente difíceis de precisar.
Para além de gerar reflexões teóricas
deste gênero, todo este contexto exposto, no qual
as deliberações do processo produtivo
acabam sempre por entrar na roda, contemplou este ano
a confirmação de uma constatação
presente desde a edição passada do Festival:
os vídeos têm se mostrado mais instigantes
que os curtas em película. Divididos em Mostras
Competitivas e Informativas, eles têm apresentado
proposições mais sólidas e diferenciadas,
talvez por permitir maior autonomia ao realizador e
constituir mais diretamente o produto de uma vontade
de cinema, menos atravessada por outros imperativos
ou constrições dos cursos. Território
repleto de indefinições, o vídeo
freqüentemente se revela um campo mais aberto a
experimentações, onde o receio do erro
é menos corrente e as apostas mais vastas, refletindo
bem a multiplicidade de propostas propiciada por uma
realização mais livre e fornecendo uma
boa visão do que se passa nestes laboratórios
do audiovisual que são as escolas de cinema.
Mas, de tudo o que foi experienciado em duas semanas
de conversas, exibições de filmes e debates,
o que mais nos chamou a atenção foi o
entrecruzamento entre discursos proferidos e elaborações
estéticas apresentadas pelos filmes, no que se
sobressaiu a reivindicação – estratégica
ou passional – de um determinado projeto (a ser defendido
por um coletivo) feita pelos realizadores de O Latido
do Cachorro Altera o percurso das Nuvens e A
Estória da Figueira. Cada um ao seu modo,
estes dois filmes demonstram propostas cinematográficas
sólidas e muito bem ancoradas em toda uma elaboração
de pensamento que extrapola o filme como objeto, ampliando
proposições, consolidando uma política
e afirmando uma aposta numa visão de cinema.
Embaladas pelo estímulo ao diálogo alimentado
pelo Festival, eu e Luisa Marques propusemos aos realizadores
de ambos os filmes um bate-papo que respondesse ao desejo
de estender nosso conhecimento sobre o que eles nos
apresentaram, como obra audiovisual e como fenômeno
discursivo. Os resultados foram uma conversa com Raul
Fernando e Estevão Garcia, dois dos realizadores
de O Latido do Cachorro Altera o Percurso das Nuvens,
da UFF, e testemunhos por escrito de Julia Zakia, Guile
Martins e Guilherme César, envolvidos com a produção
de A Estória da Figueira e outros filmes
da ECA-USP. Ambas as "enquetes" lançam uma luz
sobre os caminhos de um jovem cinema brasileiro, com
grandes chances de despontar num futuro próximo.
Tatiana Monassa
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